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A tradução e a circulação das ideias higienistas

Sigaud dedicou-se intensamente ao trabalho de tradução e de circu- lação da tradição higienista. Ele e sua família desembarcaram no Rio de Janeiro no dia 7 de setembro de 1825 trazendo na bagagem uma carta do Ministro dos Negócios Estrangeiros da França endereçada ao Cônsul Geral daquele país no Rio de Janeiro. A carta recomendava-o como mé- dico e naturalista interessado em clinicar e em desenvolver estudos de história natural pelo interior do Brasil. Formado pela Faculdade de Me- dicina de Strassburgo em 1818, Sigaud obteve o título de doutor em me- dicina com uma tese sobre tísica laríngea. Iniciou sua carreira profissional como cirurgião interno do Hospital Geral de Caridade de Lyon. Con- vencido pela família foi clinicar em sua terra natal, Marselha, onde se tornou membro titular e secretário da Sociedade Real de Medicina da- quela cidade. Lá fundou e dirigiu, entre 1823 e 1825, o periódico médico

Asclepíade no qual publicou um trabalho sobre a epidemia de febre ama-

rela que atingiu ferozmente a cidade de Barcelona no ano de 1822. O ambiente antibonapartista que caracterizou o reinado de Carlos X na França obrigou-o a imigrar. Apesar de tão distante, a escolha do Brasil como o seu novo lar não deve nos surpreender. O Brasil, destacadamente presente nas notícias em virtude de sua então recente declaração de in- dependência, já possuía fortes laços culturais com a França. Economica- mente, as perspectivas do país em 1823 não eram ao menos brilhantes quanto às dos Estados Unidos. Politicamente, o ambiente brasileiro era tudo o que Sigaud poderia desejar. Desde Waterloo, o Brasil era sabida- mente um refúgio para os bonapartistas (Hallewell 1985).

No Rio de Janeiro Sigaud aproximou-se de seu compatriota, o livreiro e editor Pierre Plancher, que pelas mesmas razões políticas também havia imigrado. A experiência anterior como editor fez de Sigaud um colabo- rador assíduo de Plancher no Spectador Brasileiro, jornal impresso pelo edi- tor francês desde 1824. Mais tarde, em 1827, participou ativamente do lançamento do mais famoso e bem sucedido empreendimento comercial de Plancher, o Jornal do Commercio, do qual foi um dos editores. Naquele mesmo ano tornou-se também um dos editores da Aurora Fluminense, jor- nal político-literário em parceria com José Apolinário de Morais e com o cirurgião Francisco Crispriano Vaderato. A dupla Sigaud e Plancher teve grande importância para a história da imprensa brasileira do Primeiro Im- pério (1822-1831) e do período Regencial (1831-1842), particularmente para a história do periodismo médico. Foi deles a iniciativa de criar o pri- meiro periódico médico brasileiro, O Propagador das Ciências Médicas, que circulou entre os anos de 1927 e 1928. Anos mais tarde, em 1835, eles lançariam outro periódico destinado ao público médico, o Diário de Saúde, que circulou até o início de 1836 (Ferreira 1996; Ferreira 2004).

A experiência anterior de Sigaud como secretário da Real Academia de Medicina de Marselha e como editor de periódicos científicos, certa- mente foi decisiva no estabelecimento da primeira corporação médica brasileira. A fundação, em 1829, da Sociedade de Medicina do Rio de Ja- neiro (SMRJ) – entidade convertida, em 1835, na Academia Imperial de Medicina (AIM) – simboliza o início da institucionalização da medicina e da saúde pública no Brasil. O papel desempenhado por essas entidades foi, sem dúvida, o de espaço social dedicado ao trabalho de tradução e de circulação dos princípios teóricos e das soluções práticas oferecidas pela higiene oitocentista tendo em vista uma explicação de suposta especifici- dade brasileira em termos de salubridade e/ou de insalubridade.

