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1. NIETZSCHE E A TERAPIA DA CULTURA

1.2. A Cultura como Paciente

1.2.2. A Terapia da Cultura

Ao longo de toda a sua obra, Nietzsche nunca utiliza o termo “terapia (Therapie)”126, não sendo portanto a expressão “terapia da cultura” uma formulação nietzschiana. As expressões que Nietzsche prefere e que mais utiliza para caracterizar o seu projecto no interior da cultura ocidental são, de facto, como vimos, para além da “transvaloração de todos os valores”, as de “disciplina” e “criação” ou “cultivo” (Zucht/

Züchtung), ou também a de “elevação (Erhöhung)”, pelo que a caracterização do seu

projecto como terapia será sempre, necessariamente, uma interpretação. É, no entanto, uma interpretação que se encontra amplamente justificada e fundamentada nos próprios textos de Nietzsche e na natureza das suas reflexões sobre a cultura, de tal forma que, apesar de a palavra “terapia” não ser directa e explicitamente utilizada, ela nos parece estar claramente indiciada ou implicada no próprio núcleo de todo o projecto nietzschiano.127

Um dos primeiros factores que fortemente suportam esta interpretação é, naturalmente, a caracterização nietzschiana do filósofo como “médico da cultura” ou “médico filosófico”. Não querendo repetir aqui aquilo que já foi referido no capítulo anterior a este respeito, sublinhe-se apenas que um médico é, com efeito, um profissional com perfeito conhecimento do funcionamento de um organismo, capaz de

126

A palavra derivada “terapeutas” (Therapeuten) aparece também uma única vez, e nunca na obra publicada (cf. NL 4[164], KSA 9.142). Nietzsche utiliza, porém, palavras com um sentido semelhante ou equivalente ao de “terapia”, como “tratamento (Heil, Heilung)” ou “cura (Cur, Kur)”, designando um processo não apenas de ordem individual, mas também a um nível social ou cultural e referindo-se não só mas também ao seu próprio projecto cultural (cf. por ex. UB III, 1; UB IV, 8; MA I, 272: “Desshalb ist dann gleich wieder zum Heile einer fort und fort wachsenden Cultur eine neue Generation nöthig, (…)”; MA II, WS, 187; FW, 370; GM, I, 16; EH, klug, 1; NL 3[33], KSA 7.69: “Der Mensch soll vor der Wahrheit schaudern: eine Heilung des Menschen soll erzielt werden: (…)”; NL 35[12], KSA 7.812; NL 11[317], KSA 9.564; NL 11[386], KSA 13.144).

127

O próprio Nietzsche o indica quando, num fragmento já citado de 1872, define a sua tarefa como uma tentativa de compreensão dos “meios de protecção e cura (Schutz- und Heilmittel)” de uma determinada cultura (cf. NL 19[33], KSA 7.426).

52 reconhecer o seu estado ideal de funcionamento, de diagnosticar os seus eventuais desvios ou anomalias e de o reconduzir, sempre que possível, ao seu estado óptimo de saúde. A ele se recorre, precisamente, numa situação de doença, quando é necessário um tratamento, uma cura, uma terapia, tendo em vista a recuperação da saúde, pelo que a metáfora nietzschiana não faria qualquer sentido se aquilo que está em causa no seu projecto de reforma da cultura ocidental não fosse, precisamente, a necessidade de recondução da mesma de um estado de doença a um estado de saúde, ou seja, justamente, uma terapia.128

Que este é, por outro lado, o cerne da preocupação nietzschiana sobre a cultura, isto é, que no centro da sua preocupação pelo estado actual da cultura contemporânea e da consequente necessidade e urgência da sua reforma se encontra, de facto, o estado doente, niilista ou decadente a que, mais concretamente, o sistema de valores adoptado no interior da mesma a conduziu e condenou, muito em particular devido à influência do platonismo e especialmente do cristianismo, “a mais terrível doença que até hoje se abateu sobre o homem”129, “sem qualquer exagero o verdadeiro desastre na história da saúde do homem europeu”130, é uma evidência que encontra suporte em praticamente todos os seus textos.131 Por outras palavras, é porque a cultura contemporânea se encontra num estado de decadência e o sistema de cultivo inconsciente no seu interior levou à produção e ao desenvolvimento de um

