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Capitulo 2 – Contexto histórico da tortura no Brasil

2.3 A tortura na República Velha

Com o fim do tráfico negreiro em 1850, iniciou-se no Brasil um movimento contra a escravidão. As novas concepções econômicas posicionavam o problema da escravatura como questão social. O desenvolvimento da economia cafeeira estava comprometido pela escravidão. Além disso, a constituição do capitalismo industrial e a generalização do trabalho livre assalariado tornaram a escravidão um sistema repulsivo. Com toda a pressão vigente, a abolição da escravatura ocorreu em 1888, por meio da Lei Áurea, assinada pela Princesa Isabel que, na ausência de D. Pedro II, assumira a regência (Koshiba, 1993, p. 229).

Entretanto, aos libertos não foi oferecido nenhum mecanismo de ascensão social. Eles não tiveram acesso às escolas, terras, nem a empregos. A libertação dos escravos não significou uma mudança na estrutura social, em que os libertos tivessem as mesmas condições que os outros. Do mesmo modo, continuaram a ser perseguidos pelas forças policiais como suspeitos criminosos ou por crimes de vadiagens, delito tipificado pela legislação da época. Os reflexos disso são até hoje sentidos na sociedade brasileira, em que os negros ocupam posição inferior em todos os indicadores de qualidade de vida (Carvalho, 2005, p.52 - 53).

Mesmo o advento da República, em 15 de novembro de 1889, proclamada por Marechal Deodoro da Fonseca 83 , não representou ruptura com as estruturas dominantes dos períodos anteriores. Apesar das condições favoráveis para a instalação de um novo sistema político, baseado nos valores democráticos e que incorporava amplos setores da população até então marginalizados, a República, nas suas primeiras décadas de existência, não desmontou a herança elitista e hierárquica proveniente do Império (Pinheiro, 2001). A chamada “República Velha” não apenas deixou intacta a estrutura social existente como sufocou de forma violenta todo o tipo de movimentos sociais de oposição, das mais

83 Importante destacar que a República desse período foi fortemente influenciado pelo positivismo, que apresentou sua marca maior nas inscrições da bandeira nacional brasileira Ordem e Progresso.

variadas orientações, e seus simpatizantes foram submetidos às práticas de tortura e tratamentos degradantes.

Na primeira fase da República, dois episódios demonstraram o poder repressor do Exército: Canudos 84, em 1897 e o Contestado, em 1912. Ambos movimentos populares severamente reprimidos. Esses movimentos foram caracterizados pelo forte messianismo e pelas rígidas condições de precariedade da vida das populações pobres. Eles não visavam um golpe de estado, mas uma alternativa de resistência e superação das condições de vida existentes. Por entender que tais movimentos visavam derrubar o poder republicano, o Estado vigente aniquilou as comunidades de Canudos e do Contestado85 (Monteiro, 1974; Queiroz, 1965; Tota, 1983).

Apesar de toda a tentativa de centralização do poder, o início da República Velha conterá ainda muitos resquícios do passado. Paulo Sérgio relata que nesta época o governo federal e os estaduais faziam vista grossa aos arbítrios do mandonismo e coronelismo local, numa perversa delegação de poderes (2001, p.269).

Embora a República fosse favorável ao federalismo, a fragilidade do poder central em nível estadual e federal estimulou, nos municípios, o predomínio dos coronéis. Nesses locais, suas vontades eram leis. O poder de violência dos coronéis era garantido pelos seus jagunços (espécie de guarda particular do senhor). Assim, a população também era afetada pela violência promovida pelos coronéis, que controlavam, principalmente, as votações eleitorais, revelando que na verdade não havia no Brasil uma república efetivamente instituída (Carone, 1971). Os atos dos coronéis, por mais violentos que fossem, sempre ficavam impunes.

84 Uma grande testemunha do massacre de Canudos foi Euclides da Cunha, autor da obra Os Sertões (2002). Nesta obra o autor registra os momentos de resistência e massacre da comunidade de Canudos, além da execução de Antônio Conselheiro. Euclides da Cunha apresenta, em uma parte de sua obra, um estudo sobre a formação do povo brasileiro e a questão da miscigenação racial. Segundo ele, o brasileiro era a mistura do indígena, do negro e do português e que essa mistura era prejudicial. Euclides (2002) se baseava na teria racial do final do século XIX, para dizer que no Brasil não existia um a unidade de raça.

85De acordo com Paulo Sérgio Pinheiro: “até o fim do governo Artur Bernards (1922-6), o governo

desterrava, sem mandados de prisão nem nenhum processo, centenas de ‘indesejáveis’ (categoria que englobava desde trabalhadores, desempregados, militares revoltados) para colônias no Norte ou para Clevelândia no Oiapoque: era uma virtual condenação à morte. Chama a atenção a tolerância da opinião pública da época diante de levas de centenas de desterrados, que guarda hoje algo em comum com o conformismo que une governo e elites diante das cenas, agora registradas pela televisão, do amontoado de presos dos distritos policiais e de crianças e jovens submetidos à tortura sistemática em São Paulo” (2001, p. 272-273).

