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2 EDUCAÇÃO MATEMÁTICA E CIDADANIA: CONSTRUÇÃO

2.6 Cidadania no Mundo Moderno

2.6.1 A Revolução Inglesa

O ponto de partida para o desenvolvimento dos direitos de cidadania tem sua localização no século XVII, com a Revolução Inglesa. A transição do feudalismo ao capitalismo na Europa centro-ocidental impôs uma nova visão de mundo, uma vez que os processos de secularização, racionalização e individualização substituíram a milenar percepção teológica das coisas. A partir de então, a legitimidade de uma sociedade hierarquizada, alicerçada em privilégios de nascença, começava a perder força. Segundo Mondaini (2005, p. 115),

o primado resignador da fé recuou diante da força crítica e otimista do saber científico. Os limites impostos pela natureza (e devidamente justificados pela ética religiosa medieval) foram cada vez menos vistos como algo

26 Filos. Atitude ou doutrina que prega a indiferença ante a cultura, os interesses e/ou soberania nacionais, com a

intransponível aos seres humanos. Contra o mundo de “verdades reveladas”, assentado no trinômio particularismo/organicismo/ heteronomia27, construiu-

se um outro pautado no trinômio universalidade/individualidade/autonomia, no qual a descoberta das verdades depende do esforço criativo do homem.

O mesmo autor acrescenta que tal projeto civilizatório não podia ser conivente com um corpo ético que, de uma parte, recomendava aos trabalhadores pobres do campo a aceitação passiva do sofrimento, uma vez que este trazia em si a purificação e o caminho seguro dos céus e que, de outra parte, tranquilizava a consciência dos nobres na mais profunda ociosidade. Assim, uma nova visão de mundo exigia o rigoroso questionamento dos princípios que embasavam o sistema estamental28 de privilégios, a mudança revolucionária da percepção da desigualdade entre os homens como fato natural e/ou instituído pela vontade divina e, por isso mesmo, fadado à eternidade.

Quanto ao citadino, o fato de habitar uma cidade não mais bastava. Os novos tempos exigiam que o homem passasse a ter também direitos nessa mesma cidade e não mais somente deveres. Mondaini (2005, p. 116) afirma que, nesse contexto, “a obscuridade de uma Era dos Deveres abre espaço para uma promissora Era dos Direitos”. O marco para tal transição configura-se a partir daquela que é considerada a primeira revolução burguesa da história, a Revolução Inglesa, que se inicia em 1640 e tem sua conclusão quase meio século depois, em 1688. Nesse momento, o poder estatal passou para as mãos de uma nova classe social, abrindo caminho para o livre desenvolvimento do modo de produção e, dessa maneira, dando origem ao primeiro país capitalista do mundo. De acordo, ainda, com Mondaini (2005, p. 122),

o velho poder estatal, protetor da antiga ordem feudal, teve que ser apeado por uma guerra civil, uma guerra de classes que opôs, de um lado, “o despotismo do Rei Carlos I defendido pelas forças reacionárias da Igreja vigente e pelos proprietários de terra conservadores” e, de outro lado, “o Parlamento com o apoio entusiástico das classes mercantis e industriais na cidade e, no campo, dos pequenos proprietários rurais, da pequena nobreza progressiva e das massas mais vastas da população.

Soberania parlamentar, monarquia limitada, política externa imperialista e um mundo lucrativo para os homens são heranças deixadas pela Revolução Inglesa. Conquistas concernentes ao direito de cidadania também se evidenciaram, e uma delas foi a superação das tradicionais formas pelas quais o poder absolutista monárquico era legitimado. Teorias

27 Condição de pessoa ou de grupo que receba de um elemento que lhe é exterior, ou de um princípio estranho à

razão, a lei a que se deve submeter (FERREIRA, 2000).

28 Estamento: cada um dos grupos da sociedade com status jurídico próprio, como a nobreza e o clero

defensoras da idéia do Direito Divino dos reis perdiam fôlego e já não mais sustentavam o cerco imposto pela nova racionalidade.

Em torno do cenário político, social e econômico que permeava a Revolução Inglesa, Thomas Hobbes escreveu, em 1651, O Leviatã, que se tornou a sua maior obra política e umas das maiores em sua época. Nela, faz uma defesa incondicional do rei (o Soberano), defendendo a monarquia e o poder absoluto. Em Hobbes (2000), o Estado absoluto passava a ser visualizado como o resultado do estabelecimento de um “contrato social” entre indivíduos que viviam em “estado de natureza”.