128 É evidentemente também neste sentido que Nietzsche apela à necessidade de surgimento de novos

médicos. Cf. por ex. UB III, 2: ““Niemals brauchte man mehr sittliche Erzieher und niemals war es unwahrscheinlicher sie zu finden; in den Zeiten, wo die Ärzte am nöthigsten sind, bei grossen Seuchen, sind sie zugleich am meisten gefährdet. Denn wo sind die Ärzte der modernen Menschheit, die selber so fest und gesund auf ihren Füssen stehen, dass sie einen Andern noch halten und an der Hand führen könnten?”. Cf. também UB III, 6; MA I, 243; M, 52; GD, Streifzüge, 36.

129

Cf. GM, II, 22.

130 Cf. GM, III, 21.

131 São, de facto, inúmeras as referências de Nietzsche ao estado doentio da cultura contemporânea e à

consequente necessidade da sua reabilitação ou cura. Cf. por ex. UB II, 10: “Aber es ist krank, dieses entfesselte Leben und muss geheilt werden.” ; MA II, WS, 87; MA II, WS, 350; FW, 24: “Europa ist ein Kranker, (…)”; FW, 352: “Der Europäer verkleidet sich in die Moral, weil er ein krankes, kränkliches, krüppelhaftes Thier geworden ist, (…)”; Z, Von der schenkenden Tugend, 2; JGB, 208; GM, Vorrede, 5; GM, II, 22; GM, III, 13; WA, Zweite Nachschrift: “Der Verfall ist allgemein. Die Krankheit liegt in der Tiefe.”; A, 38; NL 3[33], KSA 7.69: “(…) eine Heilung des Menschen soll erzielt werden: (…)”; NL 9[30], KSA 7.282: “die Stellung zu unsern Kulturperioden: wir streben zur Gesundheit zurück”; NL 5[15], KSA 8.43; NL 28[23], KSA 11.308; NL 31[33], KSA 11.370: “Jeglich Wort gehört nicht in jedes Maul: aber wehe über diese kranke sieche Zeit! Wehe über die große Maul- und Klauenseuche.”; NL 25[15], KSA 13.645.

53 tipo de homem que Nietzsche caracteriza como “o animal doente”132 que se torna necessário tomar o cultivo da cultura conscientemente em mãos e trabalhar para a criação de uma nova cultura e de um novo tipo de homem, que possa superar a doença pela qual foi acometido e ser, antes, uma expressão de força e de verdadeira saúde.

É neste sentido que tanto o projecto da transvaloração de todos os valores como o de criação ou cultivo de uma nova cultura ou de um novo tipo de homem se podem interpretar como um projecto de terapia: se, por um lado, dada a incorporação e o enraizamento profundos e milenares daquilo a que Nietzsche chama a doença do homem ocidental, a superação do estado doentio da sua cultura só pode ser alcançada através de um verdadeiro cultivo ou criação de uma nova cultura, de um novo tipo de homem, por outro lado, este mesmo cultivo ou criação só poderá ser levado a cabo através de uma acção terapêutica de diagnóstico dos sintomas, causas e efeitos da doença e de prescrição de antídotos ou, na verdade, de novas fórmulas medicinais (valores), que promovam a saúde em vez da doença e, assim, substituindo gradualmente as antigas, permitam superar o niilismo tão característico do nosso tempo e conduzir a uma nova saúde, “uma saúde mais forte, mais avisada, mais resistente, mais intrépida e risonha do que todas as saúdes foram até aqui”133. Nunca tendo existido, uma tal saúde terá ainda, ela própria, de ser criada ou cultivada.

