• Nenhum resultado encontrado

As Terapias Filosóficas: o Estoicismo e o Epicurismo

2. O DIAGNÓSTICO

2.2. A Psicologia da Doença

2.2.2. O Ascetismo como Terapia

2.2.2.1. As Terapias Filosóficas: o Estoicismo e o Epicurismo

natureza, na medida em que esta parte, precisamente, da convicção de que uma cura é possível, de que a felicidade é alcançável, de que o sofrimento existencial, não sendo totalmente eliminável, é passível de uma significativa redução, bastando para tal uma tomada de consciência por parte do indivíduo da situação em que se encontra e, consequentemente, uma radical transformação interior, isto é, uma alteração do seu modo de vida, bem como das suas crenças, juízos e valores, daquilo que valoriza e daquilo que despreza, das suas metas e objectivos, da finalidade a que se propõe na sua existência.330

Um primeiro passo de qualquer tentativa de terapia existencial será, pois, a chamada de atenção para este facto e, muito em particular, uma responsabilização do indivíduo relativamente à sua infelicidade e às causas do seu próprio sofrimento, movimento que se tornaria, como se sabe, particularmente notório no cristianismo.331 O cristianismo foi também, sem qualquer dúvida, a maior terapia da existência humana alguma vez tentada na história da cultura ocidental. Mas ainda que não competindo em poder e abrangência com nenhuma outra, não foi certamente a única, e nem mesmo a primeira. A este respeito, as filosofias grega e latina antigas oferecem- nos um solo extremamente fértil e esclarecedor, que vale a pena explorar, ainda que com alguma brevidade, antes de nos concentrarmos na versão propriamente religiosa da terapia. Ressalvando as devidas diferenças, verificaremos que todas elas nascem e se desenvolvem a partir de um mesmo solo e com um mesmo pano de fundo: o reconhecimento do sofrimento existencial como algo de negativo e a eliminar; a tentativa de conferir um sentido ou finalidade à totalidade da existência humana; a prescrição de terapias que, não obstante as suas particularidades e singularidades, podem ser agrupadas e unificadas sob a designação nietzschiana de “ideal ascético”.

2.2.2.1. As Terapias Filosóficas: o Estoicismo e o Epicurismo

330

É precisamente este optimismo, esta crença na possibilidade de uma cura, do alcance da “felicidade” através de uma reorientação existencial ou modificação interior que afasta radicalmente Schopenhauer de qualquer tentativa terapêutica, uma vez que, para Schopenhauer, a felicidade, tal como tradicionalmente concebida, não é, de todo, alcançável. Como veremos, também Nietzsche será, por outros motivos, crítico feroz da noção de “felicidade”.

168 Ainda que já em Sócrates seja possível identificar uma certa tendência para a associação da filosofia à medicina ou, pelo menos, a uma determinada prática terapêutica, não há dúvida de que é no período helenista, em particular com as escolas epicurista e estóica, que a filosofia claramente se assume, pela primeira vez, como uma terapia para a existência humana. Abstraindo das particularidades específicas de cada escola e das diferenças significativas entre elas, aquilo que caracteriza e unifica todas as escolas deste período é, essencialmente, uma dupla convicção: em primeiro lugar, que não há problema mais importante e urgente a resolver do que o problema da existência humana ou, mais concretamente, o problema do sofrimento humano; e, em segundo lugar, que nenhum outro campo de saber se encontra tão capacitado para o resolver como a filosofia. Em conformidade, estas escolas consideraram que a reflexão sobre esta questão e a procura de uma solução deveriam ser, não só uma prioridade, mas o objecto mesmo de toda a actividade filosófica. No centro da sua reflexão estarão, pois, as múltiplas formas de sofrimento humano, orientando-se a sua prática, fundamentalmente, para a tentativa de eliminação ou redução do mesmo. Segundo Epicuro, por exemplo, deverá ser este e nenhum outro o objecto e objectivo próprios de toda a filosofia digna desse nome. Conforme expresso num dos seus fragmentos mais famosos,

Vã é a palavra do filósofo pela qual nenhum sofrimento humano seja curado. Pois tal como não há qualquer proveito na medicina se ela não expulsar as doenças do corpo, também não haverá qualquer proveito na filosofia se esta não expulsar o sofrimento da alma.332

