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Capítulo IV A representação social do “ensinar Geografia”

4.1. A teoria do núcleo central

Desenvolvida inicialmente pelo pesquisador francês Jean-Claude Abric, em 1976, a teoria do núcleo central das representações sociais constitui-se, hoje, em uma abordagem complementar à “grande teoria” psicossociológica proposta por Moscovici. (SÁ, 1996, p.51). Segundo Abric (1996, p.10), as representações sociais não se definem apenas pelo seu conteúdo. É preciso identificar nesse conteúdo os elementos que dão significado e estruturam a representação.

Considerando as representações sociais como conjuntos sócio-cognitivos organizados e estruturados este autor defende que a estrutura de uma representação é constituída por dois subsistemas denominados de sistema central e sistema periférico. A existência desses dois sistemas permite compreender porque as representações são, simultaneamente, estáveis e móveis, rígidas e flexíveis. No tocante à estabilidade e rigidez, estas estariam relacionadas ao sistema central (ou núcleo central) e se apoiariam no sistema de valores partilhados pelos membros de um determinado grupo. Já a mobilidade e flexibilidade seriam características devidas ao sistema periférico, cuja determinação seria mais individualizada e contextualizada, pois se alimenta das experiências individuais “integram os dados do vivido e da situação específica, integram a evolução das relações e das práticas sociais nas quais se inserem os indivíduos ou os grupos” (ABRIC, 2000, p.34).

Quando se busca compreender a evolução e transformação das representações sociais faz-se necessário determinar a organização desses dois sistemas.

Abric compreende o sistema central como um subconjunto da representação em torno do qual esta se organiza. O núcleo central é, portanto, entendido como “uma estrutura que organiza os elementos da representação e lhes dá sentido” (FLAMENT, 1987 apud SÁ, 1996, p. 66). Os condicionantes que determinam a existência do núcleo central são vinculados à natureza do objeto representado, às relações que o grupo social mantém com o mesmo, bem como, ao sistema de valores e normas sociais adotado num determinado momento (ABRIC, 2000, p.31).

Atento à idéia de que as representações sociais possuem uma função prática, Abric descreve o núcleo central como possuidor de duas funções fundamentais:

- Uma função geradora: ela é o elemento através do qual se cria, ou se transforma, o significado dos outros elementos constitutivos da representação. É através dele que os outros elementos ganham um sentido, um valor.

- Uma função organizadora: é o núcleo central que determina a natureza dos elos, unindo entre si os elementos da representação. Neste sentido, o núcleo é o elemento unificador e estabilizador da representação (ABRIC, 2000, p. 31).

Abric ( 2000, p.32 ) reconhece três funções primordiais no sistema periférico: a função de concretização, a de regulação e a de defesa. A função de concretização dá-se através da “interface entre o núcleo central e a situação concreta na qual a representação é laborada ou colocada em funcionamento”. Por meio dos elementos periféricos, observamos as tomadas de posição ou de condutas em um contexto imediato. A função de regulação caracteriza-se pela absorção de novas informações ou eventos que colocariam em questão o núcleo central. “Os elementos periféricos têm um papel essencial na adaptação da representação às evoluções do contexto”. A função de defesa do sistema periférico permite que o núcleo central resista à mudança, uma vez que sua transformação provocaria uma alteração completa da representação. “Elementos susceptíveis de entrar em conflito com os fundamentos da representação poderão também ser integrados, seja lhes atribuindo uma

importância menor, seja lhes reinterpretando na direção do significado estabelecido pelo núcleo central ou, ainda, lhes atribuindo um caráter de exceção”.

A organização interna das representações sociais, com a caracterização dos dois sistemas ( central e periférico ) cumprindo funções que a estruturam, permite-nos observar os processos de transformação das mesmas com possibilidade de intervir em sua evolução. Para o nosso estudo, esta é uma preocupação fundamental. Nesse sentido, a teoria complementar do núcleo central fará parte do modelo que utilizaremos para apreender o objeto de estudo em questão.

