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A segunda etapa: a atuação do amicuscuriae e a participação de setores da sociedade

No documento Heitor Pereira Villaca Avoglio (páginas 187-190)

5. A crítica: a indeterminação do direito e a racionalidade da jurisprudência – a mudança de paradigma realizada por Jürgen Habermas O

5.4. A construção dos precedentes: procedimento identificado pela doutrina acerca da criação do direito pela jurisdição

5.4.2. A segunda etapa: a atuação do amicuscuriae e a participação de setores da sociedade

O jurisdicionado não é o único que atua no procedimento de criação do precedente: o Ministério Público e terceiros – aqui no sentido da linguagem processual – também militam na formação do precedente. O processo, na sua crescente qualidade de instrumento de pacificação criado pela jurisdição em uma ordem democrática, admite a abertura do debate inserindo a manifestação desses entes, denominados amicus curiae. Eles colaboram, em última análise, para a dinamização das tensões existentes entre facticidade e validade517.

Na seara do controle concentrado de constitucionalidade, o instituto do amicus

curiae foi inserido pela Lei n° 9.868/99518, dispondo em seu artigo 7°, §2°519, que o relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá, por despacho irrecorrível, admitir a manifestação de outros órgãos ou entidades. No que tange ao

      

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A inserção de diversos agentes perante um contexto de agir comunicativo é tratado em diversas passagens das obras de Habermas, sobretudo para a exposição da tensão existente entre facticidade e validade. Nesse sentido, HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. 01. 2ª edição. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2010, p.34: Tal projeção faz a tensão entre facticidade e validade imigrar para pressupostos comunicativos, os quais, apesar de seu conteúdo ideal, que só pode ser preenchido aproximativamente, tem de ser admitidos factualmente por todos os participantes, todas as vezes que desejarem afirmar ou contestar a verdade de uma proposição ou entrar numa argumentação para justificar tal pretensão de validade. [...] O modo como esse espectro alargado de validade está situado no mundo da vida impõe uma generalização do conceito peirceano da comunidade de comunicação ilimitada e da busca cooperativa da verdade entre cientistas: a tensão entre facticidade e validade, que Peirce descobriu nos pressupostos ineludíveis da argumentação que permeia a prática científica, pode ser detectada também nos pressupostos de diferentes tipos de argumentação e, inclusive, nos pressupostos pragmáticos dos atos de fala singulares e dos contextos interacionais por eles conectados.

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Segundo Caio Taranto, referida lei se inspirou na rule 37 do regimento interno da Suprema Corte dos Estados Unidos: Rule 37. Brief na Amicus Curiae. 1. An amicus curiae brief that brings to the attention of the Court

relevant matter not already brought to its attention by the parties may be of considerable help to the Court. An amicus curiae brief that does not serve this purpose burdens the Court, and its filing is not favored. 2. (a) An amicus curiae bried submitted before the Court’s consideration of a petition for a writ of certiotari, motion for leave to file a bill of complaint, jurisdictional statement, or petition for an extraordinary writ, may be filed if accompanied by the written consent of all parties, or if the Court grants leave to file under subparagraph 2(b) of this rule. The brief shall be submitted within the time allowed for filing a brief in opposition or for filing a motion to dismiss or affirm. The amicus curiae brief shall specify whether consent was granted, and its cover shall identify the party supported. TARANTO, Caio Márcio Gutterres. Precedente judicial: autoridade e aplicação na jurisdição constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p.73.

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Art.7°. Não se admitirá intervenção de terceiros no processo de ação direta de inconstitucionalidade. [...] §2°. O relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá, por despacho irrecorrível, admitir, observado o prazo fixado no parágrafo anterior, a manifestação de outros órgãos ou entidades.

187  controle difuso, a mesma lei inseriu o §3° no artigo 482 do Código de Processo Civil520, prevendo a figura do amicus curiae no incidente de inconstitucionalidade521.

