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CAPÍTULO I – Honoré de Balzac e os ensaios de dandismo

1.4 O dandismo na vida de artista

No conjunto das obras balzaquianas, a categoria do artista, como a do dândi, se destaca da sociedade ridicularizando suas conveniências. Entretanto, a diferença maior entre esses dois tipos de indivíduos é que o artista pode viver cheio de si mesmo, isso quer dizer viver em si-mesmo e para si-mesmo (Bonnet, 1980-1981, p. 17). O dândi se produz sempre sobre a cena do mundo e ele se esgota na pura exterioridade do parecer. Ele é a sua própria obra, ele tem necessidade de um público para ser reconhecido e existir. Ele não pode cessar de freqüentar os meios mondains, onde, para ele, é impossível de se romper completamente com os valores recebidos: “ao lado do artista, o dândi parece marcado de uma corrupção” (Nishikawa, 1969, p. 77). O “cuidado de si” do dândi não é da mesma natureza do “cuidado de si” do artista. O artista é uma exceção: “sua ociosidade é um trabalho e seu trabalho é um descanso; ele é elegante e desleixado alternadamente; ele se veste do seu jeito o uniforme de trabalho e decide sobre o fraque que o homem da moda deve usar; ele não se submete às leis: ele as impõe” (Balzac, 1830b, p. 215). A descrição da démarche do personagem artista-dândi Théodore de Sommervieux ilustra esta teoria da elegância no ambiente artístico de La

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Figura 01

Théodore de Sommervieux em frente a Maison du chat-qui- pelote; gravura de Édouard Toudouze em Balzac, H. (1897). The

House of Cat and Racket. Philadelphia: George Barrie & Son.

Sua capa, traçada ao gosto dos tecidos antigos, deixava ver um elegante calçado, tanto mais notável no meio da lama parisiense, quanto trazia meias de seda branca, cujas manchas lhe atestavam a impaciência. Tinha saído, sem dúvida nenhuma de alguma festa ou de um baile pois a essa hora matinal segurava na mão um par de luvas brancas, e as mechas de seus cabelos negros desfrisados, esparsos sobre os ombros, revelavam um penteado à Caracalla, posto em moda tanto pela escola de David como

63 por esse entusiasmo pelas formas gregas e romanas que assinalou os primeiros anos do século. (Balzac, 1830b, p. 41)33.

Observamos que o neo-classicismo da roupa de Sommervieux é um signo de rigor e austeridade no artista balzaquiano. Este modo de se vestir põe em questão a relação do artista com a moda. Na mesma ocasião, o desleixo com seus cabelos e com suas meias brancas atestam seu estilo de vida de artista, algo que, no cenário balzaquiano seria um desastre para um personagem dândi. Nesta cena, que acontece em 1811 (sob o Império de Napoleão), o artista-dândi se encontra parado em frente a uma velha loja atacadista de tecidos na Rua Saint-Denis, em pleno antigo comércio parisiense. É uma manhã chuvosa onde o rapaz examina, com um entusiasmo de arqueólogo, a fachada de uma preciosa casa que dá aos historiadores a facilidade de reconstruir por analogia a antiga Paris: la Maison du chat-qui-pelote34.

Na cronologia geral das ficções35 de La Comédie humaine, Théodore de Sommervieux é um rapaz que faz parte da geração anterior ao dandismo balzaquiano (a geração do Império). Suas atitudes com a sociedade, com os amigos, com as mulheres ainda não caracterizam plenamente o dandismo balzaquiano que surgirá na Comédia Humana, mas anunciam alguns traços que serão marcantes a partir de 1815 (início da Restauração) com a primeira aparição do dândi Henri de Marsay. No mês de abril de 1830, Balzac ainda não tinha criado nenhum herói romântico dândi, mas, com este personagem artista, temos uma representação antecipada de alguns aspectos de uma

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Son manteau, plissé dans le goût des draperies antiques, laissait voir une élégante chaussure, d’autant plus remarquable au milieu de la boue parisienne, qu’il portait des bas de soie blancs dont les mouchetures attestaient son impatience. Il sortait sans doute d’une noce ou d’un bal car à cette heure matinale il tenait à la main des gants blancs et les boucles de ses cheveux noirs défrisés éparpillées sur ses épaules indiquaient une coiffure à la Caracalla, mise à la mode autant par l’Ecole de David que par cet engouement pour les formes grecques et romaines qui marqua les premières années de ce siècle. 34

O romance La Maison du chat-qui-pelote foi publicado pela primeira vez em Paris em 1830 sob o título Gloire et Malheur. O título definitivo aparece na publicação de 1842 na primeira publicação de La Comédie humaine.

