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Capítulo 2 OS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA

2.1. A adaptação das instituições americanas

2.1.2. A ruptura com a Inglaterra e a mudança de valores

A forma de governo americano sofreu forte influência do filósofo inglês John Locke, no séc. XVII, embora a primeira motivação tenha sido hobbesiana65. Locke entendia que o papel do Estado estava em assegurar três direitos de seus cidadãos: vida, liberdade e propriedade (life, liberty e property)66. Thomas Jefferson ao escrever a Declaração de Independência dos EUA, adaptou a filosofia lockeana para fazer constar no documento a expressão pursuit of happiness67 ao invés de property, buscando expressar as convicções do povo americano68:

The single most important influence that shaped the founding of the United States comes from John Locke, a 17th century Englishman who redefined the nature of government. Although he agreed with Hobbes regarding the self-interested nature of humans, he was much more optimistic about their ability to use reason to avoid tyranny. In his Second Treatise of Government, Locke identified the basis of a legitimate government. According to Locke, a ruler gains authority through the consent of the governed. The duty of that government is to protect the natural rights of the people, which Locke believed to include life, liberty, and property. If the government should fail to protect these rights, its citizens would have the right to overthrow that government. This idea deeply influenced Thomas Jefferson as he drafted the Declaration of Independence.

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―A primeira motivação à adoção do modelo federativo foi hobbesiana, uma vez que todos estariam desprotegidos diante do ataque de outros países ou mesmo em um eventual conflito generalizado entre os próprios estados caso não se constituísse um pacto mais sólido de união, como o federativo. Permanecer como uma confederação poderia significar, em tese, um jogo de soma negativa para todos, enquanto a abdicação de uma parcela de poder poderia corresponder à paz e à manutenção da integridade territorial. Apenas a motivação hobbesiana não seria suficiente para estabelecer uma estrutura federativa nos Estados Unidos. Isto porque os founding fathers temiam que o novo poder federal estabelecesse uma relação tirânica com os estados. Em suma, o dilema institucional da passagem da Federação era como criar mais poder e ao mesmo tempo limitá-lo‖ (ABRUCIO, 1998, p. 22, grifos no original).

66 Sobre a influência de Locke na configuração do governo estadunidense, ver: http://www.ushistory.org/gov/2.asp.

Acesso: 19/12/2014.

67 A inclusão do direito a buscar ―felicidade‖ ainda hoje significa um objetivo inspirador, um fator conceitualmente

indefinido e que legitima a sociedade americana na discussão permanente de questões sociais, especialmente sobre melhoria de vida (COSCIA, 2014). ―Ao retirar a palavra property substituindo-a pelo pursuit of happiness na Declaração de Independência dos Estados Unidos, os Founding Fathers rompiam também com a estrutura patrimonialista britânica e sua consequente hierarquização social a partir da noção de riqueza individual, acentuando um sentido mais amplo de bem comum onde o desenvolvimento econômico, entre outros requisitos que compõem o conceito de felicidade, apoia-se no trabalho e na cooperação de todos visando o progresso global da Nação‖ (MARTINS, 2016).

68 ―We hold these truths to be self-evident, that all men are created equal, that they are endowed by their Creator

with certain unalienable Rights, that among these are Life, Liberty and the pursuit of Happiness‖ (U.S.

A adaptação ao pensamento filosófico de Locke retirou da gênese da sociedade americana a ideia de que todos poderiam ser proprietários de terra, o que não significava que sem a terra o povo não pudesse alcançar a felicidade69.

A Declaração de Independência dos EUA, de 4 de julho de 1776, na forma como foi escrita e concebida pode ser considerada a primeira evidência no sentido de que nem todos os que ocupavam o território recém-emancipado da Inglaterra teriam igualdade de acesso a terra.

Tal Declaração também não foi capaz de romper com o padrão de comportamento herdado das instituições britânicas que restringiam o direito de propriedade ao estrangeiro, configurando um problema inicial de um país que se auto definia de ―imigrantes‖70:

First, English common law restricted alien real property rights so while aliens might in theory hold property against all but the king, they could not truly deed, inherit, or devise real property, along with being constantly susceptible to divestiture by the crown. English law then did not. Soon-to-be American colonists inherited this common law, and likewise, restricted property rights to aliens, which in a country of immigrants proved "problematic". (WILSON, 2012, p. 5).

