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A Suspensão do Espaço, Tempo e do Sujeito na Escola

2 SUSPENSÕES PRÓPRIAS DA ESCOLA E SUSPENSÕES SOBRE A ESCOLA

2.1 SUSPENSÕES PRÓPRIAS DA ESCOLA

2.1.1 A Suspensão do Espaço, Tempo e do Sujeito na Escola

Uma das professoras do curso de Licenciatura em Dança da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), que participou do grupo de criação em performance no Instituto Federal CAVG, descreve a sensação que tem sobre a vida escolar de seu filho. Ela conta à Anita que:

Ele adora ir para escola. Lá ele tem a vida dele, que é só dele, desgrudado de mim e do pai dele. Lá na escola ele está longe das nossas chatices, das nossas manias, do nosso jeito de viver. Lá ele tem que enfrentar outras chatices, lidar com outras regras, com outro jeito de viver. Acho que ele está se dando bem, se inventando entre esses dois jeitos diferentes. (ARQUIVO CARTAS PARA ANITA, 2019, p. 21)

Neste trecho, a professora conta que seu filho, ao adentrar no espaço escolar, confronta-se com outras regras que não as da família e que o exercício de lidar com outros jeitos de viver, permite que ele se invente. Esse inventar-se no exercício do confronto o constitui como sujeito e permite que o filho da professora passe a ocupar além do papel social de filho, o de aluno. Para que possa haver a suspensão deste papel social é necessário antes a suspensão do espaço. Destarte, a suspensão do espaço familiar provocada pela escola, com suas outras regras, outros jeitos de viver provocam também a suspensão do sujeito, os indivíduos deixam de ser filhos de alguém para ocuparem o papel social de alunos, colocando-os, em certa medida, numa condição de igualdade (MASSCHELEIN E SIMONS, 2017). Visto que a escola, não é o espaço habitual como a família, nem espaço de trabalho e tampouco a sociedade, mas alude a todos esses espaços no que tange aos conhecimentos, ou seja, como objeto de estudo. Por essa razão, a forma pedagógica, no que diz respeito ao espaço, não é, nem intenta ser, uma extensão da família, do mundo do trabalho e nem dos demais espaços sociais. Neste espaço, suspendem-se esses outros espaços com a intenção de estudá-los e não de apreendê-los, para que posteriormente o indivíduo possa ocupar seu espaço de funcionalidade na sociedade.

Um dos aspectos que constituem tal suspender é o seu caráter temporário, como apresentado no capítulo anterior, quando algo é retirado de seu espaço habitual e ocupa por um longo período de tempo outro lugar, o efeito de suspensão perde-se. À vista disso, a suspensão da escola não implica o desmantelamento dos espaços da família, do mundo do trabalho e dos demais espaços sociais, mas significa “[...] (temporariamente) tornar algo inoperante, ou em outras palavras, tirá-lo da produção, libertando-o, retirando-o de seu contexto normal” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2013, p. 33).

No que se refere ao “ir se inventando entre esses dois lugares”, mencionado pela professora, ao que tudo indica é um processo que exige tempo e talvez não seja percebido cotidianamente. Uma aluna do Instituto Federal da Restinga, cursando o segundo ano do Ensino Médio, parece ter uma sensação sobre a escola muito parecida com a da profM antes citada, ela reconhece o quanto “inventou-se”. Tal reconhecimento parece ter sido possível somente quase no final de seu curso no Ensino Médio. Ela escreve em sua Carta para Anita que a escola

[...] é onde você pode se libertar, sabe? Ser o que você é! Pelo menos na minha atual escola é assim. No fundamental eu costumava ser como meus pais, sabe, costumava pensar como eles. Até que vim para o IF e acabei descobrindo quem sou de verdade. (ARQUIVO CARTAS PARA ANITA, 2019, p. 30)

Esse caráter de constituição de si, de ir inventando a si mesmo, acredito que se deva ao fato dos alunos entrarem em contato tanto com conhecimentos criados pelas gerações que os antecederam, ou seja, os conteúdos das disciplinas, quanto pela convivência com pessoas que trazem referências culturais distintas das suas. Outras duas Cartas para Anita sintetizam bem essa ideia. Numa delas a aluna do Ensino Médio do IF Camaquã escreve que:

Na escola tu sai da tua zona de conforto, convive com quem gosta e com quem não gosta, mas não são apenas pessoas, são universos! Como conhecer outras dimensões. (ARQUIVO CARTAS PARA ANITA, 2018, p. 03)

Na outra carta, uma aluna do curso de Licenciatura em Dança da UFPEL, que diz a

Anita já ter cinquenta e três anos, expõe seu encantamento ao ouvir as gravações das cartas

escritas no IF Camaquã, nas quais ela (a aluna) entende que as cartas apontam a escola como um espaço de autodescoberta.

