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Capitulo 2 – Contexto histórico da tortura no Brasil

2.4. O Estado Novo e a prática sistemática da tortura

A urbanização e o desenvolvimento industrial impulsionaram grandes mudanças na sociedade brasileira, ainda baseada numa economia agrícola de exportação. Junto ao desenvolvimento industrial, os operários e trabalhadores foram se organizando em sindicatos. Entre os anos de 1917 e 1920, muitas greves foram realizadas. Os trabalhadores visavam melhorar as condições de trabalho nas fábricas e conquistar um mínimo de direitos (Fausto, 2003, p.300).

De acordo com Carvalho (2005), o ano de 1930 pode ser considerado um divisor de águas na história do país. A partir desse momento ocorre uma grande aceleração das mudanças sociais e políticas no Brasil. Um dos avanços mais significativos está relacionado

86O recrutamento de soldados e marinheiros, desde o período colonial, ocorria de forma muito violenta. Os

homens recrutados eram pessoas de origem humilde que, ao contrário dos que dispunham de fortunas, não tinham como comprovar sua isenção ao serviço militar. O recrutamento era arbitrário e forçado, os recrutas eram submetidos a constantes violências, que incluíam desde a péssima alimentação até castigos corporais (Koshiba, 1993, p.274). Em 1890, os Códigos Disciplinar e Penal da Armada estabeleciam as chibatadas como uma das punições disciplinares aos marinheiros, em sua maioria, negros. Os castigos corporais eram então a garantia da dominação dos oficiais brancos a bordo e nos quartéis.

87 Sobre a Revolta da Chibata, ver Morel (1979) e Nascimento (2001). Vale destacar que, em abril de 1964, durante início do período militar, o autor Morel teve seus direitos políticos cassados por ter escrito essa obra.

aos direitos sociais. Os direitos civis progrediram lentamente neste período, mas continuaram precários para a grande maioria dos cidadãos (Carvalho, 2005, p.88).

Floresciam muitos grupos e movimentos anarquistas, comunistas e socialistas, cada grupo defendendo uma determinada posição com relação à política do país. Surgiram também pequenas organizações fascistas na década de 1920, que fomentaram a Ação Integralista Brasileira (AIB), com uma doutrina nacionalista e cujo lema era “Deus, Pátria e Família”. Esse movimento tinha forte aspiração anti-semitista (Fausto, 2003, p.353).

A Revolução de 1930 marca uma nova época política no Brasil. Com Getúlio Vargas como presidente, tem-se fim a chamada “República do Café com Leite”.88 Entretanto, em 1937, ocorre o golpe de Getúlio, baseada em justificativas de que essa ação era a única possível para impedir o avanço e do golpe comunista no Brasil89 (Fausto, 2003, p.363).

No dia 10 de novembro de 1937, sob o argumento de que o golpe era realizado em defesa da sociedade e contra o comunismo, tropas da polícia militar cercaram o Congresso e Getúlio anunciou uma nova fase política. Entrava em vigor a Carta Constitucional de 1937,e que marcou o início do Estado Novo. A classe dominante aceitou o golpe como algo inevitável e até benéfico (Fausto, 2003, p.365).

A Constituição de 1937 é marcada pelo forte teor autoritário e centralizador. Apesar de apresentar um artigo a respeito dos direitos e garantias individuais, esta Carta se mostrou bastante arbitrária no que diz respeito aos que não teriam “direitos garantidos”: Conforme o artigo 122, inciso 13:

Art. 122: A Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no País o direito à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:

13) não haverá penas corpóreas perpétuas. As penas estabelecidas ou agravadas na lei nova não se aplicam aos fatos anteriores. Além dos casos previstos na legislação militar para o tempo de guerra, a lei poderá prescrever a pena de morte para os

seguintes crimes: a) tentar submeter o território da Nação ou

88 A chamada República do Café com Leite consistia em concentrar as eleições presidenciais nos candidatos de São Paulo e Minas Gerais, excluindo candidatos de outras regiões (Fausto, 2003).

