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1. NIETZSCHE E A TERAPIA DA CULTURA

1.1. O Filósofo como Médico da Cultura

1.1.2. Os Novos Filósofos

Renegando desde sempre não só a verdade como fio condutor da filosofia, como também a imagem do filósofo como um ser isolado e atemporal, imerso na profundidade e abstracção dos seus pensamentos, nada tendo a ver com a sua época ou a sociedade em seu redor, “já para não falar dos ‘ruminantes’ académicos e outros professores de filosofia”46, Nietzsche caracteriza o filósofo ideal, desde os seus primeiros escritos, como aquele que tem a capacidade de um poder activo, educativo, legislativo, transformador, reformador, não apenas no âmbito da cultura do seu tempo, mas, principalmente, tendo em vista um cultivo ou uma abertura para um outro futuro, que se espera superior, mais elevado, mais saudável que o presente.

Assim, já em Schopenhauer como Educador, o filósofo é descrito como devendo ser, seguindo o exemplo de Schopenhauer, essencialmente um educador e um libertador47, um modelo que nos possa “educar a todos contra o nosso tempo” e cuja imagem “inspirará os mortais para uma transfiguração das suas próprias vidas”48. De acordo com esta Consideração Intempestiva, estes educadores deverão servir, essencialmente, como instrumentos de cultivo e de transição, como agentes de mudança, como elementos catalisadores de uma redenção da cultura ou, noutros termos, de uma passagem de um estado de decadência a um novo renascimento cultural, papel que permanecerá constante, aliás, na concepção nietzschiana do filósofo. É neste sentido que os novos filósofos ou educadores são, desde logo e em particular neste texto, considerados “grandes homens redentores (grossen erlösenden

46 EH, UB, 3. Nietzsche é particularmente crítico da “filosofia” praticada como profissão e ao serviço do

Estado, como o que acontece no interior de universidades ou academias. Cf. em particular UB III, 8.

47 CF. UB III, 1. Cf. também UB III, 2. 48

Cf. UB III, 4. Cf. também NL 29[204], KSA 7.711; NL 34[247], KSA 11.543: “‒ die verschiedenen philosophischen Systeme sind als Erziehungsmethoden des Geistes zu betrachten: sie haben immer eine besondere Kraft des Geistes am besten ausgebildet; mit ihrer einseitigen Forderung, die Dinge gerade so und nicht anders zu sehen.”; NL 37[7], KSA 11.580.

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Menschen)”49 e equiparados a “médicos para a humanidade moderna” que possam, firmemente, conduzi-la para um outro caminho:

Nunca se precisou tanto de educadores morais e nunca foi tão improvável encontrá-los; nas alturas em que os médicos são mais necessários, em alturas de grandes epidemias, estes estão também mais ameaçados. Pois onde estão os médicos da humanidade moderna, que se aguentem de forma tão firme e saudável nos seus pés que ainda possam suportar um outro e guiá-lo pela mão?50

A pergunta ou interpelação mantém-se, com uma intensidade crescente, na maior parte dos escritos de Nietzsche, bem como a associação cada vez mais clara e evidente do filósofo, por um lado, com o problema central da moral e, por outro, com o papel essencial de médico ou guia espiritual de uma humanidade considerada em decadência. Assim, em Humano Demasiado Humano Nietzsche interroga-se quanto ao futuro do médico, defendendo que nenhuma outra profissão admitiria hoje um maior crescimento e estaria “em melhores condições de se tornar um benfeitor da sociedade no seu todo”, do que precisamente a do “médico”, numa altura em que os antigos guias espirituais ou “cuidadores de almas” perderam a sua credibilidade e autoridade.51 Em Aurora pergunta, uma vez mais, “onde estão os novos médicos da alma”, que com uma verdadeira competência e levando a sério o sofrimento dos homens, possam encontrar antídotos e curar os homens dos efeitos secundários provocados pelos remédios com que até hoje se procurou curar as doenças da sua

alma.52 Numa outra passagem da mesma obra, Nietzsche lamenta a falta de médicos

que transformem “aquilo a que até hoje chamámos moral prática” num pedaço “da sua arte e ciência de curar”53 e no Crepúsculo dos Ídolos insiste ainda na necessidade de uma “moral para médicos”, dada a criação de “uma nova responsabilidade” para os mesmos, que se deverão encontrar ao serviço do “mais elevado interesse da vida, da vida em ascensão”54.

49 Cf. UB III, 6.

50

UB III, 2. Cf. também UB III, 6: “Wie es nun mit unserer Zeit in Hinsicht auf Gesund- und Kranksein steht, wer wäre Arzt genug, das zu wissen!”