Vemos, pois, como as noções de transvaloração de todos os valores, de criação ou cultivo de um novo tipo de homem, e de terapia, cura ou reabilitação da cultura se entrecruzam, implicam e determinam mutuamente, não sendo possível pensar uma sem as outras, nem aconselhável considerá-las num sentido que não seja o da convergência no projecto nietzschiano de reforma ou elevação da cultura ocidental. Não pretendendo com isto afirmar que toda a filosofia nietzschiana se deverá interpretar necessária, única e exclusivamente como uma terapia da cultura, acreditamos que esta é, em todo o caso, uma perspectiva possível e profícua de

132

Cf. GM, III, 13; A, 3; NL 15[120], KSA 13.480.

133

Cf. FW, 382. Cf. também MA II, Vorrede, 6: “(…) den Weg zu einer neuen Gesundheit zu wissen, ach! und zu gehen, einer Gesundheit von Morgen und Uebermorgen, ihr Vorherbestimmten, ihr Siegreichen, ihr Zeit-Ueberwinder, ihr Gesündesten, ihr Stärksten, ihr guten Europäer! – –”; EH, Z, 2.

54 leitura, tal como procuraremos mostrar ao longo da presente dissertação.

É importante salientar a este respeito como a natureza daquilo a que, no sentido explicitado, poderemos chamar o projecto terapêutico de Nietzsche, o distingue e aparta radicalmente das filosofias terapêuticas tradicionais. Ao contrário destas, com efeito, o “médico filosófico” de Nietzsche não tem em vista terapias individuais, isto é, a promoção da vida do indivíduo no sentido de um florescimento pessoal e espiritual que o leve ao alcance do bem ou da felicidade, da “vida boa” (eudaimonia), tal como Sócrates, Epicuro, Séneca, Epicteto ou, em geral, todas as filosofias morais desta natureza, mas antes, como vimos, a cultura ou mesmo a humanidade no seu todo: a “saúde conjunta de um povo, de uma época, de uma raça, da humanidade”134.

Tal deveria, desde logo, permitir afastar uma certa interpretação de Nietzsche que, tradicionalmente, tende a vê-lo como, primaria e essencialmente, um filósofo individualista e elitista, preocupado única e exclusivamente com o desenvolvimento e florescimento de um número muito limitado de indivíduos extraordinariamente raros ou excepcionais, sem qualquer tipo de preocupação político-social ou com a sociedade no seu todo.135 Apesar de nos últimos anos uma tal perspectiva já ter sido fortemente contestada e várias vezes refutada136, continuam a aparecer interpretações influentes, que, de alguma forma escamoteando o forte compromisso social de Nietzsche, acentuam antes o seu chamado “perfeccionismo”.137

Uma tal interpretação apoia-se, naturalmente, naquelas passagens em que Nietzsche parece dirigir-se exclusivamente aos chamados “homens superiores (höhere

Menschen)” ou aos seus famosos “espíritos livres (freie Geister)”, a quem apela

insistentemente, em cujo aparecimento futuro deposita as maiores esperanças, e a quem, em última análise, parece dedicar todos os seus escritos. Em alguns textos Nietzsche parece mesmo, de forma ainda mais radical e para alguns algo escandalosa,

134 Cf. FW, Vorrede, 2.

135

Com abordagens bastante diferentes e com diferentes graus de acentuação, podemos reconhecer esta leitura em autores como KAUFMANN (1968); MACINTYRE (1981); NEHAMAS (1985); THIELE (1990).

136

Cf. por exemplo CONWAY (1997); OWEN (1995); YOUNG (2006).