89O chamado Plano Cohen foi o que impulsionou o Golpe de Getúlio. Esse documento trazia as estratégias

que seriam utilizadas pelos comunistas para dar o golpe: massacres, saques e depredações, desrespeito aos lares, incêndios de igrejas etc. Esse plano não era verdadeiro, era um documento forjado para legitimar o golpe de Getúlio Vargas. O Plano Cohen foi divulgado como verdadeiro, o que motivou o Congresso a aprovar as pressas o estado de guerra e a suspensão das garantiras constitucionais por noventa dias. (Koshiba, 1993, p.310).

parte dele à soberania de Estado estrangeiro; b) tentar, com auxilio ou subsidio de Estado estrangeiro ou organização de caráter internacional, contra a unidade da Nação, procurando desmembrar o território sujeito à sua soberania; c) tentar por meio de movimento armado o desmembramento do território nacional, desde que para reprimi-lo se torne necessário proceder a operações de guerra; d) tentar, com auxilio ou subsidio de Estado estrangeiro ou organização de caráter internacional, a mudança da ordem política ou social estabelecida na Constituição; e) tentar subverter por meios violentos a ordem política e social, com o fim de apoderar-se do Estado para o estabelecimento da ditadura de uma classe social; f) o homicídio cometido por motivo fútil e com extremos de perversidade [grifo

nosso] (Constituição Dos Estados Unidos do Brasil, 1937).

A Constituição apresenta clara referência a movimentos comunistas, principalmente aqueles que mantiveram relações com outros países, como por exemplo, União Soviética. Para formalizar o aparato repressivo, cuja tarefa foi a de vigiar e reprimir grupos oposicionistas, Getúlio criou a Polícia Secreta, chefiada por Filinto Muller. Tal como nos regimes totalitários, a Polícia Secreta se especializou em práticas violentas com objetivo de reprimir, com torturas e assassinatos, os indivíduos considerados nocivos à ordem pública.

Desse modo, o Estado Novo, que foi de 1937 a 1945, constituiu um regime ditatorial sob o comando de Getúlio Vargas. A tortura foi um dos pilares de sustentação desse regime. As prisões do país passaram a ter, além de criminosos comuns, prisioneiros políticos. Ambos eram cruelmente e sistematicamente torturados.

Os relatos de Graciliano Ramos (1987) sobre a sua prisão, em Memórias do Cárcere, revelam com detalhes todas as práticas de tortura a que foi submetido durante o momento em que esteve preso. Dentre as torturas sofridas, ele relata o processo de desumanização que a situação imposta provocara, através das humilhações cotidianas, das agressões corriqueiras e das transferências freqüentes (Ramos, 1987).

A tortura, que antes era uma prática dispersa, é sistematizada e torna-se um instrumento de dominação contra os opositores políticos, mas também foi empregada contra os presos comuns. As prisões arbitrárias passam a fazer parte de uma estratégia de amedrontamento que, paulatinamente, acabou se transformando em rotina.

Conforme Regina Célia Pedroso:

A construção do mundo da reclusão durante o governo Getúlio Vargas significou não só a limpeza das ruas contra o inimigo

aparente – o vagabundo -, mas uma artimanha para encerrar todos os inimigos, quer fossem eles de vertentes ideológicas, como os comunistas, ou de vertentes sociais, como os bandidos comuns. Punir e castigar essa gama de desclassificados significou a atribuição do poder de vida e morte ao Estado, que se utilizou desses atos para promover uma ‘nova ordem social’, concretizada durante a ditadura Estadonista (Pedroso, 2002, p.202)

Maria Helena Capelato (2003) relata que neste período a forte repressão, as prisões arbitrárias, a tortura, os exílios, a censura atingiu tanto os considerados subversivos (comunistas, socialistas, anarquistas) como os opositores liberais. Ainda conforme a autora, muitos permaneceram presos nas masmorras do Estado Novo e foram torturados.

Luciano Oliveira (1994) acrescenta que o regime de Vargas “bateu na esquerda e na direita”. Bateu na esquerda quando por ocasião da insurreição promovida pela Aliança Nacional Libertadora (ANI), em 1935, que ficou conhecida como “Intentona Comunista”, suprimida por uma violenta repressão. Bateu na direita quando a Ação Integralista Brasileira (AIB), realizou um protesto armado em frente ao Palácio do Catete em represália ao fechamento dos partidos políticos, decretado por Getúlio Vargas. O protesto foi violentamente sufocado pelo governo. Todos os militantes capturados conheceram os métodos da polícia política de Filinto Muller (Oliveira, 1994, p. 20).

As torturas e a repressão eram camufladas pela publicidade do governo de Vargas. Getúlio construiu uma imagem de protetor dos trabalhadores, que “doava benefícios a sua gente e que dela tinha o direito de esperar fidelidade e apoio” (Fausto, 2003, p. 375)90. No controle da imprensa, o Estado divulgava a sua versão da história e obscurecia o que realmente acontecia aos presos políticos, aos deportados, aos desaparecidos, etc. Desse modo, os dois pilares que deram sustentação ao regime de Vargas foram a propaganda política, fortemente inspirada no modelo nazista, e a repressão aplicada por órgãos como o Tribunal de Segurança Nacional, criado em 1936 (Burihan, 2008, p.65).

