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AIDS IGREJA CATÓLICA E POLÍTICAS PÚBLICAS

1.DEFININDO HIV E AIDS

3. HIV E AIDS: DESAFIOS PARA A IGREJA CATÓLICA

3.2. Diversidade de práticas

Apesar das contradições e posturas contrárias à divulgação do preservativo como forma de prevenção, a Igreja Católica tem prática significativa de atenção ao problema da AIDS, permeada pelas diferentes óticas presentes na instituição.

Diversas entidades católicas de âmbito internacional estão comprometidas com a erradicação da AIDS. Algumas apóiam, indistintamente, projetos católicos e não confessionais. Segundo dados apresentados pelo cardeal Javier Lozano Barragán47, 26,7% dos centros no mundo que tratam os doentes por causa do HIV/ AIDS pertencem à Igreja Católica48.

Mostra desses lugares e práticas marcantes no Brasil encontra-se a seguir:

Em 1987, é fundado o ARCA (Apoio Religioso Contra a AIDS - projeto do ISER). A partir de perspectiva ecumênica tentava dar resposta mais positiva à realidade da AIDS.

O Projeto Esperança foi criado em 1987, pela Arquidiocese de São Paulo, para oferecer atendimento jurídico, apoio religioso e distribuir cestas

47Presidente do Conselho Pontifício para a Pastoral da Saúde.

48 “A Caritas Internacional trabalha em 102 Países. Segundo as respostas ao inquérito que

fizemos na Santa Sé resultam ações contra a pandemia em 62 Países: 28 em África, 9 na América, 6 na Ásia, 16 na Europa e 3 na Oceânia. Além do pessoal local (religioso e não religioso) distinguem-se neste campo Congregações e Associações internacionais tais como as Vicentinas, Caritas Internacional, Comunidade de Santo Egídio, Camilianos, Juaninos, Jesuítas, religiosas de Madre Teresa, o Hospital do Menino Jesus da Santa Sé e os Farmacêuticos católicos”. Dados apresentados no discurso realizado na XXVI Sessão Especial da Assembléia geral da ONU sobre HIV/ AIDS.em Nova Iorque, 2 de Junho de 2006. Cf.

básicas. São Paulo é o primeiro Estado a dar respostas religiosas (e não religiosas) ao problema. O Centro de Referência e Treinamento em AIDS (CRT-AIDS) incentivou, em 1988, a formação do Grupo Religioso de Educação Apoio e Solidariedade, o qual, com caráter ecumênico, reunia diferentes tradições religiosas. A finalidade era traçar áreas de atuação e capacitar os integrantes das diversas religiões representadas.

Em 1992, houve o episódio que ficou conhecido como "Caso Sheila49". Portadora de HIV, sua matrícula foi negada na escola. O Colégio São Luís, tradicional colégio católico pertencente à Ordem dos Jesuítas, foi um dos primeiros a oferecer vaga à menina.

Dom Luciano Mendes de Almeida, que presidia a CNBB, declarou50:

"Não é a escola, mas os médicos que podem avaliar se uma criança com AIDS deve conviver com seus colegas". A atitude de não aceitar a menina na escola foi tachada por dom Luciano como “discriminação inadmissível”.

Jornal do Brasil, de 9/5/1992.

Fato bastante significativo ocorrido em 1999, que se refere ao compromisso da Igreja Católica, foi a criação da Comissão Nacional DST/AIDS da Pastoral da Saúde - CNBB. Formada por religiosos e leigos, pessoas ligadas a pastorais de diferentes Estados, padres, representantes de organizações da sociedade civil que trabalhavam com AIDS e o coordenador nacional de Direitos Humanos da Comissão Nacional DST/AIDS do Ministério

49Sheila Cortopassi De Oliveira de cinco anos foi proibida de fazer a matrícula em uma escola

particular porque era portadora do HIV. Esse fato obteve enorme repercussão em todo o país. Permitiu que a questão fosse discutida publicamente, e pela primeira vez, resultou numa resposta formal dos Ministérios da Saúde e da Educação, que emitiram a Portaria Interministerial 796 de 29.05.92, garantindo o ensino para crianças com HIV/ AIDS. Para mais informações www.forumAIDSsp.org.br

50

da Saúde. Como representante da CNBB foi eleito o bispo dom Eugène Adrian Lambert Rixen. A comissão tinha como objetivos: a) conscientizar os diversos setores da Igreja, assumindo a AIDS como a dimensão missionária do terceiro milênio; b) ser elo e intercâmbio entre as diversas ONGs que trabalham com a AIDS; c) elaborar subsídios de prevenção educativa; d) articular parcerias com as diversas esferas do governo para trabalhos de prevenção educativa; e) criar comissões de DST e AIDS em âmbito regional diocesano; f) articular ações e orientações unificadas nos trabalhos de assistência; g) contribuir e acompanhar a formulação das políticas públicas direcionadas ao vírus HIV e à AIDS.