O amicus curiae é também, como a provocação do jurisdicionado, manifestação de caráter democrático, uma vez que permite a entrada de terceiros para discutir a adjudicação a ser feita, que comporá o direito vigente que regerá a sociedade. Sua função é trazer ao processo elementos que possam ser considerados relevantes para a adjudicação sobre a matéria discutida, a ser reforçada pelo direito522.

Já no âmbito da teoria do direito, a dogmática tende a classificar o amicus

curiae como uma espécie de intervenção de terceiros523. Há aqui uma relação com o chamado

princípio da cooperação, à medida que se reconhece como necessária a relação dialógica do

juiz com as partes e/ou outros sujeitos, em busca da melhor aproximação e definição dos temas a serem enfrentados pelo magistrado, em muito lembrando a concepção de agir

comunicativo de Habermas.

É de se notar, contudo, que o ingresso na qualidade de amicus curiae não pode ser considerado ainda direito subjetivo, visto que o despacho que autoriza sua entrada é irrecorrível. O ente que pretender a inserção na qualidade de amicuscuriaedeverá, ainda, demonstrar representatividade em face da pertinênciatemática em juízo que incluirá, também, o elemento relevância da intervenção.

      

520

Art.482. Remetida a cópia do acórdão a todos os juízes, o presidente do tribunal designará a sessão de julgamento. [...] §3°. O relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá admitir, por despacho irrecorrível, a manifestação de outros órgãos ou entidades.

521

Mesmo antes da vigência da Lei n° 9.868/99, o Supremo Tribunal Federal já havia admitido a figura do

amicus curiae, confirmando decisão monocrática do Ministro Celso de Mello, que determinou a juntada por

linha de peças documentais apresentadas por órgão estatal que não integrava a relação processual de ação direta de inconstitucionalidade, no Agravo Regimental da Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 748-5. TARANTO, Caio Márcio Gutterres. Precedente judicial: autoridade e aplicação na jurisdição constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p.73.

522

A admissão de terceiro, na condição de amicus curiae, no processo objetivo de controle normativo abstrato, qualifica-se como fator de legitimação social das decisões da Suprema Corte, enquanto Tribunal Constitucional, pois viabiliza, em obséquio ao postulado democrático, a abertura do processo de fiscalização concentrada de constitucionalidade, em ordem a permitir que nele se realize, sempre sob uma perspectiva eminentemente pluralística, a possibilidade de participação formal de entidades e de instituições que efetivamente representem os interesses gerais da coletividade ou que expressem os valores essenciais e relevantes de grupos, classes ou extratos sociais. Em suma: a regra inscrita no artigo 7°, §2°, da Lei n° 9.868/99 – que contém a base normativa legitimadora da intervenção processual do amicus curiae – tem por precípua finalidade pluralizar o debate constitucional. ADIn n° 2130, voto do Ministro Celso de Mello.

523

Verificar BUENO, Cássio Scarpinella. Amicus curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático. São Paulo: Saraiva, 2006, p.56-57.

188  Essa figura, portanto, é importante inovação no direito brasileiro, e sua existência atesta a legitimidade democrática da jurisdição e sustenta a diferença estabelecida entre a norma legislada e judicada. Ainda, a fase infraconstitucional da Reforma do Poder Judiciário, já exposta anteriormente, ampliando os limites de sua manifestação524: (a) poderá defender a repercussão geral de dada matéria pertinente a sua representatividade, apontando relevância econômica, política, social ou jurídica que ultrapassem os interesses subjetivos da demanda; (b) poderá se manifestar na discussão de edição ou revogação de súmula vinculante, democratizando o processo de edição dessa modalidade de precedente pluriprocessual, sendo que também há previsão expressa da utilização dessa faculdade para os tribunais de segundo grau; (c) poderá contribuir, em incidente de admissibilidade dos recursos especiais repetitivos, para fixar orientação para uma dada demanda multitudinária525.

