• Nenhum resultado encontrado

A teoria geral da desconsideração da personalidade jurídica

4. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

4.2. A teoria geral da desconsideração da personalidade jurídica

No intuito de afastar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica quando devidamente verificada a fraude ou abuso de direito praticados pelos sócios ou administradores, é que foi desenvolvida a teoria geral da personalidade jurídica, para o fim de imputar o ato ilícito diretamente à pessoa física responsável pelo ato.

Essa teoria, conhecida na doutrina como Disregard of Legal Entity, encontra a sua origem na jurisprudência inglesa, no caso Solomon vs. Salomon & Co. Ltd., de 1897 e na jurisprudência norte-americana, no caso Bank of United States vs. Deveaux, de 1809.

O primeiro estudo denso sobre a Disregard of Legal Entity que se tem conhecimento é de autoria do alemão Rolf Serick102, a quem coube a sua

sistematização. No Brasil, a sua primeira aparição deve-se a um estudo de Rubens Requião, o qual defendia a aplicação da teoria originária do direito anglo-saxão às particularidades do direito brasileiro:

Como ponto de partida para conceituar a doutrina do disregard ou da penetração, é necessário convir que as pessoas jurídicas, sobretudo no que concerne ao direito brasileiro, constituem uma criação da lei.

(...)

(...) Se a personalidade jurídica constitui uma criação da lei, como concessão do Estado objetivando, como diz Cunha Gonçalves, 'a realização de um fim' nada mais procedente do que se reconhecer ao Estado, através de sua justiça, a faculdade de verificar se o direito está sendo adequadamente usado. (...).103

Sobre esse assunto, Fábio Ulhoa Coelho esclarece que há duas formulações para a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, e são elas: “a maior, na qual o juiz é autorizado a ignorar a autonomia patrimonial das pessoas jurídicas, como forma de coibir fraudes e abusos praticados através dela e a menor, em que o simples prejuízo do credor já possibilita afastar a autonomia patrimonial"104.

Pelo esclarecimento acima, percebemos que a teoria maior é bem mais elaborada do que a teoria menor, ao exigir a caracterização da fraude ou do abuso do direito. Mencionada teoria, ressalte-se, não é contra o princípio da autonomia patrimonial, ao revés, visa à proteção desse instituto. Nesse sentido, continua Fábio Ulhoa Coelho105 a aduzir que:

_________________

103

REQUIÃO, Rubens. “Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica”. Revista dos Tribunais 803/751-764, ano 91. São Paulo, set. 2002, p. 754.

104

COELHO, Fábio Ulhoa, 1959-. Curso de direito comercial, vol. 2 / Fábio Ulhoa Coelho. 5. ed. Rev. e atual. De acordo com o novo Código Civil e alterações da LSA. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 35.

105

A teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica não é uma teoria contrária à personalização das sociedades empresárias e à sua autonomia em relação aos sócios. Ao contrário, seu objetivo é preservar o instituto, coibindo práticas fraudulentas e abusivas que dele se utilizam.

A teoria da desconsideração da personalidade jurídica deve ser aplicada como exceção às regras da separação patrimonial da pessoa jurídica para coibir a fraude viabilizada pela manipulação de tais regras. Ao ser aplicada a teoria, deverão ser preservados os atos constitutivos da pessoa jurídica, ocorrendo tão somente a sua ineficácia episódica para serem alcançados, num caso específico, os sócios ou administradores.

Ademais, a pessoa jurídica deve ser desconsiderada apenas se o manto da personalidade servir para a manipulação fraudulenta ou abusiva do princípio da autonomia patrimonial, perpetrada pelos sócios ou administradores e não por atos da própria pessoa jurídica. Nesse sentido106:

"enquanto o ato é imputável à sociedade, ele é lícito. Toma-se ilícito apenas quando se imputa ao sócio, ou administrador. A desconsideração da personalidade jurídica é a operação prévia a essa mudança de imputação. A sociedade empresária deve ser desconsiderada exatamente se for obstáculo à imputação do ato a outra pessoa. Assim, se o ilícito, desde logo pode ser identificado como ato de sócio ou administrador, não é caso de desconsideração."

A aplicação da teoria maior da desconsideração encontra sérios problemas no campo das provas, porque se desenvolveu como formulação subjetiva ao prestigiar o afastamento da autonomia patrimonial da pessoa

jurídica somente quando da prática, pelos seus sócios ou administradores, de atos fraudulentos ou abusivos no intuito de perseguir a frustração dos interesses dos credores.

Para o fim de facilitar a produção de provas na aplicação da teoria, foi desenvolvida uma formulação objetiva.

Para a teoria objetiva, o pressuposto da desconsideração está na

confusão patrimonial. Assim, percebe-se que a aplicação da teoria resta

facilitada no campo das provas. Se mediante uma análise da contabilidade da empresa, de suas contas bancárias, verificar-se que o patrimônio da empresa e dos seus sócios estão interligados, uns pagando as contas dos outros, resta provada a confusão patrimonial.

Coube a Fábio Konder Comparado a revisão final do art. 50 do Novo Código Civil, quando o mesmo prestigiou na redação da norma a formulação objetiva.

A outra teoria da desconsideração sobre a qual falamos é a teoria menor. Essa teoria tem como pressuposto a inadimplência perpetrada pela pessoa jurídica. Por essa teoria, o inadimplemento das obrigações da pessoa jurídica e a solvência dos seus sócios são fatos suficientes para que se levante o véu da personalidade jurídica.