A luta pela desvinculação dos padrões institucionais britânicos e o anseio por um novo modelo de sistema de governo ensejou reflexões pelas elites políticas sobre a melhor forma de configurar a ―Union‖ das treze colônias.

A primeira opção de sistema de governo foi estabelecida por meio da união de estados independentes, de acordo com Artigos da Confederação71. Entretanto, essa opção política deixava a Union vulnerável em relação a poderes estrangeiros, pois não indicava uma unicidade

69 À época da Declaração, a mão-de-obra escrava configurava a base da economia nas colônias do Sul, havendo

pressão na arena política no sentido da permanência desse status quo: ―despite the ringing statement of ‗unalienable

rights‘ in the Declaration of Independence, slavery persisted in every single state‖ (MORONE; KERSH, 2012, p.

73).

70 Esse padrão de rejeição ao estrangeiro é ainda hoje evidenciado nas regras impostas por alguns estados para

transmissão do direito de propriedade a estrangeiro. Nesse sentido ver Quadro 5 deste trabalho.

71 Os artigos da Confederação foram adotados em 1777: ―[a]fter considerable debate and alteration, the Articles of

Confederation were adopted by the Continental Congress on November 15, 1777. This document served as the United States' first constitution, and was in force from March 1, 1781, until 1789 when the present day Constitution went into effect‖ (U.S. ARCHIVES, Articles of Confederation, 2015).

institucional para lidar com questões externas. Outras questões que também se impunham à época era a ausência de um sistema postal de abrangência nacional e a inexistência de responsabilidade expressas para condução dos assuntos de natureza militar, especialmente sobre seu suporte orçamentário72. Esses temas indicavam uma vulnerabilidade na formação do novo país (COSCIA, 2014).

A opção pelo federalismo foi motivada pela necessidade de laços fortes capazes de unir as ex-colônias inglesas e ainda garantir a unidade na arena internacional e à expansão no novo território:

A fundação da Federação americana foi marcada pela presença de um grande dilema para os atores políticos. Tratava-se de sair de uma situação confederativa, em que não havia laços mais fortes de subordinação entre as treze ex-colônias inglesas, para dar origem a um novo poder (a União) que garantisse a unidade frente às potências externas e propiciasse, também, o exercício da autoridade sobre um território em expansão. (ARENDT, 1990, p. 123 apud ABRUCIO, 1998, p. 22).

Percebe-se, assim os esforços das elites políticas em formatar decisivamente as instituições para garantir a união dos estados independentes em prol de uma nação forte.

A maioria das nações do séc. XVIII eram governos unitários e quando o primeiro governo americano começou a se formar, o sistema unitário não era o almejado pelas elites políticas decisórias frente ao desejo de se afastar dos padrões governamentais britânicos:

When Americans declared independence, leaders had to unite thirteen very different states under a national government. History and practice gave them two choices about how to organize their union.

Most nations in the 1780s had unitary governments. […] Local government is an administrative extension of national government. Unitary government was exactly what the United States had rebelled against. Early Americans were certainly not going to reintroduce the same system all over again: that, they agreed, would pose a threat to their liberties. (MORONE; KERSH, 2012, p. 110).

Quando das discussões sobre a melhor forma de governo diante das circunstâncias advindas do relacionamento com a Inglaterra, as elites políticas vislumbraram

72 O federalismo americano foi uma solução centralizadora para a resolução de problemas de eficiência política e

uma iniciativa híbrida: um sistema federal cujo poder seria dividido entre governo federal e estadual73. A proposta tentava conciliar os interesses de grandes e pequenos estados, assim como a amplitude do poder nacional e do estadual, reconhecendo-se a potencialidade do conflito federativo ante a poderes sobrepostos74:

At the Constitutional Convention, the delegates devised an innovative hybrid: a federal

system in which power is divided and shared between national and state governments. The Constitution reserves some decisions for the national government (declaring war, coining money), others reside in the states (establishing schools), and some powers go to both levels (taxing, spending, establishing courts, regulating business). Since each level is independent and their powers overlap, conflict is essentially built into the system […]. (MORONE; KERSH, 2012, p. 110).

