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5. A NÃO-CONSOLIDAÇÃO COMO EXPRESSÃO DA IDEOLOGIA DOMINANTE:

5.5. Raízes da concepção de hegemonia em Gramsci

Uma das diferenças fundamentais entre as duas principais acepções do conceito de ideologia – a total e a falsa consciência – advém do objetivo de cada perspectiva. Se, por um lado, Mannheim pretende desenvolver um ramo do conhecimento sociológico, Marx, tem por objetivo desvendar as relações de dominação que caracterizam a sociedade capitalista. No que tange aos resultados distintos, Mannheim define os intelectuais como a possibilidade de construção de um conhecimento não-ideológico e Marx afirma que o intelectual produz e dissemina a ideologia e que o conhecimento não-ideológico é aquele resultante dos verdadeiros interesses do proletariado.

Para Marx, a ideologia é o conjunto de valores desenvolvido pela classe dominante devido ao modo de produção capitalista, baseado nos seus interesses de classe e universalizado de forma a alcançar todas as classes e se difundir perante uma sociedade onde a divisão do trabalho levou a alienação. Com isso a ideologia garante que as classes dominadas não tenham consciência sobre sua própria condição de classe dominada e adotem os valores dominantes como seus.

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Como a consciência é, também, produto do trabalho do homem, a classe trabalhadora é a única capaz de desenvolver um conhecimento não-ideológico. Na sociedade capitalista, porém, a divisão do trabalho leva à alienação e esta impossibilita a formação de uma consciência de si verdadeira. Somado a isso, a classe dominante assumiu as instituições da superestrutura, ou constituiu instituições novas que fortalecem a alienação e, desta maneira, tornam a dominação ainda mais profunda. Decorre dessa perspectiva, que a única possibilidade para formar um conhecimento não-ideológico seria abolindo o capitalismo e as instituições da superestrutura, das quais o Estado tem papel político, e por isso, é preponderante.

Desta forma, Marx não está sujeito ao mesmo questionamento levantado anteriormente sobre o papel dos intelectuais e a capacidade destes em romper os limites da ideologia e dos interesses de classe, tal qual realizado com relação ao pensamento de Mannheim. As conseqüências da ideologia como falsa consciência levam, porém, a questionar, assim como feito por Mullins, como distinguir empiricamente a ideologia da consciência. A inexistência de um limite entre ambos implicaria considerar até mesmo a concepção de Marx como ideológica. Por outro lado, outra questão, fundamental para os pensadores marxistas, se coloca de forma contundente entre as preocupações teóricas desses intelectuais: como construir as condições objetivas de transformação dessa estrutura de dominação? Como romper as amarras da estrutura-superestrutura ideológica?

O paradoxo e as dificuldades decorrentes da compreensão de Marx sobre o papel da ideologia no capitalismo são contornados de diferentes maneiras pelas interpretações realizadas pela primeira geração de marxistas que não tiveram acesso à Ideologia Alemã. Como esses teóricos não utilizaram a concepção negativa da ideologia, puderam lidar de forma mais objetiva, voltada para a prática revolucionária, sem considerar os limites da falsa consciência. Exatamente por isso, fornecem uma leitura pertinente sobre o conceito e de como existem valores e visões de mundo que guiam a atuação política dos indivíduos e grupos. Além disso, esses autores derivam do estudo do conceito de ideologia outras contribuições importantes para a compreensão da estrutura de dominação que compõe o capitalismo.

Desta forma, surgem conceitos como o de hegemonia de Gramsci, que auxilia a explicação dos mecanismos que limitam os conteúdos políticos e econômicos possíveis na democracia liberal. Segundo Vianna (2000), Gramsci desenvolve o conceito de hegemonia tendo como base a obra de Marx, contudo, por meio de uma influência direta e marcante do pensamento de Lênin.