Defendendo a ideia de que todos os homens tinham direito a tudo, em seu estado de natureza, Hobbes (2000) assevera que o direito de natureza é a liberdade que cada homem possui de usar seu próprio poder, da maneira que lhe aprouver, para a preservação de sua vida e, em consequência, de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e a razão lhe indiquem como meios adequados a esse fim. Portanto, sem freios às suas ações, o estado de natureza é um estado onde “o homem é o lobo do próprio homem”.

De acordo com Hobbes (2000), visando a evitar um possível “estado de barbárie” os homens estabelecem entre si um contrato social, trocando sua liberdade pelo “direito à vida” e, para tanto, abrem mão de sua individualidade e a entregam a um poder soberano – o Estado Leviatã – que, em contrapartida, garantiria aos seus súditos um estado de segurança, tranquilidade e sobrevivência por meio de uma ordem comum a todos que estivessem sob seu domínio. A propósito do assunto, observa Mondaini (2005, p. 129) que, “não obstante seu caráter absolutista, o pensamento hobbesiano já aponta para uma percepção moderna da relação Estado/indivíduos, pois situa o primeiro como fruto da vontade racional dos segundos”.

Em Hobbes, o Estado é apresentado como uma invenção artificial do homem, que consensualmente se supera rumo a uma estrutura maior que si próprio. Neste momento, nasce a sociedade política organizada, que visualiza na pessoa do soberano aquele que tem os poderes ilimitados e necessários para proteger a vida de todos. Entretanto, cabem aqui alguns questionamentos: Até onde os poderes do soberano poderiam chegar? Por que possuir um poder ilimitado? Será que um decidindo por todos seria a melhor opção, para o Estado Civil Organizado?

A partir de então, e no mesmo contexto referido acima, surgiu uma nova concepção de Estado, apresentada por John Locke. Assumindo tendências de postura liberal, Locke (1983) defendia os princípios de liberdade individual, colocando o indivíduo sobre as relações pós- contratuais e o direito à propriedade, e propunha uma limitação política dos poderes estatais.

Locke comungava com Hobbes quanto à passagem do estado de natureza para o estado civil mediante um pacto; à liberdade e a igualdade dos indivíduos no estado de natureza; ao argumento da renúncia. Também para Locke, o indivíduo renuncia aos seus poderes originais em prol de um bem comum: todos concordam em obedecer às leis e sabem a quem devem obedecer. A diferença fundamental é que, na visão de Locke, tudo isso tem limites: os direitos naturais, a renúncia, a obediência. Ou seja, Locke impôs limites no que, na teoria de Hobbes, parecia ser ilimitado. Enquanto para Hobbes o poder é absoluto, indivisível e irresistível, Locke defendia exatamente o contrário: para ele, o poder é limitado, divisível e resistível. Com tal pensamento, Locke rompeu com o “pacto de submissão” proposto por Hobbes, em nome de um “pacto de consentimentos” e, assim, abria caminho para os primeiros passos daquilo que hoje conhecemos como “direitos humanos”; em outras palavras, nos abriu a possibilidade histórica de um Estado de direito, um Estado de Cidadãos, regido não mais por um poder absoluto, mas por uma Carta de Direitos.

Entretanto, Bobbio (1992, p.75) aponta que

não existe atualmente nenhuma carta de direitos que não reconheça o direito à instrução – crescente, de resto, de sociedade para sociedade – primeiro elementar, depois secundária e pouco a pouco, até mesmo universitária. Não me consta que, nas mais conhecidas descrições do estado de natureza, esse direito fosse mencionado. A verdade é que esse direito não fora posto no estado de natureza porque não emergia na sociedade da época em que nasceram as doutrinas jusnaturalistas, quando as exigências fundamentais que partiam daquelas sociedades para chegarem aos poderosos da Terra eram principalmente exigências de liberdade em face das igrejas e dos Estados, e não ainda de outros bens, como a instrução, que somente uma sociedade mais evoluída economicamente e socialmente poderia expressar.