Por considerar que uma das atividades realizadas pela comissão também mostra as ambigüidades em relação à prática, a ela será dada atenção especial, mostrando os elementos significativos.

Em junho de 2000, realizou-se o II Encontro51. O tema de reflexão foi: “AIDS - desafios para a Igreja do Brasil”. Participaram bispos, padres, diáconos, religiosos e religiosas, agentes de pastorais, lideranças de ONGs que trabalham com a AIDS, instituições, membros do governo federal, assessores da CNBB, com o objetivo de traçar estratégias.

Foi significativa a palestra do doutor em Teologia, frei Antônio Moser, do Instituto Teológico Franciscano, sobre as mudanças no comportamento sexual e as conseqüências morais. Segundo ele, para enfrentar a realidade da AIDS, era indispensável uma reflexão teológico- pastoral que tivesse como modelo a pedagogia de Jesus, forma de superar os preconceitos religiosos. Disse ainda sobre a necessidade de incentivar a

Pastoral Familiar, reconhecendo não haver apenas um modelo de família, mas famílias com configurações diferentes. Ao mesmo tempo, acrescentou, seria necessário revalorizar o Evangelho da Sexualidade, apresentado sob uma visão empolgante, que redimisse o prazer e superasse a tirania à qual estava atrelado.

Após a exposição, as perguntas dos participantes evidenciaram a ambigüidade e a contradição existentes na Igreja. Frei Moser, que tinha expressado posição aberta, ao responder às perguntas formuladas, qualificou de “desvio sexual” a homossexualidade, e a masturbação como algo “patológico”, que deve ser corrigido. As respostas provocaram muita polêmica.

Momento importante no qual também surgiram as contradições internas da Igreja Católica foi a intervenção de dom Eugène Rixen, em um discurso diferente da posição oficial da Igreja - mesmo tendo sido indicado para integrar a comissão de DST e AIDS da Pastoral da Saúde da CNBB. Esclareceu que sua posição era pessoal e corresponderia a uma “ala da Igreja”; inspirava-se na declaração dos bispos franceses sobre a AIDS, mas não coincidia com a posição da CNBB. Dom Eugène Rixen ressaltou a responsabilidade que a Igreja tem em relação à mudança de comportamentos, questionou os valores apresentados aos jovens, condenou a exclusão de pessoas da vida religiosa por causa da AIDS, e enfatizou a necessidade de a Igreja permanecer em constante diálogo com as culturas, os meios de comunicação e a sociedade.

Momento álgido do encontro foi a participação do delegado do Vaticano, monsenhor Javier Lozano Barragán, presidente do Pontifício Conselho da Pastoral da Saúde da Santa Sé, que apresentou os estudos

oficiais, feitos pela Igreja Católica, sobre a AIDS no mundo. Ao longo de sua intervenção fez afirmações proibitivas ao uso da camisinha, reafirmando a posição oficial da Igreja:

“A Igreja é heterossexual”. Colocou sua vida como exemplo: “O ato sexual não é necessário, e quem desobedece a essas normas não é católico”. Em relação aos padres portadores do vírus HIV e da AIDS, declarou: “Eles foram infectados por transfusão de sangue”.

Também presente ao encontro, dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo emérito de São Paulo, defendeu o uso da camisinha como um “mal menor”. Reconheceu o direito de recorrer “à consciência” como recurso válido e recomendado pelo magistério em caso de dúvida. “A consciência é o melhor caminho”, afirmou.

A Comissão Nacional DST/AIDS Pastoral da Saúde – CNBB, composta por diferentes pessoas e entidades, incluindo as não católicas, desafia e questiona a Igreja. Em 2001 foi criada a Pastoral de DST/AIDS – CNBB, forma encontrada pela Igreja Católica para abordar o problema a partir da sua própria estrutura e concepções.