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64 forma de vida que será característica dos personagens dândis nos anos seguintes36. Este estilo de vida de artista, Balzac deve aos seus amigos artistas dessa época que também fizeram carreira (uns mais, outros menos) de dandismo, dos quais destaca-se Eugène Delacroix.

No ano 1804 da cronologia da ficção (início do Império), Sommervieux ganha o

Grand Prix de Rome de pintura. Suas origens sociais – artista e aristocrata – colocam-no

em dupla separação em relação à burguesia comercial. No coração da velha Paris comercial, o pintor – alma “nutrida de poesia” e os “olhos saciados de Rafael e de Michelângelo” – descobre um cenário estranho e bem longe de seu próprio universo artístico e social: “desenho, cores, acessórios, tudo era tratado de maneira a fazer acreditar que o artista queria zombar do comerciante e daqueles que ali passavam” (Balzac, 1830a, p. 40). Esta narrativa nos mostra a distância que existe entre a vida privada burguesa e o ambiente do mundo artístico. De repente, na pequena janela da velha casa burguesa do século XVI, o pintor vê uma linda moça e se inflama logo em seguida pela ingenuidade de seu rosto comparada às sublimes composições de Rafael (1483-1520). Ela é Augustine Guillaume, a filha do proprietário da casa comercial do

Chat-qui-pelote. Théodore descobre “uma destas virgens modestas e recolhidas que,

infelizmente, ele não soubera encontrar que em pintura em Roma” (Balzac, 1830a, p. 53). Ele parece não mais poder tirar seu olhar daquele retrato vivo. Mas, entre o olho do pintor e o real se impõe o filtro da arte. Ela anuncia a tragédia do romance: a inadaptação do artista à realidade burguesa e da burguesia à arte.

Perdidamente apaixonado por Augustine, ele se fecha no seu atelier para pintar o retrato de Augustine e a tela do Chat-qui-pelote. Ele transfere com fidelidade para suas

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Em abril de 1830, Eugène de Rastignac aparece em Étude de femme e Maxime de Trailles em Gobseck, mas, eles ainda não são personagens reconhecidos como dândis. Em 1833, Charles Grandet aparece como um personagem dândi em Eugénie Grandet. Somente em 1834, Rastignac aparece como um herói romântico em Le Père Goriot.

65 duas telas tudo que ele registrou pelos olhos. O olhar do artista consegue transformar o que ele vê em obra de arte. Seu olho funciona como um pincel e dá imortalidade às imagens passageiras. Segundo a teoria balzaquiana da démarche, poderíamos definir Théodore como um “observador”: “ele é incontestavelmente um homem de gênio”, pois, “não existe observação possível sem uma eminente perfeição dos sentidos e sem uma memória quase divina” (Balzac, 1833a, p. 276-277). Mais do que lhe reproduzir, Théodore apresenta o mundo ao mundo e a novela se faz a partir dos recursos pictóricos. Assim, um drama é desencadeado pela arte pictórica. Uma experiência subjetiva será também desencadeada diante da obra de arte: “Balzac parece ter necessidade dessa exploração visual e desta tela completa antes de se engajar num segundo tempo da criação” (Jung, 2004, p. 215), que será a história do retrato de Augustine.

Augustine vê a tela do seu retrato exposta no salão do Louvre e começa a tremer. Ela tem medo e se sente sufocada como presa a uma irritação totalmente nova. A imagem acende como que uma brasa no seu corpo, pois, Augustine se encontra criminosa ao perceber que se conclui um pacto entre ela e o artista. No fundo do seu coração, ele sente um prazer desconhecido que vivifica todo seu ser. Ela experimenta uma espécie de embriaguez que redobra seus temores e uma espécie de gozo misturado com terror. Este caos de sensações a faz sentir que ela vai desmaiar. Augustine acredita que está sob o império do demônio cujas terríveis emboscadas lhe eram previstas pela palavra trovejante dos pregadores. As palpitações tornadas mais profundas davam-lhe a impressão de dor porque seu sangue, mais ardente, lhe despertara no corpo potências ignoradas. Este momento é para ela como um momento de loucura.