Lênin tratou o conceito de ideologia de maneira completamente distinta da formulação desenvolvida por Marx em A Ideologia Alemã. Isso ocorreu não apenas porque Lênin não teve acesso a esta obra, mas principalmente porque estava preocupado com a formação de um conjunto de valores e interesses próprios para as lutas proletárias que ocorriam na Rússia e que tomavam o mundo entre o final do século XIX e início do século XX (LARRAÍN, 2008). Segundo Perry Anderson (2004, p.30), “as evidentes transformações do modo de produção capitalista, geradoras da monopolização e do imperialismo” levaram à necessidade de estudos econômicos constantes. Além disso, Larraín (2008, p.34) afirma que a nova configuração do capitalismo fomentou um “nuevo clima político que favoreció el crecimiento de poderosos movimientos y partidos de clase obrera, especialmente en Europa central”. Conforme Anderson (2004), esse mesmo clima fez surgir a necessária crítica ao marxismo e a tentativa de compreender a singular realidade russa, tendo como base as categorias científicas desenvolvidas por Marx.

Frente a situação político-social russa, marcada pela polarização e conflitos de classe, termos como “el ‘punto de vista de clase’ y los ‘intereses de clase’ adquieren abrumadora importância” na gramática da luta política (LARRAÍN, 2008, p.34). Lênin busca criar os “conceitos e métodos necessários para a condução de vitoriosa luta proletária pelo poder na Rússia” (ANDERSON, 2004, p.33) esbarrando, porém, nos limites do conceito de ideologia. Assim, o pensador russo precisa encontrar resposta para as condições concretas de formação da consciência, ou, como expressa Boron (2006, p.65), se “é razoável supor que, numa sociedade como a capitalista, a consciência socialista possa florescer como resultado da luta de classes”.

Para Lênin, a classe operária possuía uma consciência espontânea e outra real. A consciência espontânea agrupava os trabalhadores em seus sindicatos e a real era socialdemocrata, formada fora dos movimentos trabalhistas (LARRAÍN, 2008). Segundo Lênin (2006), por meio da ideologia socialdemocrata, os interesses da classe proletária não seriam plenamente satisfeitos e mais, seriam limitados pela burguesia. Desta forma, o autor afirma que a consciência socialista somente poderia ser levada de fora aos trabalhadores, por meio do partido.

Em termos práticos isso se concretizava na experiência histórica que, conforme Lênin (2006), demonstrava que a consciência operária, somente por seu esforço, era capaz de se desenvolver até a formação sindicalista e que os limites da ação proletária eram dados, então, pela ideologia socialdemocrata, externa aos reais interesses da classe operária.

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Lênin (2006) afirma que, assim como a teoria socialdemocrata foi desenvolvida por intelectuais burgueses e importada para os movimentos proletários, a teoria socialista utópica foi desenvolvida por intelectuais burgueses separados da classe operária e aceita pelos revolucionários socialistas. No contexto russo, o papel de inserir os princípios do materialismo histórico nos movimentos dos operários caberia ao partido. O marxismo é considerado uma ideologia diferente por Lênin, pois foi desenvolvido por uma intelligentsia socialista revolucionária que, ao contrário do sindicalismo, desenvolvido embrionariamente dentro da ideologia burguesa, se desenvolveu em condições de realizar a crítica à própria ideologia. O marxismo apresenta os recursos da ciência materialista e foi criado em contato com a realidade proletária.

Segundo Lênin cabe ao partido inserir os valores e idéias revolucionários, formados pela intelligentsia burguesa, para dentro da classe operária e a esta cabe conduzir os interesses do partido. Assim, a classe trabalhadora seria, até certo ponto, incapaz de seguir seu próprio interesse de classe devido à ideologia, dependendo de uma intelligentsia socialista organizada em partido. Conforme o pensador russo, “grandes massas de operários urbanos e da ‘plebe’ das cidades ansiavam por lançar-se à luta, mas os revolucionários careciam de um Estado- maior de dirigentes e organizadores” (LÊNIN, 2006, p.98).

