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Capitulo 2 – Contexto histórico da tortura no Brasil

2.2 A tortura no Império

Em 1808, D. João VI e a família real portuguesa chegaram ao Brasil fugindo das invasões napoleônicas. Como conseqüência dessa vinda, além da abertura dos portos às nações amigas, o Brasil passou a fazer parte do Reino Unido de Portugal e Algares. Com o retorno de D. João VI a Portugal, os conflitos e crises existentes na Colônia possibilitaram que em 7 de setembro de 1822, D. Pedro I tornasse o Brasil independente de Portugal.80

D. Pedro I foi coroado imperador e deu-se início ao período imperial brasileiro. Embora o Brasil tenha se tornado independente e, a partir disso, organizado em novos

79No período colonial, havia três tipos de reclusão carcerária: a cela incomunicável, em que o réu ficava

imóvel atado a grilhões que o prendiam; o calabouço, onde o réu ficava com as mãos e pés atados; e a reclusão carcerária comum (Pedroso, 2002, p.51).

80 Entretanto, a independência não implicou em nenhuma alteração da estrutura social brasileira. A enorme população de escravos e homens livres não proprietários permaneceu indiferente às mudanças políticas. Os movimentos sociais eram sufocados por violentas reações por parte do poder instituído: Os movimentos sociais, durante toda a vigência do império, justamente contestaram essa estrutura. Tiveram forte influência dos ideais igualitários do iluminismo. Ver os estudos de Carlos Guilherme Mota (1979) e Sérgio Adorno (1988).

moldes toda a sua estrutura político-institucional, a manutenção da escravidão permaneceu intocável até final do século XIX.81

O historiador brasileiro José Honório Rodrigues (1974), examinando os debates da Constituinte de 1823, apontou que houve discussões referentes ao conceito de “cidadão brasileiro”, para os fins da proteção constitucional:

A França declara que não se pode deixar ‘de fazer esta diferença entre brasileiros e cidadãos brasileiros. Segundo a qualidade da nossa população, os filhos dos negros, crioulos cativos, são nascidos no território brasileiro, mas não são cidadãos brasileiros. Devemos fazer esta diferença: brasileiro é que nasce no Brasil, e cidadão brasileiro é aquele que tem direitos cívicos. Os índios que vivem nos bosques são brasileiros enquanto não abraçam a nossa civilização. Convém, por conseqüência, fazer esta diferença por ser heterogênea a nossa população’. Era a primeira vez que se falava essa linguagem clara e franca, revelando que o Brasil era uma sociedade de classe multirracial. Montezuma, mulato baiano, levanta-se para responder ao catarinense, deputado do Rio de Janeiro, que falava de índios e crioulos cativos: ‘Cuido que não tratamos aqui senão dos que fazem a sociedade brasileira, falamos aqui dos súditos do Império do Brasil, únicos que gozam dos cômodos da nossa sociedade, e sofrem seus incômodos, que têm os direitos e obrigações no pacto social’. Os índios estão fora da nossa sociedade, continua Montezuma, não são súditos do Império, não o reconhecem, vivem em guerra aberta conosco. Não têm direitos, porque não reconhecem deveres. Não devem ser desprezados, antes devem ser facilitados os meios de os chamar à civilização, e o fato de nascerem conosco no mesmo território nos impõe esse dever. Quanto aos crioulos cativos, Deus queira que quanto antes purifiquemos de uma tão negra mancha às nossas instituições políticas. [...] [sic] No exercício dos direitos na sociedade, são considerados coisas ou propriedade de alguém; como tais as leis os tratam e, sendo assim, como chamá-los de cidadãos brasileiros? Os escravos não passam de habitantes do Brasil”(Rodrigues, 1974. p. 123).

81 Importante destacar que somente em 1850 ocorreu a abolição do tráfico negreiro com a Lei Eusébio de Queiros. Várias razões explicam isso, uma delas são a pressão da Inglaterra e a Revolução Industrial do século XVIII, que universalizou o emprego do trabalho assalariado. Para a sociedade européia do século XIX, que evoluía no sentido do emprego livre assalariado, a escravidão começou a parecer em toda a sua desumanidade, criando bases para as ações antiescravistas. A escravidão nas áreas coloniais impedia a ampliação de novos mercados para os países europeus, pois escravos não são consumidores. As pressões da Inglaterra em relação ao Brasil foram grandes, já que houve uma resistência em acabar com o tráfico negreiro no país (Koshiba, 1993, p. 209).

Este ponto nos fornece uma série de pistas importantes para entender a distribuição desigual existentes com relação à cidadania e reconhecimento dos direitos de cada brasileiro.

