• Nenhum resultado encontrado

A Terapia Religiosa: o Cristianismo

2. O DIAGNÓSTICO

2.2. A Psicologia da Doença

2.2.2. O Ascetismo como Terapia

2.2.2.2. A Terapia Religiosa: o Cristianismo

Apesar de no interior das terapias helenistas e, em geral, em toda a filosofia moral a partir de Sócrates se encontrar já uma tendência clara para o ascetismo, é, evidentemente, com o cristianismo que o ideal ascético definitivamente triunfa. Que este se encontre, porém, já presente de uma forma embrionária em formas de terapia anteriores à do cristianismo demonstra, desde logo, que o cristianismo não nasceu e, acima de tudo, não triunfou acidentalmente, por acaso, mas antes porque veio responder a uma necessidade premente antiga, já estabelecida, até então sem uma resolução definitiva. O estado de decadência que lhe deu origem e lhe permitiu a vitória é, de resto, identificado por Nietzsche como correspondendo ao mesmo solo

398 Cf. GD, Sokrates, 9, 11-12. 399

Cf. NL 4[318], KSA 9.179: “Ich werde von der größten Krankheit der Menschen sprechen und will zeigen, daß sie aus der Bekämpfung anderer Krankheiten entstanden ist: daß das anscheinende Heilmittel auf die Dauer Schlimmeres erzeugt hat, als das ist, was durch dasselbe beseitigt werden sollte.” Cf. também GM, I, 6; GM, III, 15- 17, 20-21.

185 que viu, tanto a filosofia de Sócrates, como as terapias estóica e epicurista nascer. Nas suas palavras,

Nunca é demais reflectir sobre o seguinte: o cristianismo é a religião da antiguidade envelhecida, a sua condição prévia são culturas antigas degeneradas; é sobre estas que conseguiu e consegue actuar como um bálsamo. Em épocas em que os olhos e os ouvidos estão “cheios de lama”, de tal forma que já não conseguem ouvir a voz da razão e da filosofia, nem ver a sabedoria em forma corpórea, carregue ela o nome de Epicteto ou de Epicuro: nestas épocas, talvez o martírio erigido na cruz e o “trombone do Juízo Final” possa ainda motivar estes povos para uma vida decente.400

Tal como para qualquer uma das terapias filosóficas tentadas a partir de Sócrates, o ponto de partida do cristianismo é, também ele, a luta contra o sofrimento e a procura de um sentido para a vida, ou, melhor, de um sentido para o sofrimento. “O seu reino”, escreve Nietzsche, “é o do domínio sobre os que sofrem”401, o que significa que o cristianismo nunca teria triunfado se não houvesse, desde logo, sofredores, e sofredores que não suportam o seu sofrimento e gostariam de o ver eliminado, ou, pelo menos, justificado. Relembre-se que, no que toca ao sofrimento humano, há sempre estas duas dimensões fundamentais a que qualquer terapia procura dar resposta: por um lado, a quantidade de sofrimento, que se procura eliminar ou, pelo menos, reduzir significativamente; por outro lado, de forma mais profunda, a falta de um sentido (isto é, de um propósito ou finalidade) para o sofrimento, que se pretende colmatar. Parece ter sido essencialmente neste segundo aspecto, quer dizer, na justificação do sofrimento e, assim, na atribuição de um sentido para a totalidade da vida, que qualquer terapia anterior ao cristianismo falhou ou não foi suficiente, dando lugar à necessidade de uma terapia mais radical, ou seja, a terapia religiosa, em particular, o cristianismo. Com efeito, aquilo que parece distinguir uma terapia religiosa de todas as outras, não religiosas, é o facto de nela se incluir uma determinada mundividência ou interpretação do mundo e da vida, em que tanto o todo como cada uma das suas partes adquirem um sentido profundo e peculiar.402 No

400 MA II, VM, 224.

401

Cf. GM, III, 15.

402

Cf. por exemplo FW, 353: “Die eigentliche Erfindung der Religionsstifter ist einmal: eine bestimmte Art Leben und Alltag der Sitte anzusetzen, welche als disciplina voluntatis wirkt und zugleich die Langeweile wegschafft; sodann: gerade diesem Leben eine Interpretation zu geben, vermöge deren es

186 caso do cristianismo, porém, esta atribuição de sentido é feita de uma forma altamente perversa e, segundo Nietzsche, profundamente nociva, quer para o indivíduo que se torne cristão, quer para uma cultura que se cristianize massivamente, como é, evidentemente, o caso da cultura ocidental.

