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A RODA DA VIDA – Dzongsar Khyentse Rinpoche

No documento Manual Do Budismo (páginas 44-47)

"No budismo, existem dois tipos de desafio: o primeiro é entender a vastidão e a

profundidade da filosofia budista;

o segundo é aceitar o aspecto de simplicidade do budismo.

O primeiro desafio é difícil, mas pode ser vencido ao se estudar, ler e ouvir os argumentos

filosóficos repetidas vezes.

O segundo é extremamente difícil de ser vencido, porque é fácil demais."

Estou certo de que muitos de vocês já viram a pintura da Roda da Vida. É uma pintura muito popular que vocês podem ver na frente de quase todos os monastérios budista [tibetanos].

De fato, alguns eruditos budistas acreditam que esta pintura existiu antes mesmo das estátuas de Buddha. Este é provavelmente o primeiro símbolo budista que existiu.

A pintura é, de forma livre, uma representação da vida. Suponho que a curiosidade sobre a vida é uma grande curiosidade que nós temos. Mas a definição de vida é uma coisa bem diversa, então temos de chegar a um acordo mútuo sobre isto. Sei que muitos se referem a isto como a Roda da Vida, sidpa'i khorlo.

Mas, realmente, a palavra tibetana sidpa não é realmente "vida". Sidpa realmente significa "existência possível" — talvez seja existente, talvez não, mas é possível que exista.

Essa é uma interpretação da vida de acordo com o budismo.

A interpretação em si é muito profunda, eu penso. E então khorlo significa "a roda", "o chakra", "a mandala", o que novamente em si mesmo possui algum significado profundo porque, quando falamos sobre "mandala", estamos falando sobre o caos; ao mesmo tempo, estamos falando sobre a ordem. Então, estamos falando sobre uma ordem caótica acerca da vida.

Eu estava perguntando às pessoas sobre a definição da palavra "vida". Há muitas definições, mas uma que me chamou a atenção foi "vir à vida", "tornar-se animado". Tenho um sentimento de que, quando falamos sobre "animado", estamos falando sobre algo como a consciência. Então, basicamente, quando falamos sobre "vida", penso que de algum modo estamos falando sobre algo que tem a ver com a mente, a consciência, o estado desperto. Vocês concordariam com isso?

Então, tudo bem, há esta pergunta: Qual é o propósito da vida? Mas antes de falarmos sobre o propósito da vida, o que é vida?

Agora, de acordo com o budismo, a vida é nada mais é que uma percepção, uma percepção contínua. Isto se tornou o assunto principal e fundamental dos ensinamentos budistas, que é ensinado de muitos modos diferentes, e um modo é através da pintura, eu suponho.

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Se perguntarem aos budistas "O que é vida?", eles responderão: "É isto, isto é vida".

De qualquer modo, como disse, a vida é uma percepção. Uma percepção do quê? Quem é o percebedor?

O porco preto no centro.

É muito difícil ensinar sobre isto. Isto tem sido o assunto principal dos estudos budistas porque vocês têm de definir o que é ignorância. No budismo, quando julgamos o que é ignorância e o que não é ignorância, não julgamos algo como ignorante ou mau baseado na moralidade ou na ética. Isto tem de ser julgado com base na sabedoria. Então, quando falamos sobre ignorância, estamos falando sobre uma mente que está no nível da anormalidade.

Quando a mente está no nível da normalidade, então isso é sabedoria. Brevemente, como vocês definem o que é normal ou o que não é normal?

A definição de Nagarjuna do que é normal é quando algo não é dependente. Se uma entidade depende de outra entidade, então nunca estamos certos se a cor ou a qualidade desta entidade presente é realmente a natureza última, porque ela é dependente de uma segunda entidade. Há sempre uma possibilidade de que a segunda entidade possa corromper a primeira entidade. Então, do mesmo modo, uma mente que é dependente de um objeto, uma mente que é dependente de todos os tipos de educação, influência, meditação, é uma mente anormal de acordo com Nagarjuna. Então, o que é uma mente normal? É quando vocês renunciam completamente a todos estes objetos, todas estas entidades da qual sua mente é total ou parcialmente dependente.