Hoje, praticamente não há país no mundo que não garanta, em seus textos legais, o acesso de seus cidadãos à educação básica. Afinal, como observa Cury (2002, p. 246), “a educação escolar é uma dimensão fundante da cidadania, e como tal princípio é indispensável para políticas que visam à participação de todos nos espaços sociais e políticos e, mesmo, para a reinserção no mundo do trabalho”.

Não são poucos os documentos de caráter internacional, assinados por países da Organização das Nações Unidas – ONU, que reconhecem e garantem esse acesso a seus cidadãos. Tal é o caso do art. XXVI da Declaração Universal dos Direitos Humanos29, de 1948, ao afirmar que

1. Todo ser humano tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória. A instrução técnico-profissional será acessível a todos, bem como a instrução superior, esta baseada no mérito.

2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos, e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz. 3. Os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que será

ministrada a seus filhos.

Do mesmo assunto ocupa-se a Convenção Relativa à Luta contra a Discriminação no Campo do Ensino30, de 1960, que considera discriminação na esfera educacional toda distinção, exclusão, limitação ou preferência que, com fundamento na raça, cor, sexo, língua, religião, política ou qualquer outra opinião, origem nacional ou social, condição econômica ou de nascimento, tenha a finalidade ou o efeito de destruir ou alterar a igualdade de tratamento quanto à educação, em especial:

1. Excluir qualquer pessoa ou grupo de pessoas do acesso a diversos tipos e grau de ensino;

2. Limitar a um nível inferior a educação de uma pessoa ou de um grupo;

3. Sob reserva das provisões do artigo 2 da presente Convenção, instituir ou manter sistemas ou estabelecimentos de ensino separados para pessoas ou grupos;

4. Colocar uma pessoa ou grupo numa situação de ensino incompatível com a dignidade humana.

Ao empregar a palavra “ensino”, a aludida Convenção entende que esta se refere ao ensino de diversos tipos e graus e compreende o acesso ao ensino, o nível e a qualidade do mesmo e as condições em que é ministrado.

Em conformidade com o exposto acima, o Artigo 13 do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais31 de 1966, em seus parágrafos primeiro e segundo, assegura o que segue.

Parágrafo 1 - Os Estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa à educação. Concordam em que a educação deverá visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade e a fortalecer o respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais. Concordam ainda que a educação deverá capacitar todas as pessoas a participar efetivamente de uma sociedade livre, favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e entre todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos e promover as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.

Parágrafo 2 - Os Estados-partes no presente Pacto reconhecem que, com o objetivo de assegurar o pleno exercício desse direito:

1. A educação primária deverá ser obrigatória e acessível gratuitamente a todos. 2. A educação secundária em suas diferentes formas, inclusive a educação

secundária técnica e profissional, deverá ser generalizada e tornar-se acessível a todos, por todos os meios apropriados e, principalmente, pela implementação progressiva do ensino gratuito.

3. A educação de nível superior deverá igualmente tornar-se acessível a todos, com base na capacidade de cada um, por todos os meios apropriados e, principalmente, pela implementação progressiva do ensino gratuito.

4. Dever-se-á fomentar e intensificar, na medida do possível, a educação de base para aquelas pessoas que não receberam educação primária ou não concluíram o ciclo completo de educação primária.

5. Será preciso prosseguir ativamente o desenvolvimento de uma rede escolar em todos os níveis de ensino, implementar-se um sistema adequado de bolsas de estudo e melhorar continuamente as condições materiais do corpo docente. 6. Os Estados-partes no presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade

dos pais e, quando for o caso, dos tutores legais, de escolher para seus filhos escolas distintas daquelas criadas pelas autoridades públicas, sempre que atendam aos padrões mínimos de ensino prescritos ou aprovados pelo Estado, e de fazer com que seus filhos venham a receber educação religiosa ou moral que esteja de acordo com suas próprias convicções.

7. Nenhuma das disposições do presente artigo poderá ser interpretada no sentido de restringir a liberdade de indivíduos e de entidades de criar e dirigir instituições de ensino, desde que respeitados os princípios enunciados no parágrafo 1º do presente artigo e que essas instituições observem os padrões mínimos prescritos pelo Estado.