51 Cf. MA I, 243. 52 Cf. M, 52. 53 CF. M, 202. 54 Cf. GD, Streifzüge, 36.

32 Em todas estas passagens – como, aliás, em muitas outras55 – a utilização da palavra “médico (Arzt)” é, evidentemente, metafórica: na maior parte das ocorrências do conceito, Nietzsche refere-se não aos médicos em sentido estrito ou literal, mas, precisamente, aos seus “médicos filosóficos” que, se por um lado deverão, num sentido lato, abordar a decadência da sua cultura de um ponto de vista “clínico” ou “terapêutico” e almejar a sua cura, por outro se relacionam directamente com os antigos “médicos da alma” (i.e., como veremos, os moralistas e, principalmente, os padres cristãos) enquanto novos guias espirituais da humanidade e legisladores ou estabelecedores de novas tábuas de valores.56

À medida que a sua preocupação com o problema da cultura e o “cultivo de uma nova humanidade” se vai intensificando e a concentração nas questões da saúde e da doença se torna predominante no seu pensamento, também a sua esperança no ressurgimento de novos filósofos e a atribuição de responsabilidade aos mesmos no que diz respeito à reabilitação ou redenção da cultura contemporânea se vai acentuando. Assim, em Para além do Bem e do Mal, onde de resto se encontra a mais ampla e detalhada exposição nietzschiana do seu ideal de filósofo por contraposição aos traços mais característicos de toda a filosofia precedente, os “novos filósofos” ou “filósofos do futuro” são apresentados como os homens da “mais ampla responsabilidade”, carregando sobre si “a consciência pela evolução global dos homens”57, responsabilidade esta que se encontra intimamente ligada com a tarefa que lhes será clara e explicitamente atribuída no âmbito da transmutação do sistema moral vigente.

Com efeito, e seguindo a descrição de Nietzsche nesta mesma obra, estes novos filósofos serão muito provavelmente ainda “amigos da verdade”, mas já não

55 Cf. por ex. MA I, 243; MA II, WS, 188; M, 40; M, 134: “Wer aber gar als Arzt in irgend einem Sinne der

Menschheit dienen will (…)”; FW, Vorrede, 2; FW, 113; JGB, Vorrede, 1; GD, Sokrates, 11-12; A, 7: “Nichts ist ungesunder, inmitten unser ungesunden Modernität, als das christliche Mitleid. Hier Arzt sein, hier unerbittlich sein, hier das Messen führen – das gehört zu uns, das ist unsre Art Menschenliebe, damit sind wir Philosophen (…)”; A, 47; NL 23[15], KSA 7.545: “Der Philosoph als Arzt der Cultur”; NL 29[213], KSA 7.714; NL 30[8], KSA 7.733; NL 4[5], KSA 8.40; NL 12[189], KSA 9.608: “Ja, wir wollen Aufwecker und Ärzte sein, doch so daß die Aufgeweckten nicht wieder einschlafen müssen und die Geheilten nich an der Heilung zu Grunde gehen”.

56

Cf. a entrada “Arzt” no Nietzsche-Wörterbuch.

33 serão dogmáticos: “deverá ofender o seu orgulho e também o seu gosto se a sua

verdade puder ser uma verdade para qualquer um”58. Também não serão cépticos, no

sentido tradicional do termo59, nem meros críticos60, apesar de todo o trabalho filosófico e científico anterior constituir uma ferramenta fundamental para a sua própria filosofia.61 Em fortíssima contradição relativamente aos antigos filósofos, os novos filósofos deverão ser essencialmente experimentadores (Versucher)62 e realizadores de experiências (Menschen der Experimente)63: sentem, nas palavras de Nietzsche, “o peso e o dever de centenas de tentativas e tentações (Versuchen und

Versuchungen) da vida”, “arriscam-se constantemente”64 e, na sua “paixão pelo conhecimento”, vão mais além com “experiências audaciosas e dolorosas”, servindo-se da experiência “num sentido novo, talvez mais amplo, talvez mais perigoso”65. Apesar de serem “espíritos livres, muito livres” e, como tal, “amigos inatos, fiéis, ciumentos da solidão”66, também serão sérios investigadores das massas e do homem comum67 e deverão utilizar todos os meios ao seu dispor para percorrer de uma ponta à outra, “com múltiplos olhos e consciências”, todo o “âmbito de valores e de sentimentos de valor humanos”68. Assim, uma vez mais em contraste com os antigos filósofos, estes filósofos do futuro não servirão nem propalarão as ancestrais tábuas de valores; pelo contrário, serão necessariamente a “má consciência do seu tempo” e lutarão contra os ideais há muito estabelecidos, no âmbito dos quais desde sempre se filosofou69. Dissecarão cruelmente as virtudes do seu tempo e exporão quanta hipocrisia, mentira, comodismo e laxismo se encontram escondidos por trás dos seguidores da moralidade presente. 58 Cf. JGB, 43. 59 Cf. JGB, 208, 210. 60 Cf. JGB, 210. 61 Cf. JGB, 210, 211. 62 Cf. JGB, 42. 63 Cf. JGB, 210. 64 Cf. JGB, 205. 65 Cf. JGB, 210. 66 Cf. JGB, 44. 67 Cf. JGB, 26. 68 Cf. JGB, 211. 69 Cf. JGB, 212.