Eu acabo de ouvir uma gravação de outras cartas endereçadas a você. Elas falam das escolas como lugares de autodescoberta. E é lindo ouvir isso. Eu sempre adorei as escolas. Ficar sentada ouvindo

alguém dizendo coisas novas, coisas que eu nunca imaginei, é incrível. Claro tem gente chata, tem coisas desinteressantes, mas são sempre portas novas se abrindo e a gente precisa pelo menos dar uma espiada para ver se gosta ou não. Eu adoro até hoje (e olha que eu tenho 53 anos). Mas só com o tempo é que fui descobrindo que importante talvez, mais ou menos, não sei, era o que acontecia nos corredores, nos pátios, nas cantinas, nos banheiros. (ARQUIVO CARTAS PARA ANITA, 2019, p. 25)

A sensação da aluna do IF Camaquã é que o encontro com o outro, com o desconhecido e o diferente desconforta, mas não se trata apenas de gostar ou não gostar do modo como o outro se apresenta, a aluna percebe que as pessoas a deslocam da sua zona de conforto, pois trazem consigo suas culturas, seus modos de ver o mundo, tratar-se-iam de outros mundos, ou como ela diz, outras dimensões. Seriam como portas se abrindo no constante processo de invenção de si mesmo, tais portas são tanto os conhecimentos, quanto os indivíduos que convivem no espaço escolar. Acredito que o papel social de aluno provoca uma situação transitória de igualdade e é esta que permite evidenciar as diferenças culturais e sociais que potencializam a produção de conhecimentos para além dos conteúdos apresentados em sala de aula. Assim, inventa-se, habita-se a si mesmo em todas as experiências vividas no espaço escolar. A referida situação transitória de igualdade, provocada ao ocupar o lugar de aluno potencializa o reconhecimento das diferenças e dessas como parte constituinte do mundo.

Na visão de Masschelein e Simons (2017) ao ser suspenso de seu papel social de filho o indivíduo ocupa o de aluno, tal papel é fundamentalmente igual para todos os indivíduos, o que coloca indivíduos diferentes temporariamente em uma situação na qual partilham de “[...] uma crença utópica: todos podem aprender tudo51. Essa não é uma afirmação factual, mas

uma crença. É outro modo de formular a suposição pedagógica básica de que seres humanos nascem sem destino (natural, social e cultural), e deveriam dar a si próprios um destino” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2017, p. 54-55). Assim como os alunos, os professores igualmente suspendem a ideia do adulto que produz, para dedicar seu tempo a uma atividade supostamente improdutiva ou com uma produção não imediata. A ação do professor pode suspender o outro, assim como o faz um performer ao colocá-lo diante de algo que o retira de seu tempo, de seu espaço e o convoca a olhar outros mundos.

É o que gosto na educação. Me permite ir a mundos distantes. Quanto mais distante melhor. Egito, Atena, Guatemala, Século I, mil séculos. Ou melhor, o distante que está bem do nosso lado. (ARQUIVO CARTAS PARA ANITA, 2019, p. 25)

Em outra carta há uma sensação de escola muito similar a essa. Ao destacar a importância da escola, o aluno escreve que:

A escola é um meio educacional importantíssimo para o ser, pois é nela que começamos a descobrir e a desvendar as coisas, aprendemos a ler, o se socializar, conhecemos diversos mundos, culturas, professores, etc. Por mais que tenha seus meios negativos, temos que enfrentar, são três etapas até chegarmos no meio universitário, que é diferente do meio de ensino do fundamental e do ensino médio. Não deixe o medo te derrubar! (ARQUIVO CARTAS PARA ANITA, 2019, p. 24)

Ambos os remetentes nos apontam a escola como um ambiente no qual podemos aprender, socializar, conhecer outras culturas, pessoas. No entanto, poder-se-ia indagar se em ambientes como as igrejas com seus grupos de jovens, os clubes esportivos, associações comunitárias, viagens ou a própria família não se aprende nada. Com efeito, aprendemos desde que nascemos, em todos os ambientes e com as inúmeras experiências, destarte, não é somente na escola que se aprende. O que difere a escola desses outros ambientes nos quais também se aprende? Nos trechos citados acima aparece na escrita dos remetentes a sensação da escola como a possibilidade de aproximar-se do que é distante e distanciar-se do familiar, ou seja, a escola suspende o que é familiar. Não seria esse também um aspecto da suspensão da performance?