O amicuscuriae é instituto que reflete a concepção filosófica de Peter Häberle526 da sociedade aberta dos intérpretes da Constituição527, não podendo ser restringido a um rol taxativo.Propõe-se, neste escopo, que em processos aptos a ensejara criação de precedentes de grande repercussão, o magistrado e demais órgãos jurisdicionais de instâncias ordinárias, uma vez mais próximos dos conflitos judiciais e do cotidiano social528, possam ser ouvidos como amicicuriae.

      

524

Essa abertura procedimental prevista na Lei n° 11.417/2006 deve ser entendida às outras modalidades de precedentes, especialmente em caso de repercussão da orientação a ser emanada. Com essa finalidade, foi editada a Lei n° 11.672/2008, que acrescentou o artigo 543-C ao Código de Processo civil, com o fim de estabelecer procedimento para o julgamento de recursos especiais repetitivos, prevendo no §3° a figura do

amicus curiae judicial, ao dispor que o relator poderá solicitar informações a serem prestadas aos tribunais

federais e estaduais a respeito da controvérsia. TARANTO, Caio Márcio Gutterres. Precedente judicial:

autoridade e aplicação na jurisdição constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p.83.

525

TARANTO, Caio Márcio Gutterres. Precedente judicial: autoridade e aplicação na jurisdição constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p.79.

526

Diante da objeção de que a unidade da Constituição perderia com a adoção desse entendimento, deve-se observar que as regras básicas de interpretação remetem ao concerto que resulta da conjugação desses diferentes intérpretes da Constituição no exercício de suas funções específicas. A própria abertura da Constituição surge da conjugação do processo e das funções de diferentes intérpretes. HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional.

A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002, p.32.

527

Essa Concepção exige uma radical revisão da metodologia jurídica tradicional, que, como assinala Häberle, esteve muito vinculada ao modelo de uma sociedade fechada. A interpretação constitucional dos juízes, ainda que relevante, não é [nem deve ser] a única. Ao revés, cidadãos e grupos de interesse, órgãos estatais, o sistema público e a opinião pública constituiriam forças produtivas de interpretação, atuando, pelo menos, como pré- intérpretes [vorinterpreten] do complexo normativo constitucional. HÄBERLE, Peter. Hermenêutica

Constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002, p.09. Trata-se de texto extraído da

apresentação do livro, escrito por Gilmar Mendes.

528

Estando mais próximo do caso concreto, o magistrado de instâncias ordinárias mostra-se capaz de contribuir para, partindo da lei positiva, transcender aos postulados da norma infraconstitucional a fim de atribuir efetividade aos ditames constitucionais. O juiz coloca-se superetinter partes, pois atua na qualidade de sujeito

189 

Essa nova leitura reformou o significado do contraditório.Cabe apontar, entretanto, um dilema, pois a introdução destadialéticademocratizante no processo deve também– e cada vez mais – suportar o desejo de celeridade e economia, a fim de prover a tutela jurisdicional apta a satisfazer a crescente complexidade de uma sociedade pós-moderna e de consumo529.

O magistrado e demais órgãos jurisdicionais podem expor, também na qualidade de amicuscuriae, a repercussão social das teses adotadas para provocar o Supremo Tribunal Federal. Assim, a manifestação do amicuscuriae não é alcançada pela força normativa dos precedentes, vale dizer, não está adstrita à orientação quando da prolação de sentenças. Posteriormente, caberá ao Judiciário das instâncias inferiores a aplicação do precedente estabelecido, ainda que por aplicação negativa – vale dizer, distinguishing530.

Ao ter acesso a essa pluralidade de visões que estabelecem uma complexa teia de interlocução, o Supremo Tribunal Federal passa a ter por arsenal – e a responsabilidade de enfrentá-lo como um todo – os benefícios decorrentes dos subsídios técnicos, implicações político-jurídicas, sociais e econômicas apresentados pelos amicicuriae. Isso contribui para o aumento de qualidade do conteúdo material do precedente, compensando-se o prejuízo à celeridade e economia processual, superando-se o dilema e ainda legitimandoos julgamentos do Tribunal perante aos outros sistemas.

No documento Heitor Pereira Villaca Avoglio (páginas 187-190)

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