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A substituição da melancolia pela insolência e pelo cinismo

CAPÍTULO III – O jovem romântico ensaiando uma prática de subjetivação

3.2 A substituição da melancolia pela insolência e pelo cinismo

Existe então um mal-estar na juventude balzaquiana cujas causas são políticas e sociais. O primeiro mal-estar que aparece na cronologia interna de La Comédie humaine é o da juventude nobre rejeitada pela Revolução Francesa. Ela se vê destronada de um futuro que normalmente lhe pertenceria e se sente inútil e frustrada. Exilada no seu próprio mundo, ela “só pode se encarnar como figuras melancólicas, sentimentais, à sensibilidade recalcada, mas à vontade estendida, ou bem de figuras zombeteiras, insolentes, cultivando um aristocratismo de fachada” (Barbéris, 1973, p. 497). Em 1814, o personagem Félix de Vandenesse é um dos primeiros jovens românticos. No romance da sua formação (Le Lys dans la vallée; Balzac, 1836d), ele relata sua infância infeliz, sua vida isolada da família, suas idéias de suicídio e seu amor platônico pela Condessa de Mortsauf. Félix encarna o mito do rapaz nobre isolado sob a forma melancólica no momento do Cent Jours106. Em 1822, o personagem Victurnien d’Esgrignon testemunha por toda juventude nobre de sua época o mal do século durante a Restauração:

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O termo Cent-Jours designa o período da história da França composto entre primeiro de março (retorno do imperador Napoleão à França) e 18 de junho de 1815 (batalha de Waterloo).

132 Ele tornou-se de repente o isolamento do qual a Restauração, lambuzada de seus elegíveis envelhecidos e de seus velhos cortesões, havia condenado a juventude nobre. Ele compreendeu que não havia lugar conveniente para ele nem na Corte, nem no Estado, nem nas forças armadas, enfim em lugar nenhum. Ele se lançou então ao mundo dos prazeres. (Balzac, 1838b, p. 1009)107

Aqui, Balzac lança uma outra acusação contra a política do século que condena a juventude ao isolamento. É a impossibilidade de entrar na sociedade que constitui o rapaz precisamente em sujeito, em herói romântico. O rapaz romântico é um ser de desejos, mas que “não pode convergir seus desejos com a realidade e que é condenado a viver sua relação com o real de modo defeituoso” (Laforgue, 2002, p. 12). Logo, o que fazer de si? Como cuidar de si-mesmo? Diante dessa realidade, Balzac vê a necessidade de uma tomada de consciência das forças do ser moral “interior”. Ele “põe em cena os personagens dândis a fim de ‘ensinar’ ao homem a necessidade de reforçar seu ser moral interno para afrontar a sociedade” (Burmark, 1976, p. 216). Assim, durante a Restauração, a melancolia do rapaz romântico é substituída pela insolência dos dândis no roteiro de La Comédie humaine. O dandismo se faz como um dos instrumentos do cuidado de si dos rapazes ambiciosos em Paris.

Henri de Marsay é o primeiro no reinado da moda desta geração. Segundo o personagem, é preciso “colocar-se à altura de sua época” (Balzac, 1838b, p. 1008). Quem também faz parte desta primeira geração de dândis balzaquianos? Eugène de Rastignac, que fez seu caminho e deve seu sucesso a Maison de Nucingen, o famoso banco parisiense da Comédia Humana; Maxime de Trailles, o dândi que tanto impressionou o jovem Rastignac no início de sua carreira parisiense; Lucien de Rubempré, oscilando na sociedade entre esplendores e misérias; Paul de Manerville, la

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Il devina tout à coup l’ilotisme auquel la Restauration, bardée de ses vieillards éligibles et de ses vieux courtisans, avait condamné la jeunesse noble. Il comprit qu’il n’y avait pour lui de place convenable ni à la Cour, ni dans l’État, ni à l’armée, enfin nulle part. Il s’élança donc dans le monde des plaisirs.