A configuração do sistema federal americano levou em consideração o cenário de autonomia de cada estado e a ausência de um poder central em virtude da ruptura com a Coroa britânica para dar conta da condução de assuntos que preocupavam de maneira comum todos os estados75. A opção pelo desenho federativo nasceu, então, do compartilhamento da

73 Na expressão ―unidades locais‖ estão incluídas as ―municipalities (incorporated cities, towns, villages, or

equivalente units), counties; and special districts and regional authorities‖ (PLATT, 2004, p. 249). O governo local

é subordinado ao estadual em muitos aspectos, o que gera uma luta permanente entre governo estadual e local em relação ao nível de controle imposto no sistema americano (CLARK, 1985 apud PLATT, 2004, p. 252). Governos locais são considerados criaturas dos estados, segundo entendimento das Cortes americanas e em tal sentido têm sua configuração institucional definida pelo governo estadual: ―Local governments are considered by the courts as

―creatures of the state,‖ meaning that the state government, through its constitution or laws, empower local governments and define their structure‖. Nesse sentido ver: https://www.michigantownships.org/role_local_govt.asp. Acesso: 01/02/2016.

74 Os idealizadores - ―The Founding Fathers‖ - da Constituição adotaram a perspectiva institucional na elaboração

do texto no sentido de que arranjos organizacionais iriam regular o comportamento político americano. A opção pelo federalismo, então, era reflexo de um debate filosófico em bases institucionais (MORONE; KERSH, 2012, p. 56, 137).

75 Os Anti-Federalistas se opunham aos termos da Constituição por entender que o modelo de Federação ideal seria

o baseado em um governo pequeno com maior empoderamento do poder local, enquanto os Federalistas, que apoiavam a nova configuração da ―Union‖, viam na força do governo nacional a única oportunidade de efetivamente proteger os direitos individuais e dessa forma dotar a nova nação de grande poder (MORONE; KERSH, 2012, p. 96). A contraposição política e ideológica advinda do debate ―big government vs. small government‖ entre Federalistas e Anti-federalistas fez nascer o Great Compromise que resultou da combinação de dois planos: o primeiro apresentado por grandes estados denominado Virginia Plan e outro por pequenos estados por meio do New

Jersey Plan. Por intermédio do compromisso firmado por elites políticas, a representação no Congresso americano

na House of Representatives e Senate passou dotar de mecanismo que buscou equalizar as disparidades entre estados dentro da federação dotando-lhes de poder decisório por meio de representantes eleitos. Fonte: United States Senate (2015). Disponível em: https://www.senate.gov/artandhistory/history/minute/A_Great_Compromise.htm. Acesso: 25/02/2015.

visão de importância de se dar recado às outras nações da unicidade dos estados americanos, ou seja, dos ―estados unidos‖76.

As preocupações sobre a formação da unidade nacional para fazer frente às ameaças externas, é a tônica da introdução do sistema federativo de governo. Nas palavras de Hamilton77:

Uma nação fraca até perde o privilégio de conservar-se neutra. Pelo contrário, com um govemo nacional, poderoso e enérgico, a força natural e a riqueza do país, dirigidas para um fim comum, devem fazer encalhar todos os planos concertados pelo ciúme europeu para tolher os progressos da nossa prosperidade. (HAMILTON; JAY; MADISON, 2003, p. 71).

Em 2 de dezembro de 1823, o então Presidente James Monroe fez um pronunciamento por meio da 7ª Mensagem Anual ao Congresso americano (Seventh Annual Message to Congress) colocando em evidência o distanciamento americano do poderio europeu que pretendia retomar o processo de colonização no continente78.

76 A lógica do pacto estava em mostrar uma nação forte na arena internacional e um governo central fraco na medida

em que os estados mantinham autonomia e poder decisório em áreas a eles reservadas ou, em outras palavras, assuntos que não estivessem expressamente indicados na Constituição como sendo do governo federal. Segundo registros do arquivo americano: ―[t]he work of many minds, the Constitution stands as a model of cooperative

statesmanship and the art of compromise‖. Disponível em

http://www.archives.gov/exhibits/charters/constitution.html. Acesso: 03/09/2014.