Com a crescente centralização do Estado, o poder das oligarquias e dos coronéis foi enfraquecendo. O investimento da profissionalização do exército aumentou seu poder de repressão. O desenvolvimento industrial e a urbanização de algumas áreas do país nas primeiras décadas do século modificaram profundamente algumas regiões do país. Nesse sentido, foram ampliados os mecanismos de controle social, sobretudo a polícia. Isso favoreceu a continuidade das práticas de confinamento dos setores pobres da população, agora compostos cada vez mais por assalariados urbanos e rurais.

2. 3.1. Legislação da República Velha: a questão dos castigos corporais e das penas

Em 1890, surge um novo código penal que acaba com as penas de morte, de desterro e de galés, e adota a prisão como principal instrumento de punição para os crimes. Entretanto, poucos eram os estados da federação que dispunham de recursos para oferecer boas condições de encarceramento aos presos.

A Constituição de 1891 previa a suspensão de todos os direitos dos cidadãos nos casos em que fosse decretado “estado de sítio”. O estado de sítio permitia o envio dos indivíduos considerados vadios ou vagabundos, para colônias penais em ilhas marítimas, ou nas fronteiras nacionais. Desse modo, os governos decretavam, arbitrariamente, estado de sítio para removerem, para locais inóspitos e distantes, opositores ao regime e também de indivíduos considerados vadios encarcerados em prisões. Era enorme o número de mortos durante o trajeto para o local de desterro, principalmente em razão da precariedade dos transportes. Em um desses locais, conhecido como Núcleo Colonial de Clevelândia, 946 prisioneiros foram para lá desterrados. Em 1925, 444 haviam morrido no percurso (Pinheiro, 1991, p. 87-104).

A Constituição de 1891 não fazia referências expressas à proibição da tortura como a constituição anterior fizera, mas aboliu em seu artigo 72 as penas de galés e banimento judicial, bem como a pena de morte:

Art 72 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguinte: [...] § 9º - É permitido a quem quer que seja representar, mediante petição, aos Poderes Públicos, denunciar abusos das autoridades e promover a responsabilidade de culpados; [...] § 20 - Fica abolida a pena de galés e a de banimento judicial; § 21 - Fica, igualmente, abolida a pena de morte, reservadas as disposições da

legislação militar em tempo de guerra; (Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, 1891).

A tortura, de fato, não desaparece do cotidiano da sociedade brasileira. Conforme Salla e Alvarez (2006a), foram diversas as arbitrariedades policiais e de tortura em diferentes momentos da história republicana brasileira. Os autores relatam 3 episódios ocorridos em determinadas fases desse período, um deles foi o caso do Tenente Galinha, agente policial que torturava a população de modo generalizado, sem ter sido punido por isso. Outro caso relatado pelos autores foi a trajetória de Gino Amletto Meneghetti, que foi alvo de espancamentos, de restrições alimentares e outros mecanismos punitivos próprios do meio policial e carcerário. Por fim, eles relatam a história do Presídio Maria Zélia, onde foram praticadas violências policiais contra prisioneiros políticos pouco antes da entrada em vigor do Estado Novo (Alvarez; Salla, 2006a, p.277-281).

A polícia e a carceragem conjugavam as práticas dos castigos corporais e da tortura contra massa populacional pobre, negra e marginalizada. A polícia, com seu poder arbitrário usava e abusava da força e da violência para conter movimentos sociais, manifestações populares e fazer a “limpeza” social, executando e prendendo os pobres (Pinheiro, 2002).

As prisões nada mais eram do que espaços de exclusão, que serviam para esconder as misérias e os considerados “indesejáveis”. Superlotadas, insalubres, sem condições de higiene e foco de doenças, as carceragens reuniam - sem a mínima separação entre homens, mulheres e crianças – populações cujos crimes variavam entre a vadiagem, a desocupação, ou simplesmente pelo fato de não terem moradia. A tortura era algo corriqueiro nesses espaços, praticamente era parte da pena (Pedroso, 2002; Pinheiro, 2002).

Apesar da Constituição estabelecer direitos, ela era sistematicamente suspensa em razão das séries de Estado de sítio. Um dos casos em que isto fica bem evidente diz respeito à Revolta da Chibata. Em 1910, o marinheiro Marcelino Rodrigues Menizes, do navio chamado Minas Gerais, foi condenado a 250 chibatadas, castigos que foram obrigatoriamente assistidos por seus colegas, que se rebelaram. O líder da revolta foi o marinheiro João Candido, o “Almirante Negro”. Outros navios, estacionados na Guanabara,

aderiram: o São Paulo, o Bahia e o Deodoro. O objetivo da revolta foi a melhoria da alimentação e o fim dos castigos corporais (chibata).86

João Candido ameaçava atacar a cidade com os canhões caso não houvesse algum posicionamento do governo com relação às reivindicações dos marinheiros. O então senador da república Rui Barbosa propôs e aprovou um projeto que atendia às reivindicações dos marinheiros, além de lhes conceder anistia. Entretanto, logo após esses eventos, o presidente Hermes da Fonseca aproveitou a revolta e decretou Estado de sítio, suspendendo as garantias constitucionais. As concessões não foram cumpridas pelo governo e João Candido e seus companheiros foram presos, muitos dos quais morreram numa masmorra da ilha das Cobras, no interior da Baía de Guanabara. As celas eram mínimas, havia infiltrações de água nas paredes, alta temperatura e pouca ventilação. Logo depois, 16 marinheiros morreram de inanição e asfixia e somente sobrevivera João Cândido, mas foi internado num hospício e depois esquecido.87