As diferentes terapias e, neste caso, estóicos e epicuristas, divergirão na determinação específica das causas do sofrimento humano e, consequentemente, também nas formas de o tornar diminuto, mas ambos farão apelo à natureza para a determinação da sua norma de saúde. Implicada está a ideia de que a natureza estabeleceu à partida a regra daquilo que nos é próprio e deverá constituir a plenitude da nossa vida, pelo que a infelicidade e o sofrimento se justificam por um desvio desta regra, fundamentalmente devido à influência nefasta da sociedade, cujos valores o indivíduo tende a apropriar acrítica e passivamente, levando-o a valorizar os bens

332 Fr, 54. Cf. também Disc, III, XXIII.

169 errados, a perseguir coisas erradas, a ter prioridades erradas na sua vida, que não o poderão satisfazer e, longe de o aproximarem da felicidade, apenas aumentarão o seu sofrimento e agravarão o seu estado de doença.333 Riqueza, honra, poder, prazeres luxuriosos e, no caso dos estóicos, a saúde e a própria vida, não têm o valor que o indivíduo julga terem, e não são os locais correctos para depositar a sua felicidade. Pelo contrário, a sua perseguição torna o indivíduo inquieto, ansioso, atormentado, perturbado por um desejo vazio e sem limites, como dirão os epicuristas, e sujeito às mais diversas paixões ou “doenças da alma”, como dirão os estóicos, também elas causadas pelos falsos juízos que o sujeito mantém relativamente àquilo que tem valor. Fortes representantes da distinção clássica entre cultura e natureza, estas terapias serão, pois, críticas acérrimas da cultura e dos seus valores, defendendo como ideal um regresso à natureza, sob o lema, particularmente promovido pelos estóicos, mas também presente em Epicuro, de “viver de acordo com a natureza”334.

A compreensão da “regra da natureza” no humano e, portanto, da sua saúde ou felicidade, corresponde, na esteira de Aristóteles, à determinação do “bem supremo” ou “fim último” da existência humana, isto é, aquele fim que, subsumindo e unificando todos os restantes, seja capaz de conferir um propósito à vida e torná-la, em si mesma, boa, completa e desejável, ou, numa palavra, feliz. Acredita-se, com efeito, que tal como para todos os entes da natureza, existe uma finalidade para a qual tendemos naturalmente e que constitui a nossa plenitude, equivalendo, portanto, à felicidade.335 O primeiro passo de qualquer uma destas terapias será, pois, a determinação deste fim, cujo alcance deverá permitir, independentemente de quaisquer circunstâncias exteriores, não só alcançar a felicidade, como conferir um sentido à vida no seu todo.

333 Cf. por exemplo CL, 118, 7: “Toda a gente é infelizmente confundida pela ignorância da verdade.

Enganada pela opinião vulgar, procurando como se fossem bens certas coisas que, depois de muito penar para as conseguir, verifica serem nocivas, inúteis ou inferiores ao que esperava. A maior parte das pessoas sente admiração por coisas que só ao fim de algum tempo se revelam ilusórias; e assim é que o vulgo toma por bom o que apenas parece grande.”

334 Cf. por exemplo Fin, III, 31: “(…) the Chief Good consists in applying to the conduct of life a

knowledge of the working of natural causes, choosing what is in accordance with nature and rejecting what is contrary to it; in other words, the Chief Good is to live in agreement and in harmony with nature.” Cf. também DL, VII, 87-88. Cf. ainda a crítica nietzschiana a este princípio em JGB, 9.