Momento significativo que marca as relações Igreja católica e AIDS foi causado pelas declarações feitas aos meios de comunicação pelo padre Valeriano Paitoni52, nas quais se manifestou em desacordo com a posição oficial católica.

“Desde que a epidemia da AIDS começou, o clero não soube se colocar no lugar certo. Quis ocupar o lugar dos cientistas. Enquanto a ciência nos educa e garante que o

52 Pe. Valeriano Paitoni é membro da congregação dos Missionários da Consolata e pároco da

preservativo é uma das maneiras mais eficazes de proteção contra a doença, a Igreja diz não. Fecha os olhos para provas científicas. Estamos mergulhados em um problema de saúde pública, e quem deve enfrentá-lo são as autoridades competentes. O Vaticano não pode atrapalhar. Diante do avanço do HIV, condenar a camisinha constitui um erro tão grave quanto os que atingiram negros e índios, populações que, recentemente, receberam do Papa um pedido de perdão. No futuro, sem dúvida nenhuma, teremos de nos desculpar de novo pelos enganos cometidos em relação à AIDS”.

Se o preservativo protege a vida, não há por que o encarar como um mal menor. Trata-se, isso sim, de um bem maior. O único de que dispomos para driblar a AIDS com segurança.

Quando a Igreja afirma que proíbe a camisinha para impedir o aumento da promiscuidade, está desvalorizando a capacidade humana de crescer, de conquistar os tesouros espirituais. Não é por causa do preservativo que alguém vai se tornar mais promíscuo. Essa concepção dá ouvidos à fraqueza humana, não à grandeza. E a função da Igreja é confiar na humanidade, acreditar que o homem pode se transformar para o bem. Fidelidade e castidade são valores do reino de Deus, próprios da fé. Só que não podemos usá-los para frear uma pandemia.

“Não se pode impor a fidelidade. Pode-se, no máximo, incentivá-la. Diante da AIDS, não basta pregar os valores do reino de Deus. É necessário reconhecer que as pregações nem sempre têm eficácia imediata e que, portanto, não substituem métodos científicos capazes de assegurar a vida.”Folha de S. Paulo, p. A11, 02/07/2000).

Dom Cláudio Hummes, arcebispo de São Paulo, reagiu:

“Diante da entrevista do padre Valeriano, hoje publicada, e considerando a clara e reiteradamente afirmada

doutrina do Papa e da Igreja, que condena o uso do preservativo, declaro, por dever de consciência, em comunhão com o Papa e a Igreja, que é inaceitável a atitude do padre Valeriano, defendendo o uso do preservativo e distribuindo-o (...) Fui obrigado, com sincera dor, por tratar-se de um irmão na fé e no sacerdócio, a publicar esta nota de repúdio, como tentativa de correção fraterna, a qual não exclui outras providências administrativas e pastorais cabíveis, para corrigir essa lamentável situação”. (Folha de S. Paulo, 04/07/2000, cad.A, p.5).

As duas experiências mostram as divergências internas, muitas vezes não tratadas no espaço público. Aparecem publicamente o silêncio e a disposição de unir esforços no trabalho com os portadores.

Desde 1988 há diversas iniciativas, como encontros, seminários e oficinas. No Rio de Janeiro aconteceu a "Consulta Latino-americana das Igrejas sobre o HIV e a AIDS”, organizada pelo CESE (Coordenadoria Ecumênica de Serviços) e CONIC (Conselho Nacional de Igrejas Cristãs), apoiada pelo Conselho Mundial de Igrejas. O ISER realizou, por meio do ARCA, dois grandes encontros nacionais (1989 e 1990), os "Encontros Brasileiros de Ação Pastoral frente à AIDS", reunindo principalmente católicos e protestantes, além de ativistas e profissionais da saúde. Em 2003 foi promovida a “Oficina Teológica sobre estigmas relacionados ao HIV/ AIDS”, apoiada pelo UNAIDS, na Namíbia, em 2003. Em 2005 houve, em Porto Alegre, o “Simpósio Latino-americano e Caribenho de reflexão da Igreja Católica no mundo da AIDS: enfrentando a epidemia na América Latina e Timor Leste”. Também em 2005, em Bogotá, aconteceu o

“Encontro sobre HIV/ AIDS”, promovido pelo CELAM53. São exemplos dos vários

eventos realizados pelas instituições religiosas entre elas, a Igreja católica para enfrentar a AIDS.

