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AIDS IGREJA CATÓLICA E POLÍTICAS PÚBLICAS

1.DEFININDO HIV E AIDS

3. HIV E AIDS: DESAFIOS PARA A IGREJA CATÓLICA

3.3. Igreja Católica, AIDS e relações com o governo.

3.3.1. A sexualidade no centro das estratégias de prevenção

Em meio a todas essas relações há ponto chave para o nosso estudo. O HIV/AIDS tem como uma das protagonistas principais a sexualidade humana. E sobre a sexualidade humana estarão centradas as estratégias políticas para entender e conter o problema. A Igreja, porém, tratará o assunto tendo como princípio a sua doutrina, ou seja, tentando ser coerente com o seu pensamento. O Estado procurará responder com os princípios constitucionais e os valores surgidos das conquistas modernas no que diz respeito à autonomia e liberdade da pessoa.

56 Texto apresentado na Oficina organizada pelo UNAIDS - programa conjunto das Nações

Unidas sobre HIV e AIDS para teólogos de diferentes tradições cristãs, em Windhoek, Namíbia, de 8 a 11 de dezembro de 2003.

O documento elaborado na oficina sobre estigmas relacionados ao HIV/ AIDS57 ressalta que estigmatizar pessoas que vivem com HIV e AIDS é o maior obstáculo à prevenção, tratamento e assistência eficazes. O texto observa que a teologia cristã tem, às vezes, reforçado estigmas e aumentado a probabilidade de ocorrer discriminação58, elencando os temas em relação aos quais a teologia cristã reforça preconceitos. E, a partir da explicitação, o texto mostra novos argumentos teológicos que visam à superação dessas concepções. O documento mostra que a atribuição de estigmas sustenta-se na conexão que se faz entre sexualidade e pecado:

“Um exemplo desse fato é a premissa amplamente aceita de que o HIV sempre é contraído em relações sexuais “pecaminosas”, e a tendência adicional de se considerar o pecado sexual como o mais grave de todos. Por essa razão, o sexo pode trazer o estigma da pecaminosidade e também ser estigmatizado entre outros pecados. Conseqüentemente, as pessoas que vivem com HIV e AIDS estão sujeitas a uma atribuição de estigmas mais profunda, que os separa da categoria dos pecadores “menores” (relatório, 2003, p. 15).

57 Texto resultado da Oficina “Estigmas relacionados ao HIV e à AIDS: uma estrutura para

reflexões teológicas”, organizada pelo UNAIDS - programa conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS para teólogos de diferentes tradições cristãs, em Windhoek, Namíbia, de 8 a 11 de dezembro de 2003.

58 No documento está definida a palavra estigma: "Estigma" é uma palavra de difícil definição.

No entanto, geralmente implica a rotulação de uma pessoa ou um grupo de pessoas como indignas de inclusão na comunidade humana, resultando na sua discriminação e ostracismo. Essa rotulação geralmente tem a ver com alguma condição física, psicológica ou moral percebida, que tornaria um indivíduo indigno de inclusão plena na comunidade. Podemos estigmatizar pessoas que consideramos impuras, sujas ou perigosas, diferentes de nós, que têm estilo de vida diferente do nosso ou simplesmente são estrangeiras. Nesse processo, construímos estereótipos prejudiciais e perpetuamos a injustiça e a discriminação. O estigma freqüentemente envolve exercício consciente ou inconsciente de poder sobre pessoas vulneráveis e marginalizadas. (p. 13)

A sexualidade aparece como o núcleo a partir do qual era tratada a epidemia. No início, a AIDS foi analisada sob a ótica do pânico moral: a sexualidade aparecia como o foco central.

A esse respeito, Mann (1989), ao referir-se ao problema da AIDS, fala de três epidemias: a primeira seria o crescimento silencioso entre várias populações; a segunda, constituída pelo adoecimento das pessoas como conseqüência da infecção por HIV; a terceira, as respostas e as reações sociais, culturais, econômicas e políticas ao HIV/ AIDS, sendo a discriminação e o preconceito a marca dessas respostas. A discriminação se dá, sobretudo, porque a identificação dos primeiros casos de AIDS entre homossexuais estabeleceu vínculo entre AIDS e “desvio e perversão sexual”. Essa discriminação foi assumida por lideranças religiosas, como já analisado neste estudo.