Além disso, Getúlio conquistou a aprovação de grande parte da população com suas políticas e legislação voltadas para áreas sociais. Paradoxalmente, essa legislação surge

90Getúlio Vargas formou uma opinião pública a seu favor, pela censura aos meios de comunicação e pela

construção de uma versão própria sobre a fase histórica do país. Getúlio já contava com um aparato publicitário desde 1931, quando criou o Departamento Oficial de Publicidade. Em 1934, foi criado no Ministério da Justiça o Departamento de Propaganda e Difusão Cultural, que funcionou até o ano de 1939. Durante o Estado Novo, Getúlio contou com o DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), que apresentava diversas funções de difusão de informações (Fausto, 2003, p.375-376).

num ambiente de reduzida, ou praticamente nula, participação política e vulnerável vigência dos direitos civis. Além disso, a constituição dos direitos sociais neste momento não era efetivamente apresentada enquanto direitos, mas como um favor do Estado, cujo preço consistia na gratidão e lealdade do povo. Conforme Carvalho, a “cidadania que daí resultava era passiva e receptora antes que ativa e reivindicadora” (2005, p.126).

Importante destacar a influência dos regimes totalitários europeus do início do século XX com relação ao Estado Novo. Esses governos foram marcados pela perseguição às minorias étnicas e religiosas, bem como aos opositores dos regimes políticos instituídos91. Conforme José Maria Bello:

O Brasil entrosava-se entre os Estados Totalitários. As justificativas do Sr. Getulio Vargas não diferiam no fundo nem na forma das alegadas por outros ditadores: superação histórica do velho liberalismo, artificialismo da estrutura política e econômica, erros incuráveis da máquina administrativa, excesso de regionalismo, com sacrifício da unidade nacional, impotência do Executivo, esterilidade do Legislativo, ameaças de anarquia, agravadas pela campanha presidencial, etc (Bello, 1969, p.316). O Estado Novo também apresentou forte traço racista baseado no anti-semitismo. Além de perseguir opositores políticos, o governo de Getúlio perseguiu os judeus, submetendo-os às torturas, prisões e deportações.92 O Estado Novo fomentou o discurso de

que os judeus eram a fonte de todos os males do mundo moderno. O anti-semitismo, mesmo no caso brasileiro, influenciou atitudes de intimidação, prisão e deportação de judeus. Soma-se a isso o fato do governo brasileiro ter proibido, nos anos 30, a entrada de judeus no país. Esta política foi rigorosa no Estado Novo (Carneiro, 1988).

Uma das histórias de perseguições conhecidas é a de Olga Benario Prestes, jovem militante comunista alemã e de origem judaica. Veio para o Brasil na década de 30, por determinação da Internacional Comunista, para apoiar o Partido Comunista brasileiro.

91 Foi o que ocorreu com o nacional socialismo imposto por Hitler na Alemanha, o fascismo empregado por Benito Mussolini, na Itália, o Salazarismo, do regime de Antonio de Oliveira Salazar, em Portugal, e o franquismo instalado pelo general Francisco Franco, na Espanha, além do comunismo de Stalin (Burihan, 2008, p.67).

92 No Brasil, as manifestações e perseguições contra os judeus podem ser situadas principalmente em dois momentos: na atuação do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição, que perseguiu cristãos novos e judeus vindos de Portugal nos séculos XVII e XVIII, e no primeiro governo de Vargas, de 1930 a 1945. A obra Anti-

semitismo na era Vargas, O - Fantasmas de uma geração (1930-1945), de Maria Luiza Tucci Carneiro

(1988), descreve a perseguição promovida pelo Estado Novo aos judeus, mas também aos negros, ciganos e japoneses. Considerada importante obra sobre o quadro real do projeto étnico-político idealizado pelos dirigentes no Brasil do Estado Novo entre 1937 e 1945.

Destacada para acompanhar Luís Carlos Prestes, tornou-se sua companheira, tendo com ele uma filha, Anita Leocádia Prestes, que nasceu na carceragem onde Olga era mantida presa e era torturada. Vargas deportou Olga para o Estado nazista alemão de Hitler, onde morreu em um campo de concentração, história que foi objeto de relato jornalístico por Fernando de Morais (1993).