137 Cf. por exemplo U

55 contrastar explicitamente uma admiração extrema por estes homens superiores com um profundo desprezo pelos homens comuns, a massa, a sociedade, o “rebanho”, afirmando por exemplo que “a humanidade deve trabalhar continuamente para a produção (erzeugen) de grandes indivíduos (einzelne grosse Menschen)”, sendo esta e nenhuma outra a sua função138, ou que o “direito à vida [dos homens superiores, dos homens saudáveis] (…) é, de facto, mil vezes superior” ao do homem comum, inferior, doente.139 No contexto da sua crítica aos efeitos nefastos da cultura contemporânea e da moralidade presente na vida dos indivíduos são, para além disso, constantes os apelos a uma libertação das cadeias da sociedade, ao isolamento da vida social, à mais íntima solidão e, em geral, às condições necessárias para que estes espíritos excepcionais possam criar os seus próprios valores, desenvolver as suas próprias virtudes e tornar-se verdadeiramente indivíduos, no sentido próprio do termo, pelo que não é completamente infundada a ideia de um antagonismo entre indivíduo e sociedade140, por um lado, funcionando esta (pelo menos no seu estado actual) como um impedimento ao desenvolvimento máximo das potencialidades do indivíduo e, por outro lado, do apelo a um certo individualismo como combate aos efeitos nocivos da integração na sociedade.

Não sendo completamente infundada, porém, esta é uma visão muito limitada, parcial e, na verdade, deturpadora da filosofia de Nietzsche, na medida em que não leva em conta o contexto global de tais afirmações e o projecto maior de acordo com o qual as mesmas deverão ser interpretadas. Nietzsche não se dirige nem escreve, de facto, para toda a gente, nem, tão pouco, deseja ser lido ou compreendido por todos,

138

Cf. UB III, 6.

139

Cf. GM, III, 14.

140 É, em particular, a moral no interior de uma sociedade que funciona como inimiga do indivíduo, uma

vez que, como Nietzsche tantas vezes repete, a moral favorece e privilegia sempre os interesses do grupo em detrimento dos do indivíduo, razão pela qual esta se apresenta como o “instinto de rebanho no indivíduo” (FW, 116). Cf. por ex, MA II, VM, 89: “Der Ursprung der Sitte geht auf zwei Gedanken zurück: «die Gemeinde ist mehr werth als der Einzelne» und «der dauernde Vortheil ist dem flüchtigen vorzuziehen»; woraus sich der Schluss ergiebt, dass der dauernde Vortheil der Gemeinde unbedingt dem Vortheile des Einzelnen (…) voranzustellen sei.”; FW, 21; FW, 116: “Mit der Moral wird der Einzelne angeleitet, Function der Heerde zu sein und nur als Function sich Werth zuzuschreiben.”; FW, 117; JGB, 201; JGB, 268; Z, Von tausend und Einem Ziele: “Schaffende waren erst Völker und spät erst Einzelne; wahrlich, der Einzelne selber ist noch die jüngste Schöpfung. (…) Älter ist an der Heerde die Lust, als die Lust am Ich: und so lange das gute Gewissen Heerde heisst, sagt nur das schlechte Gewissen: Ich.”

56 ou sequer pela maioria. Manifesta também, indubitavelmente, uma grande admiração por esses espíritos excepcionalmente raros que se conseguem distanciar da sociedade em que foram criados e, por assim, dizer, cultivar-se ou criar-se a si mesmos, por oposição aos indivíduos que não conseguem libertar-se e se mantêm presos ou acorrentados aos valores da cultura em que nasceram. Tal não precisa de significar, porém, como não significa, de facto, que Nietzsche despreze em absoluto e não tenha de todo em consideração a sociedade, o todo, o “rebanho”. Pelo contrário. Seria de facto muito estranho se, enquanto filósofo – e, na verdade, enquanto médico da cultura –, Nietzsche apenas tivesse em vista o desenvolvimento, florescimento, cultivo ou terapia de um número muito reduzido de indivíduos, mantendo-se indiferente ao estado inferior, doente ou decadente que diagnostica na sociedade como um todo. Se Nietzsche manifesta, porém, indubitavelmente esse desejo de cultivo de “homens superiores” ou “espíritos livres”, será de esperar que haja alguma ligação entre o seu aparecimento e a reabilitação da sociedade no seu todo.