170 Divergindo na sua interpretação da natureza e na determinação daquilo que é próprio do homem, estóicos e epicuristas divergirão também no fim que estabelecem para a vida humana. Com efeito, se para Epicuro o homem partilha com os animais aquilo que naturalmente lhe é próprio e, portanto, deverá reconhecer como critério máximo de bem e de mal o prazer e a dor (indicações claras da natureza quanto ao estado próprio ou impróprio do indivíduo, respectivamente)336, para os estóicos o homem aparta-se radicalmente dos animais pelo facto de possuir uma razão e uma capacidade de discernimento, pelo que a finalidade da sua existência não poderá ser uma mera procura de prazer e fuga da dor, mas um contínuo trabalho de aperfeiçoamento da sua racionalidade, cuja expressão ética máxima é a virtude.337 Curiosamente, porém, e à parte da diferença fundamental entre as duas terapias quanto à definição do humano e da finalidade da sua existência, ambas se aproximam significativamente quando se trata de definir esse estado final que se almeja e que, em geral, se designa por felicidade: para ambas as escolas, a felicidade identifica-se com um estado de absoluta paz ou tranquilidade, quer sob a forma de ataraxia (ausência de tarachai, perturbações), para os epicuristas, quer sob a forma de apatheia (ausência de pathe, paixões), no caso dos estóicos. Ainda que com diferentes motivações, em ambos os casos se trata, pois, de secar as fontes de perturbação e sofrimento a todos os níveis, seja este físico, mental, psicológico ou emocional.

Esta finalidade é particularmente clara e evidente nos epicuristas que, sem qualquer tipo de rodeios, afirmam muito claramente que, sendo o prazer (entendido como ausência de dor338) o bem supremo, a dor é o supremo mal339, devendo portanto toda a vida ser orientada no sentido de evitar o sofrimento e manter o estado de total ausência de dor, grande parte da qual é entendida como desnecessária e causada por uma conduta errónea por parte do indivíduo. Sofrimentos físicos são, na verdade,

336

Cf. por exemplo Fin, I, 29-30; Men, 128-129.

337 Cf. por exemplo DL, VII, 86; CL, 76, 10-11.

338 Cf. Fin, I, 37; Fr. 61. Epicuro não renega a concepção clássica do prazer enquanto sensação positiva

derivada do preenchimento de uma falha e, portanto, da remoção de uma dor, mas defende que aquilo que normalmente se considera um estado neutro, em que não há nem dor nem prazer, não é de forma nenhuma um estado neutro, mas um estado de prazer, que, distinguindo-se do primeiro, é, na verdade, o maior prazer que se pode ter, na medida em que corresponde ao estado naturalmente próprio ou adequado. Cf. Fin, I, 38; DP, III; Men, 128-129.

171 desprezados por esta escola, de acordo com o princípio consolador segundo o qual uma dor forte não dura muito tempo e uma dor prolongada é necessariamente ligeira, pelo que fácil de suportar.340 O maior problema não advém, pois, do corpo, mas da mente ou espírito, cujos prazeres e sofrimentos são, segundo Epicuro, muito superiores aos do corpo.341 As maiores perturbações da alma ou do espírito advêm, por sua vez, ou de um desejo desmedido ou de um medo irracional, ambos devidos a falsos juízos sobre aquilo que realmente tem valor, pelo que será essencialmente no controlo do desejo e do medo que se concentrarão os principais ensinamentos desta escola.

Mantendo-se coerente relativamente à finalidade que determinou para a vida humana – que, na verdade, não é outra senão a sobrevivência, ou, mais concretamente, a manutenção da vida no seu estado natural e livre de perturbações de qualquer espécie –, Epicuro defenderá que a maior parte dos desejos humanos são vazios e vãos, na medida em que, indo muito para além daquilo que é requerido para um estado de plenitude (ou seja, de ausência de dor), são insaciáveis e, para além de não contribuírem para a felicidade do indivíduo, antes a destroem, na medida em que o tornam ansioso na sua perseguição, angustiado e frustrado perante a possibilidade da sua perda.342 Uma vez mais, Epicuro utiliza como critério a natureza para mostrar como, na verdade, aquilo de que o indivíduo realmente precisa para alcançar o seu fim, a sua completude, a sua saúde, a sua felicidade (que não é mais do que comida para matar a fome, água para matar a sede, e agasalho para cortar o frio), é fácil de encontrar na natureza, sendo tudo o resto absolutamente desnecessário e, portanto, não desejável.343 Epicuro aconselhará, pois, uma vida intencionalmente simples, frugal, humilde, modesta, guiada pela temperança e pela moderação, não porque estas sejam

340

Cf. DP, IV: “Pain does not last continuously in the flesh, but the acutest pain is there for a very short time (...).” Cf. também Men, 133; Fr. 64, 65.