Observada nas condutas e nas comunicações sociais uma representação social torna- se entidade quase tangível (MOSCOVICI, 1978, p. 14), mas de apreensão empírica complexa, o que tem conduzido os pesquisadores a utilizarem vários métodos e estratégias metodológicas. Dentre os principais métodos de levantamento inicial e identificação das cognições centrais são comumente utilizados: a associação livre de palavras; a hierarquização de itens e a indução por cenário ambíguo. Adotamos aqui o método que busca identificar a saliência dos elementos de uma representação social a partir do emprego da associação livre ou evocação livre, dada a sua ampla utilização no Brasil e na França, particularmente. Passaremos a explicitá-lo.

Visando a identificar a estrutura da representação em estudo, ou seja, o núcleo central e os elementos periféricos, fizemos uso da associação livre de palavras (comumente designado pela sigla TALP). Segundo esta técnica projetiva, já bastante consagrada no estudo das representações sociais, particularmente na França, mas também no Brasil ( BRITO, 2004; MELO, 2005; SÁ, 1996 ), solicita-se aos sujeitos que associem as palavras e expressões que lhes vêm à mente, tão logo lhes seja apresentado um determinado estímulo visual ou sonoro. No nosso caso, essa técnica foi aplicada a 123 professores(as) graduados em Geografia que atuam na rede pública (municipal e estadual) da cidade de Teresina-PI. Para a escolha do estímulo a ser utilizado, aplicamos, em dezembro de 2004, um pré-teste junto a 20 alunos(as) formandos(as) do curso de Licenciatura Plena em Geografia da Universidade Federal do Piauí, os quais, na ocasião, encontravam-se matriculados na disciplina Prática de ensino II. Esses(as) alunos(as) já atuavam em escolas

do município, como professores(as) estagiários(as)33 ou em escolas particulares, como professores(as) efetivos(as). No pré-teste utilizamos duas expressões – ensino de Geografia e ensinar Geografia. Esta última mostrou-se mais adequada aos propósitos desta pesquisa por suscitar, nos sujeitos, elementos do fazer pedagógico, mediados pelos conteúdos da ciência geográfica, enquanto a primeira expressão revelava apenas os conteúdos a serem ministrados. Assim, apresentamos aos sujeitos a expressão indutora “Ensinar Geografia” e solicitamos que eles associassem palavras, conforme já indicado, no número máximo de seis, correspondentes aos espaços livres que constavam no instrumento aplicado ( Cf. Anexo B ). Em seguida, solicitamos que hierarquizassem as palavras evocadas em ordem de importância, escrevendo à frente de cada uma delas um número de ordem. Por último, solicitamos que escrevessem o significado da palavra apontada como a mais importante dentre as que foram evocadas34. Originalmente, na teoria do núcleo central, considerava-se, para a análise das evocações, a ordem de aparição das mesmas, mas, aqui, estamos adotando a ordem de importância que os sujeitos atribuem às evocações, conforme as novas orientações de Abric35.

O instrumento foi aplicado a cada professor, de modo individualizado, na maioria das vezes dentro das escolas onde trabalhavam, nos momentos de intervalo das aulas (recreio dos alunos ou horário pedagógico do professor). Após essa aplicação, anteriormente descrita, realizamos as etapas de análises dos dados obtidos.

O tratamento dos dados foi realizado com o auxílio do software EVOC, construído por Pierre Vergès e seus colaboradores. Utilizamos a versão 2000 que “roda” sobre plataforma Windows. O EVOC é constituído por um conjunto de programas que permitem uma análise das evocações e a identificação dos possíveis elementos da representação social, bem como a sua estrutura (núcleo central e sistema periférico). Ele faz o

33 A Prefeitura Municipal de Teresina faz contratações temporárias ( de no máximo dois anos ) de alunos(as)

dos cursos de licenciatura, para atuarem no ensino de 5ª a 8ª série. Esses(as) alunos(as) são denominados(as) de professores(as) estagiários(as), embora os mesmos não recebam nenhum tipo de acompanhamento que possa caracterizar o seu trabalho como estágio. Na verdade, eles assumem a regência de classe e atuam como professores(as) efetivos(as).