Nietzsche não se cansa, com efeito, de repetir como o cristianismo é uma religião de fracos, de doentes, de impotentes, de decadentes, sendo a função dos padres, ou da Igreja em geral, precisamente a liderança, a defesa e o “tratamento” deste grupo, deste “imenso rebanho de fracassados, de descontentes, de desgraçados, de azarados e de toda a espécie de sofredores-em-si”403, que, justamente, precisam da Igreja para se manterem em vida, para suportarem a existência, para se conseguirem mesmo aguentar a si próprios. Evidentemente, nenhum fraco gosta de ser fraco, nenhum doente quer ser doente, não há frustrado que não aspire ao sucesso e não há impotente que não deseje, justamente, ter mais poder – é por isso que o pastor cristão e, com ele, todo o seu rebanho, são, por excelência, “a incarnação do desejo de ser-de- outro-modo, de estar-noutro-lado”404. Por outro lado, porém, este ser-deste-modo e não do outro, a que se aspira, parece gerar, por parte dos doentes, dos fracos, dos impotentes, dos oprimidos, uma profunda indignação, um ódio venenoso, um intenso desejo de vingança contra os fortes, os poderosos, os saudáveis, isto é, contra tudo aquilo que se desejaria ser mas não se é e não se consegue nem nunca se conseguirá vir a ser405 – daí a tese nietzschiana, segundo a qual os homens mais fortes, saudáveis e bem-sucedidos são os que mais precisam de ajuda e protecção: contra eles têm, precisamente, o peso da grande maioria, o poder do ódio e do desejo de vingança de

vom höchsten Werthe umleuchtet scheint, so dass es nunmehr zu einem Gute wird, für das man kämpft und, unter Umständen, sein Leben lässt. In Wahrheit ist von diesen zwei Erfindungen die zweite die wesentlichere: die erste, die Lebensart, war gewöhnlich schon da, aber neben andren Lebensarten und ohne Bewusstsein davon, was für ein Werth ihr innewohne.”

403 Cf. GM, III, 13.

404 Idem. Cf. também GM, III, 14. 405

Cf. por exemplo GM, I, 7; GM, III, 14: “Auf solchem Boden der Selbstverachtung, einem eigentlichen Sumpfboden, wächst jedes Unkraut, jedes Giftgewächs, und alles so klein, so versteckt, so unehrlich, so süsslich. Hier wimmeln die Würmer der Rach- und Nachgefühle; hier stinkt die Luft nach Heimlichkeiten und Uneingeständlichkeiten; hier spinnt sich beständig das Netz der bösartigsten Verschwörung, — der Verschwörung der Leidenden gegen die Wohlgerathenen und Siegreichen, hier wird der Aspekt des Siegreichen gehasst.”

187 todo o rebanho de pobres, fracos, doentes e oprimidos.406 Como gere, porém, o sacerdote ascético todos estes sentimentos contraditórios dos seus fiéis? Como alivia a sua dor? Como utiliza este ódio e desejo de vingança? Como convence ele o rebanho a permanecer em vida, a agarrar-se a ela? Que tipo de instrumentos utiliza para, precisamente, tratar os seus doentes?

A terapia sacerdotal parece envolver, pelo menos, dois momentos fundamentais, ambos relacionados com uma figura psicológica absolutamente central na análise nietzschiana do cristianismo, nomeadamente, o ressentimento.407 O primeiro prende-se com o fenómeno a que Nietzsche chama “revolta dos escravos” e que desenvolve com particular detalhe no primeiro ensaio da Genealogia da Moral. Trata-se, fundamentalmente, de um mecanismo psicológico básico de defesa e conservação e que consiste, muito simplesmente, numa inversão de olhar ou de perspectiva, ou numa reinterpretação de um determinado estado de coisas, através do qual aquilo que se valoriza (e que se deseja, a que se aspira, mas que não se consegue alcançar ou obter) é desvalorizado, criticado, caluniado, ao passo que aquilo que se é ou se tem (apesar de ser algo que, no fundo, se despreza e se preferiria não ser ou ter), passa a ser louvado e elevado ao máximo no seu valor. Esta inversão de avaliações é, no fundo, a única coisa que os fracos e impotentes (os “escravos”) podem fazer contra os fortes e poderosos (“os senhores”), na medida em que, precisamente pela sua fraqueza e impotência, uma verdadeira reacção lhes está vedada.408

Na base do ressentimento está, pois, por um lado uma longa opressão, um prolongado sentimento de fraqueza, de impotência, de inferioridade relativamente a alguém ou a um determinado estado de coisas, acompanhado de um desejo de

406 Cf. por exemplo GM, III, 14: “Die Kranken sind die grösste Gefahr für die Gesunden; nicht von den

Stärksten kommt das Unheil für die Starken, sondern von den Schwächsten. (...) Die Krankhaften sind des Menschen grosse Gefahr: nicht die Bösen, nicht die “Raubthiere”. Die von vornherein Verunglückten, Niedergeworfnen, Zerbrochnen — sie sind es, die Schwächsten sind es, welche am Meisten das Leben unter Menschen unterminiren, welche unser Vertrauen zum Leben, zum Menschen, zu uns am gefährlichsten vergiften und in Frage stellen.”

407 É interessante contrastar a análise nietzschiana do ressentimento com a de Max Scheler que, em Das

Ressentiment im Aufbau der Moralen, apesar de reconhecer o ressentimento como estando na origem

dos valores modernos, procura, porém, separar o cristianismo deste mesmo fenómeno, através de uma reinterpretação da originalidade do amor cristão.