341 Cf. DL, X, 137; SV, LV. 342

Cf. por exemplo SV, LXXXI: “The disturbance of the soul cannot be ended nor true joy created either by the possession of the greatest wealth or by honour and respect in the eyes of the mob or by anything else that is associated with causes of unlimited desire.” Cf. também SV, LIX; Rer Nat, II, [1-46].

343

Cf. DP, XXI: “He who has learned the limits of life knows that that which removes the pain due to want and makes the whole of life complete is easy to obtain”. Cf. também Men, 127-128, 130-131; DP, XXI; SV, XXXIII; Fr. 67; Rer Nat, II, [1-46].

172 em si mesmas virtudes a cultivar por si mesmas, mas para que o indivíduo se habitue a não precisar de tanto e a não desejar mais do que aquilo que realmente precisa.344

Quanto ao medo da morte (“o mais temível de todos os males”345, principal medo que Epicuro se esforça por combater), Epicuro procura eliminá-lo, mostrando como, de acordo com o princípio fundamental da escola, ele na verdade é absurdo: se o único verdadeiro mal é a dor ou o sofrimento, a morte não nos pode afectar, na medida em que a morte significa, precisamente, a perda de toda a sensibilidade e consciência e, portanto, de qualquer capacidade de sentir dor.346 A morte é, efectivamente, algo que o indivíduo não pode experimentar, uma vez que o indivíduo e a morte nunca se encontram e muito menos se identificam (quando o primeiro é, a última ainda não é e quando a última chegar, o primeiro já não é), pelo que, em sentido estrito, a morte é algo que nunca me poderá afectar, algo que eu nunca poderei sofrer.347 E uma vez que é irracional temer alguma coisa que, na verdade, nunca nos poderá acontecer ou afectar, o medo da morte é considerado infundado, irracional, e facilmente eliminável a partir do momento em que se abandonem superstições e opiniões já feitas e se compreenda a verdadeira natureza do fenómeno em causa. Por outro lado, o apego excessivo à vida ou um (ainda que apenas implícito) desejo de imortalidade é algo que a escola considera criticável, uma vez que a morte faz parte da natureza da própria vida, natureza esta que se procura aceitar e seguir na sua totalidade. Neste sentido, no contexto da terapia epicurista a morte não deverá destruir o sentido da vida nem impedir o alcance da sua finalidade ou completude, uma vez que esta não depende de um período maior ou menor de vida348: o que importa é “viver bem”349, e viver bem é viver de acordo com a natureza, isto é, apreciar o prazer de estar vivo sem qualquer tipo de perturbação física ou espiritual,

344 Cf. Men, 130-131; DP, V, Fr, 28, 37.

345 Cf. Men, 125. Cf. também Rer Nat, III, [1-46]. 346

Cf. DP, II; Men, 124-125.

347 Cf. Men, 125: “So death, the most terrifying of ills, is nothing to us, since so long as we exist, death is

not with us; but when death comes, then we do not exist. It does not then concern either the living or the dead, since for the former it is not, and the latter are no more.”

348 Cf. DP, XIX; Men, 126. 349

Cf. SV, XLVII: “I have antecipated thee, Fortune, and entrenched myself against all thy secret attacks. And we will not give ourselves up as captives to thee or to any other circumstance; but when it is time for us to go, spitting contempt on life and on those who here vainly cling to it, we will leave life crying aloud in a glorious triumph song that we have lived well.”

173 salvaguardando o corpo da dor, mantendo o desejo dentro dos limites mínimos naturais e aceitando a morte como um acontecimento necessário e natural.