Essa teoria vai de encontro ao princípio da separação patrimonial, sendo o seu uso fundamento para a desconsideração de um retrocesso jurídico.

Na doutrina brasileira, com base na literatura que tivemos acesso, consideramos os textos de Heleno Taveira Tôrres107 a melhor posição sobre a teoria da desconsideração da personalidade jurídica.

Segundo esse autor, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica possui duas funções, quais sejam: uma função substantiva e uma função instrumental.

“uma função substantiva, quando ela é utilizada diretamente como meio sancionatório”108

“uma função instrumental da desconsideração de atos e negócios, quando serve de meio para alcançar diretamente aos sócios, visando a aplicar-lhes sanções de ordem administrativa ou penal, ou mesmo atribuir-lhes o cumprimento de ordem judicial, com responsabilidade patrimonial e pessoal em todos os casos”109.

Para Heleno Taveira Tôrres:

“em termos substantivos, a desconsideração de ato, negócio ou personalidade jurídica é espécie de sanção que consiste em negar ou afastar o reconhecimento dos efeitos que suas qualificações jurídicas operam no ordenamento, em vista de determinados pressupostos e em face de uma dada situação específica”110

(...)

“Na sua função instrumental, presta-se apenas para imputar aos sócios efeitos jurídicos os quais, não fosse a superação, ao serem imputados diretamente à sociedade, perderiam sua efetividade ou prejudicariam os demais sócios ou terceiros que

_________________

107

Heleno TÔRRES. Direito tributário e direito privado: autonomia privada: simulação: elusão tributária / Heleno Tôrres. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. Heleno Taveira Tôrres. Regime Tributário da Interposição de Pessoas e da Desconsideração da Personalidade Jurídica: os Limites do art. 135, II e III, do CTN, p. 21 a 68. Tôrres, Heleno Taveira; Queiroz, Mary Elbe (coordenação) – Desconsideração da Personalidade Jurídica em Matéria Tributária. São Paulo: Quartier Latin, 2005.

108

Heleno Taveira TÔRRES. Regime Tributário da Interposição de Pessoas e da Desconsideração da Personalidade Jurídica: os Limites do art. 135, II e III, do CTN, p. 21 a 68. Tôrres, Heleno Taveira; Queiroz, Mary Elbe (coordenação) – Desconsideração da Personalidade Jurídica em

não estivessem envolvidos diretamente com o caso que serve de motivo para a desconsideração.”111

As duas funções estão muito bem descritas no texto que segue:

Mas como já se disse, por ser evidente, que a pessoa jurídica, válida na sua constituição, poderá cometer, ao longo de sua existência, distintas modalidades de atos ilícitos, é possível que para o efetivo conhecimento probatório de tais atitudes seja necessária a desconsideração de sua forma jurídica, para identificar sua real constituição patrimonial e as efetivas relações entre os sócios e as atividades desenvolvidas pela sociedade. E assim, uma vez qualificado o ilícito, com o descortinamento do véu, poderá a autoridade, administrativa ou judicial, tanto aplicar o regime jurídico que fora afastado por tal manobra, quando a desconsideração, por si só, já se converte como modalidade de sanção (função substantiva), como muita vez se verifica em matéria tributária; como poderá sancioná-lo mediante punições administrativas ou penais, a depender da tipológica: como espécie de ilícitos típicos, nas hipóteses de descumprimento de normas imperativas que obrigam ou proíbam certas condutas; ou com natureza de ilícitos atípicos, por excessos do direito de gestão, fraude à lei, abuso de direito ou confusão patrimonial.112

..., a superação da instrumental separação de patrimônios que o direito privado preestabelece entre a personalidade jurídica da sociedade e seus sócios, não deve afetar o princípio de conservação do contrato societário, porquanto seja mecanismo que se usa exatamente para os casos em que não se possa desconstituir a sociedade e que o ilícito não possa ser conhecido sem o recurso a tal método. E sua aplicação poderá tanto consistir em modalidade sancionatória per si, como poderá servir apenas de meio, de instrumento, para que se possa provar o cometimento de eventuais ilícitos e aplicar-lhe as sanções previstas, por que encobertos pelo manto da forma

_________________

111

Heleno Taveira TÔRRES. Regime Tributário da Interposição de Pessoas e da Desconsideração da Personalidade Jurídica: os Limites do art. 135, II e III, do CTN, p. 21 a 68. Tôrres, Heleno Taveira; Queiroz, Mary Elbe (coordenação) – Desconsideração da Personalidade Jurídica em Matéria Tributária. São Paulo: Quartier Latin, 2005, pp. 48-49.

112

societária atribuída no exercício de autonomia privada pelos respectivos sócios.113

Esse autor, fazendo referência aos critérios adotados para justificar a medida extrema da desconsideração da personalidade jurídica em outros ordenamentos jurídicos, quais sejam: “fraude à lei” ou “abuso de direito”, “simulação”, “aparência” ou “interposição de pessoas”, ou uma conjugação entre esses critérios, demonstra que somente uma análise criteriosa de cada ordenamento possa dar a efetiva dimensão do seu padrão de controle e aplicação da desconsideração da personalidade jurídica de sociedades. Por esse motivo, não admitimos que essas experiências sejam aplicadas como uma fórmula universal.

4.3. A desconsideração da personalidade jurídica no direito