Então, agora vocês podem dizer que o porco, que representa a ignorância, é aquele que causa toda esta percepção. Esta não é a melhor pintura. Idealmente, o galo e a cobra deveriam ser vomitados da boca do porco, porque o porco faz nascer à paixão, o galo — é a agressão, faz nascer a cobra.

Agora, por favor, não venham com aquela mentalidade pequena sobre isto ser uma coisa politicamente incorreta, um porco representando a ignorância e assim por diante. Isto é um debate inútil! Por favor, vocês têm de entender que isto é um ensinamento simbólico. E, de algum modo, não sei por que, os porcos sempre têm sido desafortunados.

Os budistas têm representado os porcos como o símbolo da ignorância e os muçulmanos até mesmo se privaram de comê-los.

De qualquer modo, o porco representa a ignorância. Da ignorância vem à esperança, que é realmente como a mãe da paixão, e então da ignorância vem o medo, que é como a mãe da agressão.

Então, temos três tipos de fatores mentais.

É claro que o original é a ignorância, que faz nascer à agressão e a paixão. Então, vocês podem dizer que estes três são os que percebem as coisas. Estávamos falando sobre a percepção. Estes três percebem as coisas de muitos, muitos modos diferentes.

Às vezes, a partir da ignorância vem a esperança de querer ser bom. A partir deste querer sem bom, uma pessoa comporta-se ou manifesta-se de um modo compassivo e não-violento. Neste caso, as percepções dessa pessoa são mais saudáveis, então vocês podem dizer que este tipo de pessoa experimenta percepções como o reino humano, o reino dos deuses e o reino dos semideuses (ou deuses invejosos).

Às vezes, a partir da ignorância vem à paixão ou agressão, que criam muita confusão — matam, roubam, destroem a si mesmo ou os outros e fazem nascer percepções não-saudáveis, dolorosas, agressivas. Isso é representado no que chamamos de "três reinos inferiores" — o reino do inferno, o reino dos fantasmas famintos e o reino animal. Então, estes são os seis reinos.

Aqui, há uma mensagem muito importante. Quando os budistas falam sobre o inferno, eles não estão falando de um lugar concreto em algum lugar sob a Terra. E quando falamos sobre o céu, não estamos falando sobre algum lugar onde tudo funciona. Não estamos falando de lugar ao qual se migra, basicamente. Quando falamos sobre ir para o inferno, não estão falando sobre ser punido. Penso que o conceito de punição é uma coisa muito nova para os budistas, realmente. Apesar de podermos dizer, "Se vocês fizerem tal e tal karma negativo, por causa deste karma negativo vocês irão para o inferno", não estamos falando que há alguém chamado "karma" que irá então forçá-los a experienciar

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os reinos inferiores como uma punição. Como falamos antes, é uma percepção, dependente da sua mente, dependendo do seu estado mental.

Vamos discutir os seis reinos

Já que o reino do inferno é o pior, vamos falar sobre ele primeiro, de modo que possamos tirá-lo do caminho. Isto é realmente muito profundo.

No reino do inferno, todos os tipos de sofrimento são representados.

No centro do reino do inferno senta-se Yamaraja, que é como o Senhor do Inferno. Sentado confortavelmente sobre um trono feito de crânios. A pergunta interessante é "Quem é ele?”. A partir de muitos textos Mahayana, sabemos quem ele é. Este é ninguém mais que o Bodisatva Manjushri. E quem é Manjushri? Manjushri é o símbolo da sabedoria.

Então, novamente aqui, o Senhor do Inferno, que decide quem deve sofrer o quê, por assim dizer, é realmente a sua própria natureza última de sabedoria, sentada lá. Então, há coisas como ser queimado no inferno quente, cair na armadilha no gelo e nas montanhas de neve do inferno frio, e então há todos os tipos de animais.

O Senhor do Inferno, Yamaraja, segura um espelho. Novamente, isto é muito simbólico — para estarem livres do inferno, vocês não procuram por uma fonte externa, vocês olham para si mesmos: a meditação, como meditação shamatha ou meditação vipashyana.