Por isso, “Plejanov acusó a Lenin de concebir a la clase obrera como un sujecto pasivo que va siendo llevado hacia el socialismo por un espíritu no histórico, la intelligentsia socialista organizada en un partido” (LARRAÍN, 2008, p.38). Essa crítica, porém, não pode ser considerada adequada ao pensamento de Lênin, que afirmou que “a clase es representada por el partido y el partido por sus líderes, sin ninguna posibilidad de contradicciones entre ellos. Como el proletariado es disparejo en su conciencia, se requiere el partido para unificarla. Pero como el partido internamente reproduce otras desigualdades, los líderes son necesarios para unirlo” (LARRAÍN, 2008, p.38). Dito de outra forma, Lênin (2006) não propunha o partido como novo sujeito revolucionário e sustentava a necessidade de uma relação dialética entre o partido e as massas, negando com isso a passividade das massas. Durante o regime socialista soviético, porém, a realidade política foi organizada de tal forma que o partido tornou-se uma entidade separada dos interesses da classe proletária (ANDERSON, 2004).

Para Lênin, a ciência materialista histórica representaria um papel fundamental na formação de uma consciência de classe.76 A ideologia socialista não seria, para o autor, a expressão da consciência de classe, mas a possibilidade de elevação da consciência proletária espontânea para a organização da luta revolucionária. Por isso, afirma Larraín (2008, p.40), “en lo que concierne a la clase obrera, ciencia e ideología se fusionan. Los contenidos de la ideología socialista son entregados por la ciencia”. Lênin, portanto, contrapõe-se à compreensão de Marx, “para quien el materialismo histórico era una ciencia desarrollada por intelectuales en estrecho contatacto con el movimiento obrero y la ideología era una forma distorsionada de conciencia que ocultaba relaciones reales contradictorias” (LARRAÍN, 2006, p.40).

Lênin desenvolve uma análise em que a ideologia não é a expressão dos valores da classe dominante, universalizados como falsa consciência, mas um conjunto de valores e interesses emanados da realidade de cada classe. Por isso, não considera o gregarismo sindicalista uma consciência proletária completa, pois este possui limites próprios da condição de produção a que os trabalhadores estão submetidos. Também não considera o socialismo uma ideologia realmente proletária, mas apenas o caminho, por meio da ciência, para a revolução.

O revolucionário russo afirma que a ideologia burguesa difere da socialista, pois é formada pelos intelectuais burgueses sem os princípios críticos da ciência materialista histórica, enquanto a ideologia socialista é desenvolvida pelos intelectuais burgueses, com os recursos da ciência e definida por seu caráter de oposição crítica à ideologia burguesa e do que dela emana. Uma ideologia proletária genuína, formada por intelectuais proletários, somente surgiria após a conscientização socialista. Esta não apenas tornaria possível a revolução, mas uma vez compartilhada, tornaria possível o desenvolvimento ideológico original da classe trabalhadora.

Significa afirmar que, para Lênin, o conceito adquire um significado mais amplo, a ideologia não é mais enganosa ou falsa, mas constitui o conjunto de valores e ideais de determinados grupos sociais. Nas palavras de Larraín (2008, p.41), ideologia é “concebida como un dominio o campo de lucha teórica en la que se expresan diferentes intereses de clase. Estos intereses de clase contradictorios se manifiestan en diferentes ideologías de clase que

76 Uma crítica pertinente, efetuada ao pensamento de Lênin, é a aparente confiança depositada pelo revolucionário no papel da ciência materialista. A ciência é considerada a redenção da consciência, estando acima das ideologias e representando um critério de verdade que não apenas é ilusório, mas, até certo ponto, simplista.

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están en 'lucha ideológica' entre si”. Assim, existem duas ideologias principais, a revolucionária e a burguesa. Distinguir entre uma e outra, segundo Lênin, seria possível por meio do conteúdo de cada ideologia, a proletária seria a ideologia que realiza a crítica total ao capitalismo e à ideologia burguesa.