Conforme José Murilo de Carvalho, “apesar de constituir um avanço no que se refere aos direitos políticos, a independência, feita com a manutenção da escravidão, trazia em si grandes limitações aos direitos civis” (2005, p.28). Herdou, desse modo, “a negação da condição humana do escravo, a grande propriedade rural, fechada à ação da lei, e herdou um Estado comprometido com o poder privado” (Carvalho, 2005, p.28). Os castigos corporais, a intervenção do poder dos senhores nos corpos dos escravos, mantiveram-se ainda bastante enraizados neste período.

Entretanto, algumas determinações imperiais restringiram o uso excessivo dos castigos corporais e de condições insalubres dos cárceres. Um decreto expedido por D. Pedro I, datado de 23 de maio de 1821, determinava que:

4º - que, em caso nenhum, possa alguém ser levado em segredo ou masmorra estreita, escura ou infecta, pois que a prisão deve só servir para guardar as pessoas e nunca para adoecer ou flagelar, ficando implicitamente abolido para sempre o uso de correntes, algemas, grilhões e outros quaisquer ferros inventados para martirizar homem ainda não julgados a sofrer qualquer pena aflitiva por sentença final (Marques, 1964, p.87 apud Burihan, 2008, p. 61).

Posteriormente, por intermédio da Constituição do Império de 1824, outorgada pelo imperador D. Pedro I, a proibição da tortura é colocada de forma expressa. Segundo o Artigo 179, inciso XIX, da Constituição Imperial:

Art. 179 - A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos Brazileiros [sic], que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela maneira seguinte: XIX. Desde já

ficam abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as mais penas cruéis [grifo nosso] (Constituicão Politica do Imperio do Brazil [sic], 1824).

O referido artigo inclui, no inciso XXI, que as cadeias serão “seguras, limpas, bem arejadas, havendo diversas casas para separação dos Réos [sic], conforme suas circumstancias [sic], e natureza dos seus crimes” (Constituição..., 1824).

Apesar dessas proibições, Código Criminal de 1830 ainda possibilitava que a pena de açoites e pena de galés vigorassem. Essas penas eram justamente aquelas destinadas aos escravos. Conforme o Capítulo I, Título II, artigo 60 do Código Criminal do Império:

Artigo 60 – Se o réu for escravo, e incorrer em pena que não seja a capital ou de galés, será condenado na de açoites e, depois de os sofrer, será entregue a seu senhor, que se obrigará a trazê-lo com um ferro pelo tempo e maneira que o juiz o designar. O número de

açoites será fixado na sentença e o escravo não poderá levar por dia mais de cinqüenta [grifos nossos] (Código Criminal do Império, 1830 apud Primeiro Relatório Relativo à Implementação da Convenção..., 2000, p.15).

Assim sendo, os negros escravos continuavam sofrendo castigos corporais não apenas como forma de controle, mas também como forma de punição.Os negros somente vieram a se libertar dos castigos corporais legalmente em 1888, com a extinção jurídica da escravidão, o que motivou, inclusive, a necessidade de se alterar parte dos dispositivos do Código Criminal de 1830, resultando na do Código de 1890 (Coimbra, 2002). Ainda segundo o Código Criminal de 1830, a pena de prisão era a principal punição da época. 82 De acordo com Regina Célia Pedroso (2002), este Código assimilou toda a carga de penalidades corporais existente até então, umas delas foi a pena de morte, que só foi abolida pelo Código Penal de 1890. Com relação às prisões, o aparato legislativo da época revelou uma total falência na aplicação dos modelos penitenciários no Brasil, principalmente em razão da sua “complexidade burocrática e a autonomia que as províncias tinham para gerir as casas de reclusão” (Pedroso, 2002, p.23).

Na verdade, as prisões não tinham um propósito de regeneração ou “recuperação” dos presos, ela era um local utilizado para alojar escravos e ex-escravos, crianças e adolescentes em situação de rua, local de abrigo para doentes mentais e, finalmente, serviu como fortaleza para aprisionar os inimigos políticos. Conforme Pedroso, a prisão nada mais era do que o “monumento máximo da construção da exclusão social, cercado por muros altíssimos ou isolado em ilhas e lugares inóspitos, que escondia uma realidade

82 As duas principais prisões do século XIX foram as casas de correção do Rio de Janeiro e São Paulo. Elas eram destinadas a recolher criminosos condenados à pena de prisão com trabalho, entretanto, nelas havia dependências especificas – chamadas de calabouço – para recolhimento de escravos fugitivos ou de escravos rebeldes que eram para lá enviados pelos próprios senhores para que recebessem castigos, geralmente o de açoite. Ver O Primeiro Relatório Relativo à Implementação da Convenção Contra Tortura e Outros

desconhecida da população: os maus tratos, a tortura, a promiscuidade e os vícios” (2002, p.15).