De acordo com os fragmentos citados acima há na vivência escolar a possibilidade de contatar com tempos e espaços distintos do contemporâneo, suspende-se não só o espaço, mas igualmente o tempo. A suspensão de tempo ocorre na medida em que convoca temporariamente o aluno para uma espécie de estado de presente-do-presente, pois exige do aluno libertar-se do seu passado e de suas expectativas para o futuro, no tempo em que está no espaço escolar e, simultaneamente, o coloca em contato com o passado para fora de si mesmo, o mundo das gerações passadas, não somente os conhecimentos específicos de determinada cultura, mas de modos de existência distintos dos grupos sociais aos quais os alunos pertencem. Surpreendi-me ao encontrar ideia semelhante na carta de um aluno do Ensino Médio do IF Camaquã, ele escreve que:

A escola é um espaço em que podemos construir caminhos, amigos, sonhos e conhecimento, é o lugar onde aprendemos muito mais do que matérias ou disciplinas. Aqui na escola herdamos o conhecimento, que nos possibilita ir muito além do que imaginamos. (ARQUIVO CARTAS PARA ANITA, 2018, p. 02)

Quando li essa carta de imediato me lembrei de Hanna Arendt (1957) também forte referência para os escritos de Masschelein e Simons (2013; 2017). Em seu texto intitulado A

Crise na Educação, publicado pela primeira vez em 1957, Arendt reflete sobre a crise na

educação estadunidense. Neste texto ela argumenta, que a escola, ainda que apresente o mundo às novas gerações, não é e nem deveria ser o mundo. Para a autora, a escola teria a responsabilidade de apresentar o mundo aos jovens; na escola os adultos teriam a responsabilidade de serem representantes do mundo. Isso não implicaria, aos adultos, a obrigatoriedade de concordar com esse mundo, mas sim, apresentá-lo às crianças. Desta maneira, a escola deveria ser um convite às crianças para conhecer o mundo criado pelas gerações passadas e tal conhecimento permitiria que as novas gerações criassem o não previsto, ou de acordo com as palavras do aluno citado acima, ir muito mais além do que imaginamos.

Destarte, aluno e professor suspendem o tempo de produção, suspendem o tempo destinado à produção para dedicarem-se ao estudo, ao debate a não produção imediata. De certo modo, arrisco dizer que tais suspensões deslocam o aluno e o professor de um tempo privado (individual, sua produção, sua família, seu passado e seu futuro) para o tempo público (coletivo, conhecimentos que constituem nossa sociedade histórica e culturalmente, o tempo dedicado ao que está fora de si). Dito de outro modo, ao contrário do que se instituiu como senso comum, de que na instituição escolar promove-se a mera repetição de conteúdos velhos que nada tem a ver com os jovens, pensar os elementos constituintes da forma pedagógica, prevê que tais conhecimentos devem ser suspensos, devem ser estudados, fatiados, desconstruídos, para que as novas gerações não só os conheçam como também os questionem e criem com ou a partir deles.

Reafirmo que as suspensões neste estudo apontadas como próprias da escola, tendo como referência os estudos de Masschelein e Simons (2013; 2017), ocorram só parcialmente nos espaços escolares contemporâneos. No entanto, sua relevância na pesquisa em tela deve- se ao fato de as suspensões referidas como próprias da escola, parecerem aproximar-se das suspensões da performance. Por conseguinte, evidenciam o imenso potencial performativo do espaço escolar. Indago-me se, diante dos conflitos, deslocamentos, incertezas produzidas pelas suspensões, entendidas nesta pesquisa como próprias da escola, seria possível abandonar em alguma medida as tentativas de apaziguamento de tais conflitos no espaço escolar e investir mais em práticas pautadas pelo pensamento do talvez.