O papel ativo das pessoas diretamente implicadas com a AIDS em defender seus direitos foi fator fundamental para ser questionada essa visão negativa. Sobretudo porque a noção de direitos humanos passou a ser amplamente utilizada por diferentes segmentos ligados à realidade da AIDS.

O programa estratégico de ações afirmativas do setor de direitos humanos do Programa Nacional de AIDS afirma:

“O governo reitera com este programa os seguintes compromissos: combater a discriminações racial, étnica e de gênero. Pesquisar as relações entre racismo, sexismo e vulnerabilidade ao HIV/AIDS. Promover a igualdade por meio de programa de ações afirmativas”59.

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O governo, ONGs e pessoas comprometidas com a busca de soluções têm reunido esforços para superar os entraves provocados pelas diferentes visões em torno da sexualidade.

Os desencontros e as preocupações em relação a eles, podem ser percebidos na seguinte entrevista:

“As campanhas de massa do governo são na verdade o maior fator de desencontro nas políticas públicas. Esse desencontro não é muito claro em seus fundamentos para ambas as partes, governo e religiões. O governo toma o preservativo como um instrumento, cientificamente baseado na prevenção da AIDS, e usa os recursos da mídia para suas campanhas. Conseqüentemente essas campanhas têm estética de apelo sensual, pois são construídas ao gosto da sensualidade popular. Para a Igreja há um paradoxo nessas campanhas: são um estímulo às práticas sexuais em tempo de AIDS e, portanto, incentivo ao aumento da circulação do HIV e conseqüentemente à expansão da AIDS e da morte”. (Raldo Bonifácio Costa Filho)

A proposta da Igreja Católica de incentivo à fidelidade e à abstinência como forma de prevenção tem sido um dos pontos críticos na relação com o governo e a sociedade.

O assunto permite várias possibilidades de análise:

De acordo com o que é demonstrado pelas pesquisas, especialmente as análises de gênero e de tipo cultural, o incentivo a outros métodos de prevenção é avaliado positivamente. Não mais apenas a fidelidade e a abstinência defendidas pela Igreja, que se tornam inviáveis diante de uma epidemia que precisa ser eficientemente controlada. Mas a Igreja insiste na proposta. O que a leva à atitude de defender, em todo o mundo, esse modo de

Uma resposta inicial poderia se dar a partir da análise de Chauí (2004). Afirma que, diante de uma situação de descontrole social e incertezas, as religiões podem sentir-se novamente chamadas como responsáveis pelo ordenamento e coesão sociais. No caso da AIDS sua presença agrava a situação de decomposição social. Vêm à superfície, por exemplo, evidências da ausência de acesso à saúde. E mais: alastra-se especialmente nos países mais pobres. Algumas religiões defendem que as causas são o descontrole social, a falta de valores, promiscuidade sexual, vida liberal etc. Portanto, as práticas sexuais precisam ser “controladas” a partir do incentivo à volta de valores familiares e religiosos, os quais têm sido deixados em plano inferior.

A fidelidade e a abstinência, enfim, seria a proposta mais adequada, por parte da Igreja Católica, para responder à realidade da AIDS.

Insistir nessa defesa é a reafirmação da orientação hierárquica da Igreja, a partir da qual as relações sexuais devem ser realizadas por casais heterossexuais, dentro do casamento, com o objetivo de procriar. Além disso, a Igreja tenta demonstrar que a AIDS resulta da falta de valores, especialmente no campo da moral. Portanto, a presença da Igreja, como “mãe e mestra”, se tornaria, então, essencial.

A análise de Ortiz (2001) quer demonstrar que, no contexto da globalização, as religiões universais devem competir não apenas com os demais credos religiosos, mas também com propostas globalizadas de orientação da conduta. A AIDS possibilitaria à Igreja Católica recompor seu campo de ação e colocar-se como presença necessária no mundo moderno.