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fleur des pois, reflexo de De Marsay que o embaça; Godefroid de Beaudenord, a flor do

dandismo parisiense que tem le haut du pavé de la fashion com De Marsay. Estes dândis, cada um se definindo no seu tipo único, se encontram nos salões das mais importantes mulheres da moda parisiense: a Marquesa d’Espard, as Duquesas de Grandlieu, de Carigliano, de Chaulieu, as Marquesas d’Aiglemont e de Listomère, Mme Firmiani, a Condessa de Sérisy. Também se encontram “na Opéra, nas embaixadas, por todos os lugares aonde se conduz seu bom nome e sua fortuna aparente” (Ibid.). Os dândis desta época da cronologia das ficções balzaquianas (1815-1830), carregando um nome de uma nobreza reconhecida e sendo adotados pelo faubourg Saint-Germain, aproveitam da chance de criarem seus próprios mundos gozando dos prazeres da

mondanité.

No fim da Restauração, alguns rapazes ambiciosos vão passar das cenas da vida parisiense às cenas da vida política. Dentre os homens políticos durante o reino de Louis-Philippe, se encontram alguns antigos rapazes que encenavam o dandismo na Restauração. Em 1834, De Marsay – o arquétipo dos personagens dos dândis em La

Comédie humaine – morre deixando uma “reputação de homem de Estado imensa”

(Balzac, 1839c, p. 1008). Balzac cria uma nova geração de dândis108. No fim dos anos 1830, “(...) o tempo dos grandes dândis, fleumáticos como os grandes lévriers, e mesmo os jovens condottieri meridionais, passou. Eles são substituídos por lions sem grande personalidade que fazem pouco ruído” (Fortassier, 1974, p. 135). Os primeiros dândis de La Comédie humaine são de origem aristocrática. Após 1830, os dândis de origem burguesa se multiplicam. Estes dândis burgueses são menos “puros” que os da primeira geração. Eles não retiram do dandismo que certos aspectos: maneiras, hábitos, estilos. O

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La Palférine, Raphaël de Valentin, Savinien de Portenduère, Désiré Minoret-Levrault, Amédée de Soulas, Georges de Maufrigneuse, Arthur de Rochefide, Calyste du Guénic, Adam-Mitgislas Laginski, le duc de Lenoncourt-Chaulieu, Fabien du Ronceret.

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rendez-vous da segunda geração acontece no Jockey-Club – onde eles encontram

Rastignac e Maxime de Trailles, homens políticos –, o Cercle Agricole, o Cercle des

Étrangers. Neste novo ambiente existem outros hábitos e outras maneiras de se “cuidar

de si-mesmo”. Em 1839, o cavalo é uma paixão dos rapazes que aparecem “como completamente ociosos, pois doravante a política é negócio de burguês; e sem muitas maneiras, uma vez que não há porque manter as tradições que não impressionam mais ninguém” (Fortassier, 1974, p. 136).

A primeira geração dos dândis citados por Balzac se constitui repetidamente como um grupo. De Marsay é o dândi que pode deliberar um certificado de dandismo a um recém-chegado:

Embora sua elegância seja ainda nova, nós o adotamos, diz de Marsay. Ele é digno de nós, ele compreende sua época, ele tem espírito, ele é nobre, ele é gentil, nós o amaremos, nós o serviremos, nós o impulsionaremos. (Balzac, 1838b, p. 1013)109

Acima, ele evoca com seus amigos a entrada de Victurnien d’Esgrignon no seio do dandismo. Abaixo, ele se faz o mestre de Lucien de Rubempré:

Madame la marquise, diz de Marsay, se a senhora patrona o monsieur

pelo seu espírito, quanto à mim, eu o protegerei por sua beleza; eu lhe darei conselhos que o farão o mais feliz dos dândis de Paris. Depois disso, ele será poeta se ele quiser. (Balzac, 1839a, p. 278-279)110