Para Lênin, portanto, é possível delimitar a ideologia proletária por sua oposição à burguesa. A crítica à ideologia dominante burguesa emanaria da organização popular e de sua ideologia de classe proletária. A crítica a uma ideologia somente é possível de um ponto-de- vista diferente, de outra ideologia, “en esta confrontación, la crítica de las ideas dominantes aparece como una expresión de los intereses políticos de las clases dominadas” (LARRAÍN, 2008, p.35).

Lênin identificou que seria possível a existência de diversas ideologias e, assim, neutralizou o conceito. Segundo Larraín (2008, p.41), “con Lenin el concepto de ideología es finalmente neutralizado. Si la ideología burguesa o religiosa no son científicas, no es porque ellas sean 'ideología' en el sentido de Marx, sino porque son específicamente burguesa o religiosa. La connotación negativa ha sido desplazada de la noción misma de ideología”. Mais do que neutralizar o conceito, Lênin se desvia da tradição marxista da falsa consciência e desenvolve mais uma variação do conceito de ideologia como visão de mundo relativa ao grupo social. O que ainda liga a perspectiva leninista à ideologia como falsa consciência, e a distancia da concepção de Mannheim, é a estreita vinculação com o conceito marxista de luta de classes. Para Lênin, a luta ideológica deve ser realizada para possibilitar a luta de classes que possibilitaria a revolução. Como o pensador afirma, “a amplitude da revolução será maior se a fizerem, não assustados pelos social-democratas, (...) que não querem a vitória sobre o tsarismo, mas um arranjo com ele” (LÊNIN, 1977, p. 49).

Nesse sentido, Lênin considera que a Rússia possui uma história singular. O desenvolvimento do capitalismo neste país segue um caminho distinto do rumo inglês, francês ou alemão, por exemplo. Lênin descreve, em sua obra “O desenvolvimento do capitalismo na Rússia”, que o capitalismo russo se desenvolve a partir do campo, por isso, “o capitalismo é na Rússia um fato progressista, ainda que seja opressivo para as massas trabalhadoras (...) já que libera as forças produtivas, quebra os vínculos feudais que impedem seu desenvolvimento, forma o proletariado” (GRUPPI, 2000, p.17). Por isso, segundo Gruppi (1979, p.6), Lênin acredita que “o desenvolvimento do capitalismo na Rússia é não apenas objetivamente necessário, mas é um fenômeno progressista”. Dessa relação decorrem os

limites ideológicos reais do proletariado russo, formados pela social-democracia, em meio à disputa entre o Estado feudal e o burguês (LÊNIN, 1986).

a dominação burguesa sobre o proletariado não se sustentava somente mediante o uso da violência física e que, para que a burguesia organizasse toda a sociedade de acordo com seus próprios interesses, teria que desenvolver uma visão de mundo (Weltanschaaung), que tornaria essa submissão ao seu poder aparentemente espontânea. Segundo Buttigieg (2003, p. 45), Gramsci acreditava que “o que possibilitava às classes dominantes tomar o poder e mantê-lo não era apenas a força bruta, mas também, e talvez mais fundamentalmente, a obtenção da dominação cultural – isto é, a sua capacidade de difundir por toda a sociedade suas filosofias, valores, gostos, etc.”. Conseqüentemente, Gramsci também compreende que, para que a revolução pudesse ocorrer seria necessária uma emancipação ideológica, por meio de um rompimento com as crenças dominantes.

O autor italiano afirma, assim como o faz Lênin, que a realidade da Europa Ocidental é distinta da realidade da Europa Oriental. Na Europa Ocidental, contudo, Gramsci identifica uma maior força ideológica da burguesia que penetra mais profundamente nos valores e crenças da classe proletária. Além disso, analisa que a relação de forças entre Estado e sociedade civil é diferente entre a parte Oriental e a parte Ocidental da Europa (GRAMSCI, 2000a).