34 Estas são, porém, “apenas pré-condições para a sua tarefa”70: acima de tudo e apesar da sua “paixão pelo conhecimento”, escreve Nietzsche, estes novos filósofos terão “mais que fazer do que simplesmente conhecer – nomeadamente, ser algo de novo, significar algo de novo, apresentar novos valores”71. Quer isto dizer que entre os novos filósofos a teoria se deverá encontrar totalmente subordinada à prática, ou, por outras palavras, que é um objectivo prático que confere à teoria todo o seu significado e valor. A grande tarefa destes novos filósofos, que lhes confere um papel tão predominante no pensamento de Nietzsche e os transforma em homens da maior responsabilidade consiste, pois, no desbravamento destemido e corajoso dos territórios inexplorados do conhecimento, não porque a aquisição de conhecimento seja em si mesma um valor, mas porque através dele se tornará possível a destruição do ideal do presente e, acima de tudo, a criação de novos valores, que permitam uma reabilitação da cultura presente e o cultivo de um novo tipo de homem.72

À primeira vista, poderia parecer que a figura do filósofo como médico desaparecera por completo, não deixando vestígios na altura em que Nietzsche mais pormenorizadamente descreve os seus filósofos do futuro. No entanto, é precisamente a relação do filósofo com o problema da moral – que já estando presente nas passagens anteriormente citadas, atinge o seu auge, precisamente, em

Para além do Bem e do Mal, com a ideia do filósofo como essencialmente escrutinador

da moral vigente e criador de novos valores, como comandante e legislador73 – que, aos olhos de Nietzsche, o relaciona mais directamente com o papel de médico e justifica a função terapêutica que deverá exercer na sua cultura, dado que, conforme

70 Cf. JGB, 211. 71 JGB, 253. Cf. também JGB, 211. 72 Cf. a este respeito W

OTLING (1995: 111, n. 1): “Le travail «théorique» est subordonné à un projet

pratique qui lui donne sons sens: la création d’une culture saine que le philosophe législateur doit substituer à la culture malade qui règne sur l’Europe sous l’influence du platonisme et plus encore de sa forme populaire, le christianisme”.

73 Cf. JBG, 211: “Die eigentlichen Philosophen aber sind Befehlende und Gesetzgeber”. Apesar de ser uma

imagem particularmente forte em Para além do Bem e do Mal, a ideia do filósofo como legislador (Gesetzgeber) já se encontra, na verdade, presente na obra de Nietzsche desde Schopenhauer como

Educador. Cf. UB III, 3: “Denn das ist die eigentümliche Arbeit aller grossen Denker gewesen,

Gesetzgeber für Maass, Münze und Gewicht der Dinge zu sein.”; MA I, 261; M, 496. Cf. também NL 23[1], KSA 7.537; NL 6[38], KSA 8.112; NL 18[50], KSA 10.579; NL 24[3], KSA 10.644; NL 26[407], KSA 11.258; NL 26[425], KSA 11.264; NL 35[45], KSA 11.531; NL 35[47], KSA 11.533; NL 38[13], KSA 11.611.

35 analisaremos em pormenor, é justamente o tipo de valores adoptados na sociedade ocidental que se encontra no cerne daquilo que Nietzsche diagnosticou como a sua doença, sendo portanto a acção criadora dos novos filósofos que se terá de encontrar no centro da sua possível cura ou reabilitação. Para além disso, é de facto bastante evidente a semelhança entre a nova prática filosófica de Nietzsche e a de um médico ou terapeuta, podendo todo o trabalho atribuído aos novos filósofos de escrutínio da moral vigente, de análise e comparação de diferentes sistemas morais, de denúncia dos efeitos nefastos da adopção de determinados valores e de criação de novos valores ser em grande medida equiparado à prática médica de análise de sintomas, recolha de amostras, observação em laboratório, diagnóstico de doenças e prescrição de remédios.74

Que a associação entre o filósofo e o médico se mantém presente com grande intensidade nesta fase do seu pensamento é, de resto, emblematicamente confirmado pelo Prólogo do mesmo ano à segunda edição da Gaia Ciência, onde Nietzsche expressa, precisamente, as suas esperanças no surgimento de um “médico filosófico no sentido excepcional do termo”:

Ainda espero que um médico filosófico no sentido excepcional do termo – aquele que tem de perseguir o problema da saúde conjunta de um povo, de um tempo, de uma raça, da humanidade – venha um dia a ter a coragem de levar a minha suspeita até ao limite e ouse afirmar: em toda a filosofia até hoje não se tratou de todo de “verdade” mas de algo diferente, digamos de saúde, de futuro, de crescimento, de poder, de vida...75

Depositando as suas maiores esperanças no surgimento destes novos filósofos, tudo leva a crer que Nietzsche tenha sido o primeiro “médico filosófico no sentido excepcional do termo” e que se tenha querido dar a si próprio como exemplo para gerações vindouras de filósofos, que pudessem continuar o seu trabalho e juntar-se a

74

Cf. WOTLING (2008b: 48).

36 ele na tarefa necessariamente incompleta e futura de cultivo ou reabilitação da sua cultura e de “elevação da espécie «homem»”76.