34 Este procedimento corresponde às orientações de Jean-Claude Abric para um dos métodos de abordagem

estrutural das representações sociais. Cf. SÁ, 1996.

35 Abric, considera esse procedimento mais adequado do que o da ordem de aparição das palavras uma vez

que, em um discurso, é necessária uma fase mais ou menos longa de aquecimento para o estabelecimento da confiança e uma redução dos mecanismos de defesa e, somente nesta fase, será possível surgir no discurso dos sujeitos as coisas que estes consideram essenciais. (ABRIC apud OLIVEIRA et al, 2005, p. 580)

levantamento da freqüência com que a palavra foi enunciada pelos participantes e combina com a média das ordens médias de evocações (OME36). A OME é calculada para cada palavra evocada atribuindo-se pesos diferenciados segundo a hierarquia estabelecida pelos respondentes (peso 1 para as colocadas em 1º lugar; peso 2 para as que ficarem em 2º e assim sucessivamente). O resultado é dividido pelo somatório dos valores da freqüência total das evocações. Exemplo37:

Tabela 26 - Exemplo de tratamento dos dados realizado pelo EVOC - 2000

POSIÇÕES PALAVRA EVOCADA 1ª 2ª 3ª 4ª 5ª 6ª SOMATÓRIO FREQÜÊNCIA 6 3 1 2 1 1 14 PRODUTOS (6X1)+ (3X2)+ (1X3)+ (2X4)+ (1X5)+ (1X6)= 34 OME 34 ÷ 14 = 2,42

Fonte: Crédito direto da autora

Após combinar freqüência e OME de todas as palavras evocadas o software distribui os resultados em um plano no qual se cruzam dois eixos ( um vertical e outro horizontal ), dando origem a quatro quadrantes. No quadrante superior esquerdo situam-se as palavras ( elementos ) do provável núcleo central da representação. No superior direito e inferior esquerdo estão os elementos intermediários e no inferior direito os elementos periféricos, conforme exemplo a seguir38.

Diagrama 1- Critérios de distribuição dos atributos nos quadrantes dos sistemas (central e periférico) de uma representação social

Quadrante 1 (elementos do núcleo central) Quadrante 2 (elementos intermediários) Freqüências em número igual ou maior que a média de

evocações. Freqüências em número igual ou maior que a média de evocações.

Ordem média de evocação menor que a média das

OMEs Ordem média de evocação maior que a média das OMEs

Quadrante 3 (elementos intermediários) Quadrante 4 (elementos do sistema periférico) Freqüências em número menor que a média de

evocações. Freqüências em número menor que a média de evocações.

Ordem média de evocação menor que a média das

OMEs Ordem média de evocação maior que a média das OMEs

36 Mantemos aqui a mesma sigla (OME) utilizada por Vergès, entretanto, chamamos a atenção para a

explicitações realizadas anteriormente. A ordem que consideramos em nosso estudo é a de importância e não a de aparecimento das evocações.

37 Adaptado de Pessoa, 1999, p.93. 38 Idem, p.102.

As justificativas dadas pelos participantes às palavras escolhidas como a mais importante, das seis39 evocadas por cada um deles, foram submetidas à análise categorial de conteúdo ( BARDIN, 1986; BAUER, 2002, FRANCO, 2003 ) e contribuíram para melhor compreender-se os sentidos dos elementos que compõem o conteúdo da representação social, bem como para estabelecer as relações entre os mesmos e outros referentes culturais que se imbricam no processo de construção representacional.