E, de facto, assim é. Na maior parte dos textos em que Nietzsche se refere a estes “homens superiores” ou “espíritos livres”, Nietzsche parece ter em vista, na verdade, os seus novos filósofos ou filósofos do futuro, a quem, como vimos, atribui precisamente a tarefa da reforma, cultivo ou terapia da cultura ocidental. Que o sentido do seu aparecimento se encontra, portanto, muito para além de si mesmos, torna-o o próprio Nietzsche bastante explícito, quando, por exemplo, se refere a estes indivíduos excepcionais como “grandes homens redentores”141 ou como homens da “mais ampla responsabilidade”, carregando sobre si “a consciência pela evolução global dos homens”142. A sua solidão é, por isso, geralmente mal compreendida pelas massas, “como se fosse uma fuga da realidade”, quando na verdade ela é a sua “imersão, enterramento, absorção na realidade”, para que dela possam extrair uma “redenção desta realidade”143. Nem esta solidão ou isolamento, portanto, a que Nietzsche tantas vezes apela nos seus escritos, nem tão pouco os próprios indivíduos que, através dela, se podem constituir enquanto tal – os homens superiores, os

141 UB III, 6. 142 JGB, 61. 143 GM, II, 24.

57 espíritos livres, ou mesmo os novos filósofos – são, pois, um fim em si mesmos, o objectivo último a alcançar, mas antes e apenas a condição de possibilidade do cumprimento da tarefa mais ampla de reabilitação, de terapia, de salvação ou, de acordo com esta última expressão, de “redenção desta realidade”.

A doença que Nietzsche diagnostica e a cuja superação dedica a sua obra é, como efeito, tal como analisaremos na segunda parte deste estudo, uma doença histórica, cultural, civilizacional, “supra-individual”144, pelo que assim terá que ser também a terapia, no caso de esta ser possível, isto é, um processo que necessariamente implicará uma profunda e radical alteração social, cultural, e civilizacional, envolvendo os pilares mais básicos de estruturação da sociedade e abrangendo obviamente todos os seus membros, a massa, o “rebanho”, o todo, na verdade, a humanidade enquanto tal. Daqui se segue uma outra diferença importante relativamente às restantes terapias, nomeadamente no que diz respeito à sua amplitude temporal: se as terapias tradicionais, concentradas no indivíduo e exigindo apenas modificações interiores e individuais, se revelam exequíveis ao longo do tempo de vida de um indivíduo, a terapia nietzschiana, por exigir mudanças estruturais, normativas, socio-políticas, civilizacionais, não tem sequer um tempo de execução limitado ou previsível, precisando de várias gerações e até mesmo de vários séculos para que os seus eventuais resultados se possam tornar perceptíveis.145 É por este motivo que, contra as interpretações que de uma forma ou de outra procuram afastar Nietzsche da esfera política, considerando-o um filósofo apolítico, anti-político, ou mesmo supra-político146, Nietzsche pode e deve ser considerado um pensador político.147

144 NL 11[85], KSA 9.473.

145 Parece ser este, de resto, o destino de todos os “grandes acontecimentos (grosse Ereignisse)”, isto é,

aqueles que se passam ao nível quase imperceptível das mentalidades, dos valores, das mundividências de gerações inteiras. Apesar de serem os mais significativos, tais acontecimentos não se anunciam e levam tempo a serem percebidos, como o demonstra, por exemplo, a “morte de Deus”. Cf. por exemplo, FW, 125, 343. Cf. também FW, 370; JGB, 285; Z, Von grossen Ereignissen.