Nosso olhar se dirige especialmente a esta geração de dândis balzaquianos. É a época mais brilhante do dandismo balzaquiano como herói romântico, na qual o dandismo de costumes é mais que uma moda passageira, que uma coquetterie frívola. Ele é uma “atitude moderna” que o rapaz constitui como uma solução para o problema “que fazer de si?”, uma atitude artística de construção de si-mesmo, um meio para

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Quoique son élégance soit encore neuve, nous l’adoptons, reprit de Marsay. Il est digne de nous, il comprend son époque, il a de l’esprit, il est noble, il est gentil, nous l’aimerons, nous le servirons, nous le pousserons.

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Madame la marquise, dit de Marsay, si vous patronnez monsieur pour son esprit, moi je le protégerai pour sa beauté ; je lui donnerai des conseils qui en feront le plus heureux dandy de Paris. Après cela, il sera poète s’il veut.

135 superar o mal-estar da juventude do início do século XIX francês. O percurso dos dândis balzaquianos da primeira geração, fazendo-se durante a Restauração, se constitui como um tipo de experiência de “restauração” do “si-mesmo” na história das práticas da subjetividade ocidental. É um percurso que não cura o mal-estar da juventude, mas, sobretudo constrói uma forma de vida e permite algumas conquistas individuais.

O dandismo como instrumento do cuidado de si tem uma função “curativa” e “terapêutica”. É preciso pensar que na cultura grega helenística e romana (séculos I e II) existe uma noção de pathos como um “mal de paixão” que traz como conseqüência a evolução de uma doença da alma. Nos epicuristas, nos cínicos e nos estóicos, o cuidado de si, dentre outros objetivos, pode curar as doenças da alma: “a prática de se ocupar de si-mesmo é concebida como uma operação médica” (Foucault, 1982/2001, p. 94-96). Nos dândis balzaquianos o cuidado de si é uma tentativa de conversão dos desejos individuais à realidade social; de salvar e de reforçar o ser moral interior para afrontar a sociedade fazendo da insolência e do cinismo soluções contra a melancolia – uma melancolia de ordem histórica. Aqui, temos um ponto comum entre os dois momentos históricos do cuidado de si que valorizam a intensidade de relações e referências a si, isto se refere às “formas nas quais o sujeito é chamado a se tomar a si-mesmo como objeto de conhecimento e domínio de ação, a fim de se transformar, de se corrigir, de se purificar, de fazer sua salvação” (Foucault, 1984a, p. 59). É claro que permanecem as distâncias históricas e culturais.

Tomemos alguns traços da démarche do dândi balzaquiano já sublinhados por Barbéris (1973): o dândi, “ele não é uma aristocrata como um aristocrata, e a prova disso é que o dandismo, sobretudo o francês, foi segregado pela burguesia” (Ibid., p. 498). Seu dandismo, bem menos que uma referência política e social, é uma forma de afirmar o individualismo e uma estilização da recusa. Sua elegância é mais que uma

136 armadura, é um “símbolo exterior do julgamento que ele carrega sobre as pessoas com as quais ele é obrigado de viver” (Ibid.): os burgueses. As referências de si a si-mesmo do dândi produzem uma armadura interior. Acima da cultura burguesa ele se posiciona cinicamente e insolentemente; on ne lui en conte pas, il accueille tout sans s’étonner (Ibid.): “ninguém pode enganá-lo, nada lhe surpreende”. O “si” organiza e reorganiza o campo de valores do mundo dos dândis. Este “si” só pode ser pensado como valor e na condição de um certo número de condutas, de técnicas, de práticas, relativamente bem refletidas e também determinadas pelo espírito da época. Assim, nas cenas da vida dos dândis balzaquianos assistimos a um verdadeiro desenvolvimento da “cultura de si” no século XIX.

3.3 Um grito de alarme da boêmia balzaquiana a favor da