Por meio dessa descrição de Balzac, nós assistimos a uma experiência de excitação corporal motivada pela arte. Poderíamos inferir que se trata de uma nova

66 experiência subjetiva do ser na jovem moça. Uma pessoa comum é colocada no centro da cena. E ela ocupa o lugar comum. O talento de Théodore dá imortalidade às imagens temporais. Abandonada e imperceptível na multidão, a pessoa é vista pelo artista e é reconhecida pela obra de arte. Em termos de Baudelaire (1859/1961), poderíamos dizer que o olhar do pintor busca retirar o que pode conter de poético no histórico. Neste sentido, o artista é o “pintor do circunstancial e de tudo o que ele sugere de eterno” (Baudelaire, 1859/1961, p. 1156). Théodore, o artista-dândi balzaquiano, também parece representar algo do dandismo que será posteriormente construído por Baudelaire: uma certa heroificação irônica do presente. A tela de Augustine é uma obra de arte que ele produz ao capturar uma cena trivial numa de suas flâneries em Paris. Apaixona-se intensamente, pinta um quadro que lhe valerá as mais belas honras e prossegue em busca de outras grandes experiências abandonando a sua obra prima – neste caso estraçalhando-a em nome de sua vaidade.

Para o pintor “havia alguma coisa de desesperador querendo manifestar” (Balzac, 1830a, p. 53) a cena gratuita da aparição da jovem moça de manhã na janela. Este “alguma coisa de desesperador” é a busca de todo verdadeiro artista: uma das idéias das quais Balzac defende e que ele vai desenvolver mais tarde em Le Chef-

d’œuvre inconnu (Pitt-Rivers, 1993, p. 74). O pintor “impõe” suas leis no mundo por

meio das suas telas. A arte de Sommervieux é um ato de criação de sentidos, mas estes sentidos não estão totalmente definidos: o olhar de Augustine completa a criação dos sentidos ao projetar na tela seus sonhos e seus desejos.

A tela de Sommervieux é uma representação de Augustine pelo outro – um objeto onde o sentido toma corpo. É o amor do artista pela moça burguesa que é posto no quadro. O pintor Girodet (1767-1824) – que aparece como personagem amigo de Théodore – diz: “Você está apaixonado?” – “Todos dois sabem que os mais belos

67 retratos de Ticiano, de Rafael e de Leonardo da Vinci devem-se aos sentimentos exaltados, que, sob diversas condições, engendram todas as obras primas”37 (Balzac, 1830a, p. 54). No salão, os olhos assustados de Augustine encontram a figura inflamada do jovem pintor que diz ao seu ouvido: “Viu só o que o amor me inspirou” (Ibid., p. 55). Na sequência do romance, Augustine é mobilizada por esta experiência subjetiva e por tal, ela vai inventar novas significações para sua vida, para sua pessoa: “ser a mulher de um homem de talento, compartilhar a glória!” (Ibid., p. 57). Balzac observa que este pensamento faz devastações no coração de uma criança nutrida até então de princípios vulgares, educada no seio de uma família marcada pela “vida ocupada”. Agora, ela deseja uma vida elegante. Ela quer efetuar mudanças nela mesma e buscar uma outra forma de existência: “um raio de sol tinha caído naquela prisão” (Ibid., p. 57). Vê-se que “a cena de interior faz uma revolução na pintura” (Ibid., p. 54) e que a pintura faz uma revolução no processo de constituição do sujeito que toma consciência de si ao descobrir-se como objeto de desejo.

Em Traité de la vie elegante (1830), discutindo sobre alguns hábitos, estilos de vida e modismos da sociedade, Balzac faz uma classificação dos seres humanos segundo suas aparências exteriores, os costumes modernos e as classes sociais: “o homem que trabalha, o homem que pensa, o homem que não faz nada” ou “a vida ocupada, a vida de artista, a vida elegante” Balzac, 1830b, p. 212). O artista, como o dândi, recusa-as a entrar na categoria da “vida ocupada” – modelo de vida mais característico da burguesia. A categoria da “vida de artista” é sempre compatível com o dandismo. O dandismo pode em aparência sobressair-se na “vida de artista” e o artista pode ter uma vida de dândi se ele quer, se ele pode. Nos artistas “a fashion deve ser sem esforços: esses seres indomáveis fazem tudo do seu jeito” (Balzac, 1830b, p. 216).