As publicações também são possibilidades exploradas pelas Igrejas para falar sobre HIV e AIDS. Publicações católicas conhecidas, como a revista

“Família Cristã”, informam intensa e seguidamente sobre HIV e AIDS. As editoras católicas, como Edições Paulinas e Vozes, se interessam em publicar livros sobre o tema. A Pastoral DST/AIDS publicou “Viu e teve compaixão: Igreja e AIDS”, em 2003; “Igreja e AIDS: presença e resposta”, 2004; e “Vulnerabilidade social e AIDS: o desafio da prevenção em tempos de pauperização da epidemia”, em 2005.

Apesar de toda a ambigüidade, a Igreja Católica está envolvida pastoralmente. Atualmente, segundo informações da Pastoral DST/AIDS, há, no Brasil, cerca de 150 ONGs ligadas à Igreja Católica que trabalham com AIDS. Existe diversidade de posições, dentro das ONGs ou grupos, em relação à pregação oficial da Igreja Católica: adere-se ao posicionamento oficial ou, mesmo discordando, continuam seus trabalhos cautelosamente, como extensão de sua obra missionária. Um terceiro setor tem posição mais crítica em relação à Igreja Católica, elaborando argumentos para questionar a posição oficial.

O panorama apresentado suscita questões, apontadas nos capítulos anteriores.

A Igreja Católica, como instituição social, recebe os impactos ocorridos nos campos social e político.

Os conflitos em torno da AIDS refletem o que tem acontecido com outras instituições sociais implicadas no tema. No caso brasileiro, o campo da saúde também apresenta divergências em torno do assunto.

Em se tratando da Igreja Católica, a explicitação das divergências se torna relevante para a análise, pois historicamente se apresenta como instituição monolítica, em que a prática e o discurso devem ser pautados pela posição oficial, aplicando punições a quem diverge publicamente.

O fato de a AIDS obrigar a Igreja a se posicionar tem feito com que as contradições apareçam, o que possibilitou o fortalecimento e o respaldo público a quem dela diverge.

As idéias que sustentam as diferenças ancoram-se em conflito histórico da Igreja Católica: encontram-se no bojo dos valores da cultura contemporânea e na afirmação das normas e valores religiosos contrários a esses valores.

Os desacordos internos em torno da sexualidade demonstram que não somente os leigos rejeitam as doutrinas sobre a moral sexual, mas também os próprios membros da hierarquia não se encontram satisfeitos com essas doutrinas, e não as aceitam na totalidade. Como aparece na pesquisa, usam argumentos não religiosos para justificar posições, mostrando autonomia para se manifestar. Resgatam argumentos do próprio magistério, e os articulam aos seculares.

A não aceitação dos discursos e normas que vêm da autoridade pode ser entendida como uma das influências das idéias da contemporaneidade, não somente no fiel, mas também na hierarquia católica.

A realidade prática os confronta com as idéias da sua religião. O contato direto com as pessoas, suas aspirações e experiências, e organizações, lhes permite avaliar as posições. O abismo entre as expectativas dos fiéis e as proposições da igreja lhes abre o desafio de adaptar-se aos novos contextos, inclusive reformulando a forma como a instituição busca essa adaptação.

Como analisa Nunes (2005), a Igreja tradicionalmente tem tentado adaptar-se aos novos contextos, afirmando sua exterioridade em relação à modernidade, atribuindo-se papel profético, e usando recursos de caráter religioso e disciplinar frente aos questionamentos da sociedade; entretanto, atualmente, ainda utiliza esses recursos, mesmo que não convençam mais.

As pessoas vinculadas a práticas e discursos diferentes ao oficial aprofundam as ambigüidades internas, pois mostram, a partir da sua própria identidade religiosa, o porquê e com o quê estão divergindo. Como afirma Vaggione (2004), ser divergente implica a articulação de um antagonismo, a construção de um espaço político, e para isso deve-se romper com os consensos impostos, mostrar a existência de fraturas que indicam um nível de pluralismo em realidades aparentemente homogêneas. Carregando essas divergências internas e ambigüidades a Igreja se encontra participando, ao lado de outras instituições, no campo da AIDS.