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Considerações sobre a consolidação do campo geográfico no Brasil

Capítulo I O campo geográfico no Brasil e no Piauí

1.2. O campo da ciência geográfica no Brasil

1.2.3. Considerações sobre a consolidação do campo geográfico no Brasil

O que apresentamos anteriormente não tinha a pretensão de ir além de uma esquematização de certos elementos históricos e estruturantes do campo geográfico brasileiro, o que extrapolaria os objetivos do nosso projeto de tese. Façamos, agora, mais algumas reflexões sobre os nossos achados. Retornemos a Bourdieu, nas suas últimas lições no Collège de France, de 2000 a 2001.

A autonomia de um campo é conquistada pouco a pouco, diz ele. Iniciada com Copérnico, a revolução científica terminou com a criação da Royal Society, em Londres. “O objectivo10 institucional desta revolução – fazer da ciência uma atividade intelectual distinta, controlada apenas pelas próprias normas – foi alcançado no século XII” (BEN- DAVID, 1997, p. 280, apud BOURDIEU, 2004c, p. 70).

O processo de autonomização do campo científico se efetiva igualmente na objetividade do mundo social, notadamente “através da criação dessas realidades absolutamente extraordinárias (não o vemos porque estamos habituados a isso) que são as disciplinas”(ibid, p.73).

A institucionalização progressiva das disciplinas no âmbito da universidade, destaca o autor, é produto de lutas independentes visando impor a existência de novas entidades e suas fronteiras destinadas a demarcar os seus limites e proteger-lhes. Fazendo referência a

10 Utilizamos uma edição portuguesa desta obra de Bourdieu, portanto mantivemos a grafia original das

Gingras (1991)11, ele diz que esse autor distinguia, na formação de um campo científico, em primeiro lugar, a emergência de uma prática de pesquisa, isto é, indivíduos (agentes) cuja prática repousa muito mais sobre a pesquisa que o ensino, e a institucionalização da pesquisa, na universidade, através da criação de condições favoráveis à produção do saber e à reprodução do grupo. Em segundo lugar, a constituição de um grupo reconhecido como socialmente distinto e portador de uma identidade social seja disciplinar, por meio de associações científicas, seja profissional, por meio de uma corporação.

Bourdieu ressalta o cuidado em não confundir um processo social tão complexo, com os processos, bem mais simples, de constituição de uma profissão. Tomando o exemplo dado por Gingras sobre a formação do campo da Física no Canadá, Bourdieu explica:

[...] de facto, lidamos com duas práticas da física, uma confinada à universidade, a outra aberta aos meios industriais, em que os físicos estão em competição com os engenheiros; de um lado, a construção de uma disciplina científica, com as suas associações, reuniões, revistas, medalhas e representantes oficiais, e, do outro, a delimitação de uma ‘profissão’ que monopoliza o acesso aos títulos e aos cargos correspondentes. Esquecemos muitas vezes a dualidade do mundo científico, com, de um lado, os investigadores, ligados à universidade, e, do outro, o corpo dos engenheiros que se dota das suas próprias instituições, caixas de aposentação, associações, etc.(2004c, p.73-74)

No caso da Geografia brasileira, constatamos o importante papel desempenhado pela AGB no processo de construção da autonomia do campo em formação. Por meio dela, desenvolvem-se as primeiras estratégias visando à construção de vínculos formais, à conformação de práticas de pesquisa restritas, à criação de legislação específica, para assegurar existência jurídica, ao estabelecimento de uma hierarquia própria, ao definir quem podia ou não a ela associar-se.

11 Esta é uma referência usada por Bourdieu no livro citado (p.73). Trata-se de Yves GINGRAS. Physies and

Os pioneiros da criação do campo da Geografia no Brasil estariam, assim, tendo de se inspirar e obedecer às regras de funcionamento das práticas científicas, naquela época influenciadas pelo mundo francês, conforme já ressaltamos.

A gênese dessa estruturação aponta também para a influência do capital econômico e outras formas de capitais dos pioneiros sobre outros profissionais interessados em aí integrar-se. O pagamento de mensalidades, conforme Seabra (2004), limitou a participação na AGB de profissionais com situação econômica modesta. Da mesma forma, a não detenção de capital simbólico sob a forma de publicações limitou outro número de pretendentes. Isto remete a aspectos ligados ao processo de autonomização do campo, dentre eles o que Bourdieu chamou de droit d’entrée (direito de entrada) explicito ou implícito.

O requisito de admissão é a competência, o capital científico incorporado [...], que se tornou o sentido do jogo, mas é também a apetência, a libido scientifica a illusio, crença não só naquilo que está em jogo, mas também no próprio jogo, ou seja, no facto de o jogo valer a pena ser jogado (BOURDIEU, 2004c, p.74).

O campo geográfico no Brasil, assim como qualquer outro campo, se constitui à medida em que se constituem, igualmente, os enjeux e interesses específicos que são irredutíveis aos interesses de outros campos. Esses interesses, por sua vez, não são percebidos por quem não esteja preparado para entrar no campo, o qual depende, por conseguinte, da existência de pessoas dispostas a jogar o jogo, dotadas do habitus que permite conhecer e reconhecer as leis imanentes do jogo, dos enjeux (ibid, p.74).

Façamos um rápido desvio para chamar a atenção do leitor não familiarizado com o termo enjeux bastante usado na sociologia francesa. Servimo-nos das observações feitas por Domingos Sobrinho (2002, p.51), para quem o sociólogo Phillipe Bernoux, no seu livro La

Sociologie des Organizations, faz uma explicitação muito clara desse sentido. O termo enjeux faz referência ao valor que cada indivíduo ou agente, na linguagem de Bourdieu,

atribui à uma ação, ao que se pode ganhar ou perder além dos objetivos da ação. “Ganhar a estima dos outros ao conseguir realizar uma ação difícil é um enjeux. Num conflito, há

sempre des enjeux mais ou menos escondidos (de poder) por trás dos objetivos declarados” (BERNOUX, 1985, apud DOMINGOS SOBRINHO, op cit).

Voltando aos aspectos da formação do campo geográfico no Brasil. Ao estabelecer certas regras para a consolidação da Geografia, os pioneiros estavam também se colocando em acordo sobre quais seriam os interesses fundamentais a defender, quais os enjeux que os esquemas do habitus do geógrafo deveriam “conhecer e reconhecer” nas práticas e jogos cotidianos. Esse processo teve como conseqüência a construção de uma cumplicidade objetiva que permanece subjacente a todos os conflitos e antagonismos existentes, pois as lutas dentro de um campo pressupõem, destaca Domingos Sobrinho (ibid), um acordo entre os antagonistas a propósito do que merece ser objeto de disputa, embora isso seja esquecido nas evidências do processo. Dessa forma, o jogo, os enjeux e todos os pressupostos são aceitos tacitamente, a partir do momento em que se entra no jogo.

Para concluir esta seção, esclareçamos que uma reconstituição da formação do campo geográfico brasileiro demandaria bem mais esforços teóricos e empíricos do que aqui foram investidos. Contudo, essa breve esquematização fez-se necessária para melhor contextualizar o nosso objeto de estudo no âmbito da praxiologia bourdieusiana e, mais ainda, na articulação dessa com a teoria das representações sociais.