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68 Segundo Balzac, o artista tem o privilégio de revirar a ordem dos valores. Logo, encontramos aqui uma oposição entre o dândi e o artista. Em relação à aparência e à sociedade, a démarche do dândi é uma “submissão” e a démarche do artista é sempre uma criação. Mas, podemos dizer que o artista é marcado também por momentos de corrupção. No interior deste ser de gênio, vamos encontrar a contradição e a instabilidade de atitudes, uma vez que “ele é sempre a expressão de um grande pensamento e domina a sociedade” (Balzac, 1830b, p. 215).

As mudanças efetuadas por Augustine em si-mesma partem da via ocupada para se estender à vida elegante. Mas, Théodore de Sommervieux é mais que um homem elegante. Ele é mais que um dândi. Ele é um artista. Sob o efeito do sucesso da tela do retrato de Augustine na sociedade, a inspiração de Théodore se transforma em maneiras ao conquistar honras com o título de barão e cavaleiro da Légion d’honneur pelo Imperador. A busca de distrações e de sucessos mundanos atira este artista ao lado do dandismo. Vê-se que a meta de Augustine está bem distante do seu desejo. Atrás do quadro que encantou os amadores de arte e os visitantes no Louvre uma tragédia se esconde. Nada na educação desta moça filha de boutiquier não lhe prepara a ser a mulher de um homem artista-dândi-elegante-aristocrata. Após o casamento, o amor de Théodore se esfria: “as filhas de vendedores de tecidos não são forçosamente esposas ideais para os artistas de gênio tumultuado” (Pitt-Rivers, 1993, p. 19). Ele se cansa da sua mulher. Como todos os dândis balzaquianos, ele também prefere uma vida plena de distração e os sucessos mundanos.

A revolução desencadeada pelo retrato da jovem Augustine vai levá-la até a morte. Ela vive algumas conquistas – momentos de sedução e o conhecimento de um outro mundo: a vida de artista – e tenta mudar sua personalidade e seus costumes; “mas, devorando volumes, apreendendo-os com coragem, ela não conseguiu mais do que

69 tornar-se menos ignorante” (Balzac, 1830a, p. 77). Ela se esforça “em vão de abdicar sua razão, de se submeter aos caprichos, às fantasias de seu marido, e de se dedicar ao egoísmo de sua vaidade” (Ibid., p. 78) e não recolhe “nenhum fruto de seus sacrifícios”. É o fracasso desta “cultura de si” 38 no personagem feminino de La Comédie humaine: Augustine permanece como um sujeito de uma cultura burguesa mercantil. Ela sofre da indiferença do aristocrata e do artista.

Por conseqüência, Augustine vai solicitar consolação e conselhos no seio da sua família. Mas, assim que ela expõe sua situação dolorosa, ela não reencontra que “o dilúvio de lugares comuns que a moral da Rua Saint-Denis” (Balzac, 1830a, p. 79) pode oferecer. Na casa dos seus pais, seu olhar cai sobre o célebre quadro da Maison du chat-

qui-pelote. Augustine vê o quadro do seu próprio passado e do seu meio de origem. No

ato de olhar “esta imagem de sua antiga existência” (Ibid., p. 81), a consciência de Augustine diz que, apesar de algumas mudanças que ela efetuou na sua pessoa, ela não pode ser uma verdadeira mulher de artista. É uma consciência dolorosa da incapacidade de se forjar um novo ser.

Mas, pelo poder do seu retrato – que se torna vital para ela como se seu ser estivesse aí inscrito –, subsiste ainda um pacto entre seu ser e o artista. Sua existência se condiciona ao seu retrato. A jovem moça recusa as idéias de seus pais e “diz que ela não gostaria de se separar de seu marido, devesse ela ser dez vezes mais infeliz ainda” (Balzac, 1830a, p. 84). Então, a moça muito burguesa solicita ajuda em vão da sua rival, a duquesa de Carigliano. Balzac descreve o boudoir da duquesa no seu suntuoso hotel do faubourg Saint-German como o mais belo quadro. É um outro “quadro” que se oferece aos olhos espantados de Augustine. Ela tem um medonho aperto de coração e

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“Cultura de si” é um conceito foucaultiano: um preceito de que é preciso se ocupar de si mesmo; uma maneira de se comportar; uma forma de viver; um conjunto de ocupações de si mesmo. Esta noção é desenvolvida no capítulo seguinte.