Em 1832, Siguad apresentou ao colegas da SMRJ o trabalho intitulado

Discurso sobre a Estatística Médica do Brasil, no qual expunha suas ideias a

respeito do problema sanitário brasileiro (Ferreira 1996; Ferreira 1999). A ideia de elaboração de uma estatística médica do Brasil ajustava-se per- feitamente aos propósitos da SMRJ uma vez que um dos motivos que le- varam a sua criação foi à constatação de que no Brasil àquela época desco- nhecia-se os mais elementares cuidados com a saúde pública. Nessa ocasião Sigaud apresentou o argumento de que o estudo das complexas relações entre o clima e as doenças constituía a abordagem científica correta para elucidação das causas das endemias, epidemias e doenças esporádicas que se manifestavam no país. Para ele, a complexidade do quadro nosológico brasileiro seria a expressão direta da diversidade geográfica e climática país:

Entre a linha do Equador e o trópico em Pernambuco e Bahia, vós não encontrais nenhum indício desses flagelos contagiosos da América do Norte, a febre amarela, o vômito negro, os quais precisam dever desenvolver con- dições análogas de clima e as continuadas comunicações do comércio. De- baixo do trópico sul apresentam-se as febres intermitentes perniciosas, e acompanham ao longe os grandes rios São Francisco, Doce e Paraíba, assim como os pequenos rios menos rápidos que se lançam na baia do Rio de Ja- neiro. O litoral do mar até os areais do Rio Grande, desde Campos até além de Santa Catarina, é cercado por uma cinta de febres intermitentes e Parana- guá reclama, por sua parte, a disenteria como afecção característica. No cen- tro e para o sul, o antraz no Rio Grande, o papo em São Paulo, e a elefantíase em Minas formam o triunvirato endêmico e que não pode escapar ao vosso espírito de investigação.2

Ao lado das doenças cujas manifestações estariam diretamente rela- cionadas às condições climáticas e sociais das diferentes regiões geográ- ficas brasileiras, Sigaud acrescentava outras doenças não tão específicas, como a hepatite e a tísica pulmonar, mas que também deveriam ser in- cluídas no domínio da patologia climatérica. Finalmente, vinham as doenças importadas, como a lepra, a oftalmia egípcia e a bouba que exi- giriam uma reflexão apurada sobre os problemas de saúde pública oca- sionados pela escravidão.

Originalmente concebido como um projeto institucional da SMRJ, a elaboração da estatística médica do Brasil foi uma tarefa realizada soli- tariamente por Sigaud. É possível que os conflitos entre o médico francês e seus colegas da SMRJ tenham contribuído para o isolamento intelec- tual de Sigaud. Os desentendimentos parecem ter começado por ocasião dos primeiros concursos para preenchimento das cátedras da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro ocorridos em 1832. Como o plano de criação das faculdades de medicina do Império (Rio de Janeiro e Bahia) foi elaborado pela SMRJ, quase todos os fundadores da sociedade de medicina se apresentaram para ocupar um posto acadêmico. Sigaud plei- teou a cadeira de Medicina Legal mas não foi admitido. O posto foi ocu- pado pelo médico José Martins da Cruz Jobim, o mais jovem entre os fundadores da SMRJ. Sigaud não pôde sequer participar do concurso sob a alegação de que a legislação determinava que somente na ausência de candidatos brasileiros às cátedras das faculdades e academias do Im- pério poderiam ser ocupadas por estrangeiros. Houve uma segunda ten- tativa na qual também não obteve sucesso. A cátedra pretendida de Clí-

nica Interna foi entregue ao cirurgião-formado Manoel Valadão Pimentel, o futuro Barão de Petrópolis, professor da extinta Academia Médico-Ci- rúrgica do Rio de Janeiro.

Não foi possível conseguir informação suficiente para avaliar o quanto os episódios sucessivos de vetos ao nome de Sigaud abalaram as relações pessoais entre os membros da SMRJ. O que é possível notar é que, depois disso, o nome do higienista francês pouco aparece nas atas das reuniões da sociedade. Também é preciso observar que após ter sido o idealizador e o editor do Seminário de Saúde Pública, o primeiro periódico médico vinculado à SMRJ que circulou de 1831 a 1833, Sigaud transformou-se, em 1835, em um dissidente do periodismo oficial. No mesmo momento em que a AIM – então recentemente criada – lançava um novo perió- dico, a Revista Médica Fluminense, Sigaud criava em parceria com Pierre Plancher o seu próprio jornal científico, denominado Diário de Saúde (Fer- reira 1996; Ferreira 2004).