Na entrevista de Raldo percebe-se, como analisado no item 3.2., que parte da Igreja acolhe e coloca em prática sua proposta:

“A parcela da Igreja que trabalha com AIDS tem tido muito sucesso quando a inclui na sua ação missionária (abstinência e fidelidade), e aí vamos encontrar efetividade e experiências originais que fazem diferença na atenção e prevenção da epidemia de HIV e AIDS”. (Raldo Bonifácio Costa Filho)

Em uma sociedade crítica quando se trata de propostas que vêm da Igreja, consideração sobre o assunto é dada a partir do princípio da eficácia. Conforme o mesmo Raldo:

“O Estado sabe, e a Igreja também, que a pregação sobre abstinência e fidelidade nunca foi internalizada pela sociedade brasileira. O Estado sabe, por meio de pesquisas (o PN-DST/AIDS), que os escolares escutam em primeiro lugar o que a medicina diz e, neste aspecto, a Igreja ocupa lugar secundário em relação aos profissionais de saúde” (Raldo Bonifácio Costa Filho).

Mesmo se for eficaz na prática interna da Igreja, na ação missionária, deve-se questionar a porcentagem da população que adere ao que é pregado pela hierarquia católica. Se implementada como política pública, que eficácia teria diante de uma epidemia da magnitude da AIDS? É complexo avaliar uma política pública que se baseia na fidelidade e na abstinência, valores estreitamente ligados aos direitos e ao foro íntimo de cada pessoa.

Não se pode deixar de considerar os estudos, especialmente de gênero e tipo cultural, que demonstram a inviabilidade ou as dificuldades dessa proposta em uma cultura marcada por concepções androcêntricas e machistas. Em decorrência dessas concepções, as mulheres se encontram vulneráveis à AIDS, quando se trata da vivência da sexualidade e do campo geral da saúde sexual e reprodutiva. Por ser a AIDS uma epidemia assentada no campo da

sexualidade, os estudos demonstram que ainda há muito a fazer. Qualquer proposta deve ter em conta o contexto e a realidade nos quais está inserida:

“A mensagem tradicional da Igreja em matéria de sexualidade é a de abstinência antes do casamento e monogamia depois. Segundo os antropólogos sociais, castidade e casamento eram, na origem, ligados a regulamentos concernentes à propriedade (particularmente à mulher-como-propriedade); mais tarde, esses regulamentos foram reforçados mediante codificações religiosas. Decorre disso que, na maioria das culturas, supõe-se como normal a abstinência antes do casamento e a fidelidade conjugal no casamento. Na prática, porém, a realidade é bem outra, e todos sabem disso. A visão de castidade e abstinência é uma noção que não coincide com a realidade. Ela é apenas de uso público, goza de aprovação social e religiosa, e se presta para ocultar os verdadeiros fatos da vida real. E isso complica muito a tarefa dos planejadores da saúde pública, que devem lidar com o que acontece na realidade tal como é, e não como o que alguns gostariam que ela fosse. Complica também a tarefa da Igreja porque ela só pode combater com eficácia o HIV se reconhecer as contradições morais implícitas nessa disparidade”. (Paterson, p.4, 2005)

No contexto atual de afirmação de valores - liberdades democráticas, autonomia individual, direito de decidir -, a proposta da abstinência e fidelidade é entendida como negação ou retrocesso no que se refere aos direitos conquistados.

Valores não podem ser impostos como políticas públicas. Valores são escolhas e decisão pessoal. Não desconsiderando a existência de diretrizes éticas que devem ser seguidas por todos, e nas quais estão fundamentadas as leis. Conforme expressa Pegoraro:

“O Estado é competente para legislar sobre os comportamentos dos cidadãos desde que respeitem as regras gerais da ética, sem depender de credos que são sempre internos aos grupos religiosos”. (Pegoraro, 2001).

O governo e a Igreja Católica, a partir dos desafios da AIDS, devem ter em conta que lidam com uma sociedade que reafirma a autonomia e o direito de decidir. As políticas públicas devem responder a esse “espírito moderno”, a partir do qual as relações amorosas, o desejo sexual, a paternidade e a maternidade não são decisões públicas, mas direitos individuais que implicam, para o seu exercício, a incorporação como direitos dos cidadãos.