70 inveja os segredos da vida elegante. Ela experimenta os ciúmes e um tipo de desespero. Seus esforços para adivinhar o caráter de sua rival pelo aspecto dos objetos dispersos falham, pois, “lá havia alguma coisa de impenetrável tanto na desordem como na simetria e para a simples Augustine tudo aquilo era como cartas lacradas” (Ibid., p. 85). Então, um pensamento doloroso sobre sua condição com Théodore surge: “se eu tivesse sido educada como essa sereia, ao menos nossas armas teriam sido iguais no momento da luta” (Ibid., 85). Essa experiência subjetiva na jovem moça nos parece produzida pela contemplação de dois quadros: o quadro da Maison du chat-qui-pelote e o “quadro” – criado pela descrição balzaquiana – do boudoir da duquesa.

Madame de Carigliano lhe dá algumas instruções. Augustine compreende, então,

que na vida elegante, deve-se sempre dissimular, calcular, tornar-se falsa, fazer-se um caráter artificial: “ – Oh céus ! exclamou a moça amedrontada, eis então a vida. É um combate... – Onde é preciso sempre ameaçar, responde a duquesa rindo” (Balzac, 1830a, p. 90). E depois a tragédia do retrato se agrava: Augustine dá um grito quando ela descobre o a tela do seu retrato exposto no salão da duquesa, a amante do seu marido. “– Se, armada deste talismã, você não é amante de seu marido durante cem anos, você não é uma mulher e merece sua sorte!” (Ibid., p. 91), disse a duquesa.

A menina Augustine, querendo tornar-se uma mulher, tenta se salvar com seu próprio retrato. Coloca-o no quarto do casal e veste-se de modo que fica igual em tudo à Augustine do retrato. Tremendo de medo, espera o marido chegar pressentindo que aquela tentativa ia decidir seu futuro. Ao encontrar sua esposa e a tela juntas, o artista alterna os olhares entre o retrato de Augustine e o olhar de Augustine. Furioso, se sentido ameaçado em sua vaidade, ele ruge terrivelmente como uma fera ferida e estraçalha a obra de arte diante dos olhos da menina: “dando à sua amante o retrato de sua esposa, é seu amor que ele profanou; retalhando-o, é sua vida que ele arranca” (Pitt-

71 Rivers, 1993, p. 19). No dia seguinte, Augustine é encontrada no mesmo lugar a contemplar os fragmentos esparsos de uma tela rasgada e uma grande moldura feita em pedaços. Só restava-lhe um olhar de desespero e um estranho pedido de silêncio. A partir daquela terrível noite, a menina da janela da Maison du chat-qui-pelote entra num processo que Balzac chamou de “paciente resignação” (Ibid., p. 93), um tipo de desgraça que supera toda energia humana.

Neste drama balzaquiano, a subjetividade é mediada pelas representações artísticas e sociais. O sujeito – representado pelo personagem de Augustine – elevado à consciência de seu “ser social” só pôde conhecer a decadência. Mas, em Balzac, encontra-se também o caso do sujeito consciente de seu “ser social” que conhece o triunfo: é o caso do dândi Eugène de Rastignac39. O que se vê na história do retrato de Augustine é uma ilustração dos conflitos sociais entre a burguesia e a aristocracia e, consequentemente, os conflitos psicológicos dos indivíduos. Balzac contrói o dandismo neste ambiente de conflitos. O dandismo é uma forma de vida que se constitui no mundo aristocrático emburguesado, mas que nega os costumes e os valores burgueses. Em Balzac, um dos requisitos do dandismo é a capacidade de dominar os códigos da “alta sociedade” – les mondains. Os códigos estão escondidos na nobreza nos gestos, nas sutilezas das linguagens, na experiência com a arte, na capacidade de perceber o “espírito” do cômico e do trágico, na malícia dos olhares, na ironia implícita nos comentários: códigos que se casam com alguns costumes, como o da libertinagem, o do gosto pelas noitadas (les soirées), o do cuidado excessivo com a indumentária, etc.