E por último, temos a Declaração Mundial sobre Educação para Todos – Declaração de Jomtien32 (UNESCO, 1990), que tem como um dos objetivos de uma Educação para Todos o que traz em seu Artigo 1, intitulado Satisfazer as Necessidades Básicas de Aprendizagem:

1. Cada pessoa – criança, jovem ou adulto – deve estar em condições de aproveitar as oportunidades educativas voltadas para satisfazer suas necessidades básicas de aprendizagem. Essas necessidades compreendem tanto os instrumentos essenciais para a aprendizagem (como a leitura e a escrita, a expressão oral, o cálculo, a solução de problemas), quanto os conteúdos básicos da aprendizagem (como conhecimentos, habilidades, valores e atitudes), necessários para que os seres humanos possam sobreviver, desenvolver plenamente suas potencialidades, viver e trabalhar com dignidade, participar plenamente do desenvolvimento, melhorar a qualidade de vida, tomar decisões fundamentadas e continuar aprendendo. A amplitude das necessidades básicas de aprendizagem e a maneira de satisfazê-las variam

segundo cada país e cada cultura e, inevitavelmente, mudam com o decorrer do tempo.

2. A satisfação dessas necessidades confere aos membros de uma sociedade a possibilidade e, ao mesmo tempo, a responsabilidade de respeitar e desenvolver sua herança cultural, linguística e espiritual, de promover a educação de outros, de defender a causa da justiça social, de proteger o meio- ambiente e de ser tolerante com os sistemas sociais, políticos e religiosos que difiram dos seus, assegurando respeito aos valores humanistas e aos direitos humanos comumente aceitos, bem como de trabalhar pela paz e pela solidariedade internacionais em um mundo interdependente.

3. Outro objetivo, não menos fundamental, do desenvolvimento da educação, é o enriquecimento dos valores culturais e morais comuns. É nesses valores que os indivíduos e a sociedade encontram sua identidade e sua dignidade.

4. A educação básica é mais do que uma finalidade em si mesma. Ela é a base para a aprendizagem e o desenvolvimento humano permanentes, sobre a qual os países podem construir, sistematicamente, níveis e tipos mais adiantados de educação e capacitação.

Diante do exposto, não podemos negar os esforços levados adiante pela Organização das Nações Unidas, através da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), no sentido da universalização do ensino, pelo menos o fundamental. No entanto, conforme observa Cury (2002), como se trata de direito reconhecido, faz-se necessário que ele seja garantido e, por esta razão, a primeira garantia é que ele esteja inscrito em lei de caráter nacional, uma vez que o contorno legal indica os direitos, os deveres, as proibições e as possibilidades de limites de atuação. Acrescente-se que tudo isso possui grande impacto no cotidiano das pessoas, mesmo que nem sempre elas estejam conscientes de todas as implicações e consequências.

Nesse contexto, importa lembrar com Bobbio (1992, p. 79) que

a existência de um direito, seja em sentido forte ou fraco, implica sempre a existência de um sistema normativo, onde por “existência” deve entender-se

tanto o mero fator exterior de um direito histórico ou vigente quanto o reconhecimento de um conjunto de normas como guia da própria ação. A figura do direito tem como correlato a figura da obrigação.

Neste sentido, poderíamos entender que, juntamente com o direito à educação, o cidadão tem o dever de se instruir. No entanto, em muitos casos, a realização dessas expectativas e do próprio sentido expresso da lei confronta-se com as adversas condições sociais de funcionamento da sociedade em face dos estatutos de igualdade política por ela reconhecidos. É por esta razão, entre outras, que a importância da lei não é identificada e reconhecida como um instrumento linear ou mecânico de realização de direitos sociais; ela acompanha o desenvolvimento contextualizado da cidadania em todos os países. De acordo com Cury (2002, p. 247), essa importância

nasce do caráter contraditório que a acompanha: nela sempre reside uma dimensão de luta. Luta por inscrições mais democráticas, por efetivações mais realistas, contra descaracterizações mutiladoras, por sonhos de justiças. Todo o avanço da educação escolar, além do ensino primário foi fruto de lutas conduzidas por uma concepção democrática da sociedade em que se postula ou a igualdade de oportunidades ou mesmo a igualdade de condições sociais.

No entanto, é preciso reconhecer que a inscrição de um direito no código legal de um país não acontece da noite para o dia. Trata-se da história da produção de um direito que tem sua clara presença a partir da era moderna, tendo a Revolução Inglesa como marco. Não obstante, a Revolução Americana também deixou sua contribuição à consolidação do que entendemos hoje por cidadania.