77 No texto original em inglês: ―Under a vigorous national government, the natural strength and resources of the

country, directed to a common interest, would baffle all the combinations of European jealousy to restrain our growth. This situation would even take away the motive to such combinations, by inducing an impracticability of success. An active commerce, an extensive navigation, and a flourishing marine would then be the offspring of moral and physical necessity. We might defy the little arts of the little politicians to control or vary the irresistible and unchangeable course of nature(HAMILTON, em Federalist nº 11). Disponível em: http://www.foundingfathers.info/federalistpapers/fedindex.htm. Acesso: 24/09/2015.

78 Ao buscar a não interferência da Europa no continente americano, estudos indicam que, por meio da Doutrina

Monroe os EUA estavam fortalecendo a sua hegemonia na região. ―A frase que ficou conhecida na história como resumindo o espírito da chamada Doutrina Monroe – ‗A América para os Americanos‘ – ajudou a consolidar a percepção de que a referida política tinha como alvo a totalidade do continente americano‖ (TEIXEIRA, 2014, p. 115). Esse autor apresenta uma discussão atualizada sobre a política externa estadunidense para a América Latina. Somando-se à discussão acadêmica, o Departamento de História do atual governo americano mantém registro histórico sobre a inversão do sentido original da Doutrina Monroe: ―By the mid-1800s, Monroe‘s declaration,

combined with ideas of Manifest Destiny, provided precedent and support for U.S. expansion on the American continent. In the late 1800s, U.S. economic and military power enabled it to enforce the Monroe Doctrine. The doctrine‘s greatest extension came with Theodore Roosevelt‘s Corollary, which inverted the original meaning of the doctrine and came to justify unilateral U.S. intervention in Latin America‖ (U.S. DEPARTMENT OF STATE,

A mensagem do Presidente Monroe acabou servindo de base à Doutrina Monroe, cuja ideia principal teve início na oposição a qualquer tentativa de retomada do processo colonizatório ou de interferência nas Américas 79:

President Monroe declared that the [...] the American continents, by the free and independent condition which they have assumed and maintain, are henceforth not to be considered as subjects for future colonization by any European powers. "American continents are henceforth not to be considered as subjects for further colonization." Any attempt to extend European political systems to the New World would be considered "dangerous to our peace and safety". He wrote that, "In wars of the European powers in matters relating to themselves we have never taken any part, or nor does it comport with our policy so to do." Often referred to as the non-colonization and the non-interference principles, they were bold assertions of a growing American nationalism. By mid- century these principles became known as the Monroe Doctrine. (U.S. ARCHIVES, 1998).

As instituições americanas configuradas por meio de leis e organizações formatariam o comportamento popular e influenciariam os valores americanos através de um mecanismo de ―auto-reforço‖ à dinâmica política:

The Constitution would not ask people to be virtuous; instead, it developed a government that would operate smoothly even if citizens were greedy and their leaders corrupt. The institution- the rules and organizations built into the government-would shape popular behavior.

It is our governing institutions, starting with the Constitution, that shape American political behavior. Institutions, they say, even influence our values. Government organizations and programs create their own self-reinforcing political dynamics. Each new organization and public policy readj80usts the political world. (MORONE; KERSH, 2012, p. 56-57).

O federalismo americano é, então, resultado de um profundo debate filosófico que buscou criar instituições fortes com o objetivo de moldar o comportamento político no país, como um mecanismo político de auto-reforço e, consequentemente, fortalecer-se no cenário internacional. A combinação de múltiplas perspectivas de Estado, advinda principalmente das

79 Segundo James Monroe na Seventh Annual Message to Congress, December 2, 1823 (U.S. ARCHIVES, 1998). 80 Uma abordagem sobre o efeito do crescimento dos poderes do governo central frente à liberdade individual é

apresentada por Reagan em seu discurso de despedida - Reagan's Farewell Speech - da Presidência dos EUA em janeiro de 1989. Segundo o Presidente republicano, à medida que o governo aumenta, a liberdade diminui. Essa elite política destaca que, enquanto quase todas as Constituições do mundo dizem quais são os privilégios dos seus cidadãos, a Constituição americana diz ao governo aquilo que lhe é permitido fazer: ―We the people tell the

discussões entre Federalistas e Anti-Federalistas, fez nascer uma nação que, ao mesmo tempo em que enaltece a liberdade individual, remete às instituições o poder de conduzir o país em prol do desenvolvimento.