146 Cf. por exemplo K

AUFMANN (1968);THIELE (1990); YOUNG (2006); VAN TONGEREN (2008a). 147

Obviamente não no sentido em que no centro do seu pensamento se encontrem questões estrita e exclusivamente políticas ou a concepção e propaganda de um determinado sistema político em detrimento de outros, mas no sentido em que, por um lado, o homem é sempre pensado como um ser político, isto é, como um ser em cuja identidade se encontra desde sempre incluída a pertença a uma

58 Por outro lado, porém, e apesar de Nietzsche parecer acreditar na possibilidade de uma transfiguração e recriação humanas a uma escala global, esta não é uma transformação que, segundo Nietzsche, cada um possa e consiga levar a cabo por si e para si mesmo, desde logo porque essa “grande libertação (grosse Loslösung)”148, como Nietzsche lhe chama, é um processo carregado de dor e de sofrimento149, um caminho de solidão e de “doentio isolamento”150, de uma inquieta errância sem fim nem destino, simultaneamente um perigo e “uma doença que pode destruir os homens”151, principalmente se neles não houver forças plásticas e criativas suficientes para preencher o vazio resultante com novos valores, em cujo caso o resultado seria o “infinito nada”152, a completa falta de sentido153, a queda no mais profundo, radical e perigoso niilismo – o “perigo dos perigos”154, segundo Nietzsche. A famosa “transvaloração de todos os valores (Umwerthung aller Werthe)” que se encontra no cerne do projecto de cultivo ou terapia de Nietzsche não é, pois, algo que se encontre ao alcance de qualquer um ou sequer que deva ser executado de uma forma individual, mas antes um processo histórico longo e gradual que, muito em particular, requer a mediação de um “outro tipo de espíritos, diferente daquele que é provável precisamente nesta época: espíritos fortalecidos pela guerra e pela vitória, para quem a conquista, a aventura, o perigo, a dor se tornaram mesmo uma necessidade (…)”155 e que, para além disso, sejam “fortes e originais o suficiente para dar o impulso para avaliações contrárias e para transmutar e inverter os ‘valores eternos’”156 – ou seja,

determinada comunidade e, por outro lado, o seu projecto filosófico envolve um processo de profunda alteração histórica, social, cultural, civilizacional e, como tal, política. Cf. ANSELL PEARSON (1994);OWEN

(1995); CONWAY (1997); COMINOS (2008); CONSTÂNCIO (inédito). 148

MA I, Vorrede, 3.

149 Cf. por exemplo MA I, Vorrede, 3; M, 18: “Jeder kleinste Schritt auf dem Felde des freien Denkens,

des persönlich gestalteten Lebens ist von jeher mit geistigen und körperlichern Martern erstritten worden: (…)”; Z, Vom Wege des Schaffenden: “«(…) Alle Vereinsamung ist Schuld»: also spricht die Heerde. Und du gehörtest lange zur Heerde. / Die Stimme der Heerde wird auch in dir noch tönen. Und wenn du sagen wirst «ich habe nicht mehr Ein Gewissen mit euch», so wird es eine Klage und ein Schmerz sein.”

150 MA I, Vorrede, 4. 151 Cf. MA I, Vorrede, 3. 152

Cf. FW, 125.

153 Cf. NL 25[505], KSA 11.146: “Je tiefer man hineinsieht, um so mehr verschwindet unsere

Wertschätzung – die Bedeutungslosigkeit naht sich!”

154

Cf. NL 2[100], KSA 12.109; NL 2[118], KSA 12.120.

155

Cf. GM, II, 24.

59 precisamente, os novos filósofos. Apesar de estes filósofos do futuro serem essencialmente experimentadores de si próprios e, como tal, este processo de transmutação e criação de valores ser, num primeiro momento, de ordem individual, a sua responsabilidade reside essencialmente no facto de se poderem e deverem, segundo Nietzsche, oferecer como exemplo inspirador de transfiguração humana e, assim, como alternativa ao tipo de homem e de ideal do presente, trazendo portanto