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A OPERAÇÃO DE FICÇÃO NA PERFORMANCE

No capítulo anterior abordei a operação de profanação na performance, compreendendo-a como um jogo de composição das crenças tomadas socialmente como verdade, no caso da pesquisa em tela especificamente sobre os modos de habitar a escola. Tais composições produziram tanto o que designo como programa performativo, inspirada na ideia de Fabião (2009; 2010), quanto nas reflexões sobre nossos procedimentos e processos junto aos grupos de criação em Performance nos Institutos Federais. No entanto, é impossível dimensionar o que produziu de pensamento e saberes naqueles que participaram das performances, por essa razão o foco da análise centra-se em nossos processos e nas sensações dos performers a respeito do que criamos juntos. A análise das reflexões sobre nossas práticas me permitiu identificar movimentos engendrados pelos procedimentos adotados, ou seja, como nos movemos e quais movimentos reverberaram ao termos, como princípios norteadores, as operações de suspensão e profanação, ou seja, o que ficcionamos.

Portanto, neste capítulo, pretendo descrever como esses movimentos emergiram em nossas práticas (não somente nos programas performativos, mas em nossas ações durante o processo e as sensações que conseguimos vislumbrar) e de que maneira elas nos permitem pensar em habitar/construir a escola. Por meio de nossos processos de criação evidenciaram- se três movimentos que penso constituir a operação de ficção da performance, quais sejam: movimentos experimentais, movimentos colaborativos e movimentos políticos. No entanto, antes é fundante apresentar o que entendo como operação de ficção na performance e suas implicações com o jogo que estabeleço entre performance e educação. Assim, na primeira parte deste capítulo sugiro que a operação de ficção é inerente à performance, para tanto, apresento a noção de ficção que me parece está implicada com a linguagem da performance. Na segunda parte descrevo o que designo como os movimentos experimentais, na terceira, os movimentos colaborativos e, na quarta, os movimentos políticos e como nossos processos me permitiram desenhá-los como parte da operação de ficção da performance.

4.1 FICÇÃO NA PERFORMANCE

Um dos elementos dramatúrgicos que compõem a noção de programas performativos, proposto por Fabião (2009, p. 63) trata da “[...] recusa de performar personagens fictícios e o interesse em explorar características próprias” do performer. Isto é, um programa não busca criar uma história, tampouco ter como foco que o performer jogue atuando como se fosse

outro que não ele mesmo, não há a criação de um personagem ligado a uma fábula. Mas ao explorar a própria biografia para compor um programa o performer não estaria operando ficcionalmente? Entendo que ao trabalharmos nos grupos de criação e performance, recompondo com nossas coleções de crenças, jogando com elas, nós ficcionamos tanto por meio da experiência dos programas performativos, quanto na elaboração dos pensamentos que reverberaram sobre os modos de habitar a escola no decorrer dos processos de criação. No entanto, porque falar em ficção na performance se tal linguagem não intenta criar fábulas e personagens como no teatro?

Medeiros (2014) defende que a performance não é ficção, pois não busca representar algo. Para a autora, a performance “[...] não apresenta, ela presenta, presentifica, torna presente algo que antes não estava posto. A arte pode ser ficção. A performance à qual nos referimos não é ficção: ela joga na cara o real irredutível as representações” (MEDEIROS, 2014, p. 55). Tornar presente algo que antes não está posto não seria uma operação de ficção? Penso que na perspectiva da autora a noção de ficção está relacionada a uma tradição filosófica, antropológica e sociológica, na qual real e ficção antagonizam, posto que a segunda seria uma reapresentação do real, ou uma cópia não verdadeira da realidade.

Nos processos de criação com os grupos dos Institutos Federais partimos de crenças, naturalizações sobre o espaço escolar, trabalhamos com crenças que atuam no cotidiano e compõem nossa ideia de realidade. Criamos ações/situações nas quais nós e os participantes dos programas experimentamos por um período de tempo, situações extracotidianas no espaço escolar. Nosso grupo tornou algo presente, que antes não estava posto sobre o que é compreendido como natural, real nas instituições escolares. Para tanto, elaboramos as ações jogando com as naturalizações, compondo com elas. Isto não seria em alguma medida ficção?

A performance Teia de afectos, por exemplo, solicitava ao participante marcar no pátio da escola um lugar no qual viveu algo que o afectou. O afecto de um estava ligado ao afecto de outro, formando assim a grande teia. As memórias foram presentificadas, mas também muitas pessoas que por ali passavam tiveram seus corpos alterados, precisaram mover-se de maneira distinta do habitual. Como mencionou um dos professores participantes a teia remetia às relações interpessoais da escola que também criam currículos, que também ensinam83. A participação dele nesta performance o levou a pensar e associar a ação aos currículos, ele por meio do contato com a performance criou algo. Tanto a ação de elaboração

de programas quanto os afectos produzidos pelo contato com a performance, não seriam ficção?

Uma das questões disparadas pela arte da performance é o borramento, a diluição dos limites entre vida e arte. O questionamento de tais limites não foi um movimento isolado do campo das Artes, trata-se de um dos grandes marcos do que se convencionou chamar de pós- modernidade (COELHO, 2001). Nessa conformidade, outros campos movimentaram-se, buscando referências e modos de compreender e pensar as relações sociais, o corpo, a ética, a política, pondo em xeque as verdades inabaláveis que regiam o mundo. Desse modo, a performance como metodologia de análise das condutas sociais também parte do pressuposto de que as relações sociais, as condutas entendidas como reais, cotidianas são construídas histórica e culturalmente. Há na vida que designamos como real uma teatralidade, mas que não antagoniza com o real e sim configura o que se entende como real. Tal pressuposto já foi apresentado na introdução e no capítulo um, posto que é fundante para a pesquisa em tela. Retomo aqui com o intuito de repensar a ideia de que na performance não há produção ficcional.

Talvez seja importante considerar que a linguagem da performance assim como a performance social, ligada ao campo da antropologia, emergem entretecidas com uma tradição filosófica, na qual ficção e realidade não antagonizam, posto que se entende a realidade como um eterno jogo de criação, ao contrário da tradição filosófica platônica.

Flusser (1966) aponta que o tema da ficção do mundo ou a metáfora do mundo como ficção apresenta-se ao longo de toda a história do pensamento ocidental e de modo sintético o autor apresenta alguns exemplos: “Platão (vemos apenas sombras); Cristianismo medieval (o mundo é uma armadilha montada pelo diabo); Renascimento (o mundo é um sonho); Barroco (o mundo é teatro); Romantismo (o mundo é minha representação); Impressionismo (o mundo é como se)” (FLUSSER, 1966, p. 1). No entanto, todos esses exemplos conferem ao mundo, ou ao conhecimento de mundo, traços de ficção se comparado à determinada realidade, assim, sob esse prisma, ficção seria o contrário de realidade. Isto é, todos eles partem da ideia de que há uma realidade ancorada numa suposta verdade. O Mito da Caverna de Platão, ainda hoje baliza com força as noções de conhecimento, verdade e aparência. Para Platão vemos as sombras, mas há outro espaço no qual estão as imagens que produzem as sombras, logo há o espaço das imagens verdadeiras. Devemos lutar para sair da caverna, do mundo das aparências, das ilusões em direção à luz do exterior da caverna onde descobriremos a verdade, teremos acesso ao verdadeiro conhecimento. Assim, vale pensar que o conhecimento é a busca por descobrir esse espaço no qual está a verdade, ou melhor, há verdades para serem