Agora, há algo muito interessante sobre o reino do inferno. Dentro deles, vocês podem ver uma luz branca subindo, que simboliza que o inferno também é impermanente. Não é que, se vocês forem uma vez para o inferno, então é isso e não há mais saída. Não é assim. Afinal, é a percepção que vocês têm. Se mudarem sua percepção, vocês também podem sair do inferno. Então, há uma pessoa que é representada deixando o inferno.

Então há o reino animal, com todos os tipos de animais. Os tibetanos não viam muitos animais. Os australianos seriam melhores pintando este reino. Os animais nos oceanos e os animais sobre a terra — suponho que eles devem ter esquecido os animais no céu, como os pássaros.

E então há o reino dos fantasmas famintos. Os seres aqui têm um estômago muito grande, um pescoço muito fino e uma boca muito pequena, e estão sempre com fome e com sede, procurando por comida em todo lugar. De modo bem interessante, há alguns fantasmas famintos sentados lá que têm jóias, mas eles são tão mesquinhos que não as dão às outras pessoas. Claro que não! Mas também não as usam para si mesmos. Apenas as guardam para o próximo dia ou para o próximo ano.

Então há o reino dos deuses — castelos, garotas dançando, belas árvores que têm todos os tipos de ornamentos, pessoas passando sua vida apenas ouvindo música, tocando música, tomando banhos, tudo é muito perfeito.

E há o reino dos deuses invejosos. Eles são tão ricos quanto os deuses, mas têm um problema, que é a briga. Eles adoram brigar porque são invejosos todo o tempo. Por exemplo, eles lutam muito com os deuses. Esta árvore é chamada "a árvore que realiza desejos". Ela nasce realmente no reino dos deuses invejosos. Os deuses invejosos ficam ocupados tomando conta desta árvore, mas ela é tão grande que, quando dá flores e frutas, geralmente o faz bem lá em cima, e apenas os deuses podem alcançá-las. Então, o esforço de todos os deuses invejosos em tomar conta da árvore é desperdiçado. Isso realmente engatilha muita raiva e inveja, que então cria muita briga entre o reino dos deuses invejosos e o reino dos deuses. Tristemente, os deuses sempre ganham, mas os deuses invejosos simplesmente não desistem. Eles sentem que um dia poderão derrubar aqueles no reino dos deuses.

No reino humano, vemos sofrimento e dor — nascimento, morte, velhice, doença. Ao mesmo tempo, vemos pessoas se divertindo, por exemplo. Também vemos pessoas pensando, contemplando e descobrindo. Então, temos seis reinos.

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1) Quando têm muito orgulho, vocês renascem no reino dos deuses orgulhosos, onde o sentimento que predomina é o orgulho e a procura neurótica pela satisfação dos desejos.

2) Quando têm inveja, renascem no reino dos deuses invejosos ou deuses guerreiros onde o sentimento prevalecente e a consciência estão fixados na Inveja e na discórdia.

3) Quando têm muita paixão, renascem no reino humano onde o que prevalece é a preocupação, o nascimento, envelhecimento, doença e morte.

4) Quando a percepção é filtrada através da ignorância, então vocês experienciam o reino animal, onde o sofrimento experimentado é o da escravidão propiciado pela escuridão e opacidade mental.

5) Quando a percepção é filtrada através do apego, agarramento ou avareza, vocês experienciam o reino dos fantasmas famintos. O mundo dos fantasmas famintos onde o sofrimento está associado à fome e a sede, e a consciência se apega ao sentimento de avareza.

6) Quando a percepção vem mais da agressão, vocês experienciam as coisas de um modo infernal onde o sofrimento está intimamente ligado ao frio e ao calor. O Calor propiciado pela cólera e o frio pela solidão e a tristeza. Mas a palavra "nascer" ou "renascer" significa muito. Ela não necessariamente significa que, bem agora, estamos todos no reino humano e que não estamos nos outros cinco reinos.

Dependendo de qual tipo de karma criamos, nós podemos ir aos outros reinos. Se o karma para experienciar o reino do inferno for o mais forte, então, eu suponho vocês mudarão esta forma e então, com outra forma experienciarão o tipo infernal de percepção. Mas de acordo com o budismo Mahayana, os seis reinos são algo que podem acontecer no decorrer de um único dia.

No documento Manual Do Budismo (páginas 44-47)