A importância conferida pelos estóicos ao sofrimento não é, à primeira vista, tão evidente, uma vez que, aparentemente, a finalidade que estabelecem para a existência humana é independente do sentimento de prazer ou desprazer do indivíduo, podendo mesmo implicar o seu sacrifício ou a entrega deliberada a um estado de sofrimento. Com efeito, a felicidade epicurista é, para os estóicos, uma espécie de felicidade animal, uma vez que não leva em conta a especificidade própria do homem relativamente a todos os animais e, como tal, falha na determinação da sua finalidade específica.350 Para os estóicos, aquilo que distingue o homem dos animais é a razão, cuja expressão ética máxima é a virtude, pelo que uma vida humana só atingirá a sua completude ou plenitude, ou seja, a felicidade, se for inteira e unicamente devotada ao desenvolvimento e aperfeiçoamento da razão e da virtude.351

Uma tal concepção implica, desde logo, uma radical desvalorização dos habituais objectos de desejo e afecto, uma vez que se entende que, para além de não contribuírem de forma alguma para a felicidade (a virtude é, segundo os estóicos, condição necessária e suficiente para a felicidade), o apego a eles pode mesmo prejudicar ou impedir o livre desenvolvimento e exercício da virtude – e aqui se incluem, não apenas o apego a bens materiais, o desejo de riqueza, de poder, de fama, de sucesso, de honra, de respeito, de beleza, etc., mas também qualquer tipo de laço familiar, fraterno ou amoroso, o desejo de saúde e de prazer, ou mesmo o apego à própria vida. Quando se compreende o valor distinto e incomparável da virtude, todos esses “bens” devem, segundo os estóicos, perder completamente o seu valor e, ainda que preferíveis aos seus contrários, passar a ser tratados com a maior indiferença e o mais profundo desinteresse.352 O ideal de vida estóico é, pois, o de uma vida de total

350 Cf. Fin, II, 109-111.

351 Cf. CL, 76, 10-11: “Qual é a qualidade exclusiva do homem? A razão: quando a razão é plena e

consumada proporciona ao homem a plenitude. Por conseguinte, uma vez que cada coisa quando leva à perfeição a sua qualidade específica se torna admirável e atinge a sua finalidade natural, e uma vez que a qualidade específica do homem é a razão, o homem torna-se admirável e atinge a sua finalidade natural quando leva a razão à perfeição máxima. À razão perfeita chamamos a virtude, a qual é também o bem moral.” Cf. também DL, VII, 86.

174 desapego ao exterior, ao mundo, à vida e até mesmo a si próprio, uma vez que o bem universal é incomparavelmente superior ao bem individual e a virtude lhe exige que aceite e se conforme ao seu destino natural e necessário.353

Apesar da capa de uma extrema valorização da dimensão moral do homem, não devemos porém esquecer que, tal como no caso dos epicuristas, o propósito da filosofia estóica é, também, o alcance de uma vida feliz, pelo que, na verdade, o que através de uma tal atitude se consegue é que a felicidade passe a não estar dependente de qualquer circunstância exterior (vulnerável à sorte ou ao destino, sem que o indivíduo possa ter sobre ela qualquer controlo), mas única e exclusivamente do indivíduo, do seu interior, da sua vontade, da sua virtude, independentemente das circunstâncias mais ou menos favoráveis em que este se encontre. Ora, o apego a coisas exteriores é, normalmente, a maior fonte de sofrimento na vida de um indivíduo, pelo que ao se desaconselhar o apego ou afecto a qualquer bem exterior que o indivíduo não controle, é essencialmente este sofrimento que se pretende, não apenas reduzir, mas eliminar por completo.354

É, de resto, este o sentido do seu ideal da apatheia ou ausência de paixões: a ideia de felicidade para os estóicos identifica-se, precisamente, com um estado constante e inalterável de absoluta paz, tranquilidade e estabilidade emocional, do qual toda e qualquer agitação, perturbação ou sofrimento desta ordem deverão estar completamente ausentes. Pelo grau de afastamento que implicam do ideal estóico de saúde, as paixões são mesmo consideradas doenças da alma, equiparáveis a febres ou outras maleitas do corpo, pelo que se exige não uma mera moderação ou redução, mas a sua completa extirpação.355 E porque, de acordo com os estóicos, as paixões não são meras irrupções emocionais espontâneas, mas têm antes uma dimensão cognitiva fortíssima, intimamente relacionada com os juízos de valor que mantemos acerca das coisas e, mais concretamente, com a atribuição de um valor excessivo aos objectos

353

Cf. por exemplo P, V, 8; P, X, 6; Disc, II, VI; CL, 15, 77.

354 Cf. Disc, I, IV: “For if he tries to avoid anything beyond his will, he knows that, for all his avoidance, he