A divergência entre Sigaud e os outros membros da SMRJ foi mani- festada publicamente por ocasião da sua transformação na AIM. O ponto de vista de Sigaud a respeito foi tornado público num artigo publicado no Diário de Saúde de 24 de outubro de 1835, vinte dias depois de con- sumada a extinção da SMRJ:

Em seu berço sufocada quase pela indiferença dos de fora, ela deveu aos esforços de seu primeiro presidente e de seu primeiro secretário, seu rápido crescimento. Durante esse período de zelo e boa fé, tudo marchava na mais perfeita harmonia para o bem ser e engrandecimento da sociedade. A des- membração de alguns de seus sócios, a ambição e o espírito de compadresco provocaram mais tarde rivalidades o desalento e ameaçaram a sociedade em sua marcha e duração. Graças à prudência e ao zelo de alguns membros, um espírito de atividade veio a propósito reanimar sua existência; e é quando as vantagens desse espírito se faziam melhor sentir, que a sociedade pelo voto unânime de seus membros desapareceu como um homem forte e vigoroso atacado de uma apoplexia fulminante, para dar lugar à academia imperial de medicina, instituição nova, oferenda de remuneração feita pelo governo à sociedade, ato de transformação orgânica no sentido literal e cien- tífico.3

A dissensão de Sigaud é reveladora dos costumes e valores da elite médica brasileira marcada pelas relações reciprocidade e clientelismo (Co-

radini 1997). Sigaud se empenhou em difundir entre os médicos e cirur- giões brasileiros valores capazes de promover o surgimento de uma co- munidade de higienistas. O melhor exemplo disso foi o papel cumprido por ele na institucionalização do periódico médico (Ferreira 2004). O primeiro periódico médico brasileiro, O Propagador das Ciências Médicas ou Anais de Medicina, Cirurgia e Farmácia para o Império do Brasil e Nações

Estrangeiro, lançado por Sigaud em janeiro de 1827, tinha explicitamente

objetivos pedagógicos. Sigaud pretendia cultivar entre os médicos e ci- rurgiões do Rio de Janeiro o hábito de publicar e a atitude de exame crí- tico do conhecimento. Todavia, na prática, o objetivo não foi alcançado. Os médicos e cirurgiões permaneceram indiferentes à proposta. A maio- ria absoluta dos trabalhos publicados consistiu de traduções feitas com zelo pelo próprio Sigaud. Na SMRJ, Sigaud foi encarregado de elaborar o plano de um novo periódico. Já calejado com o fracasso de sua primeira experiência à frente de um periódico médico no Rio de Janeiro, o higie- nista preocupou-se em montar uma estratégia que garantisse o fluxo de trabalhos para a publicação. A solução encontrada foi recorrer priorita- riamente aos relatórios preparados pelas comissões permanentes da SMRJ – Vacinas, Doenças Reinantes, Salubridade e Consultas Gratuitas – e transformá-los em matéria para a publicação. Outra medida adotada por Sigaud foi orientar seus pares a escreverem sobre temas relacionados ao cotidiano de suas atividades como clínicos – a crítica dos hospitais, a venda de remédios secretos ou mau tratamento dispensado aos escravos – assuntos que já indicavam a linha editorial nitidamente higienista que imprimiu ao Seminário de Saúde Pública.

A orientação higienista também foi a marca editorial do Diário de

Saúde. O quadro 3.1 apresenta uma classificação dos trabalhos publicados

nos dois periódicos médicos dirigidos por Sigaud – Seminário de Saúde

Pública (SSP) e Diário de Saúde (DS) – confirmando o higienismo como

a orientação cientifica principal em ambos os periódicos científicos. A higiene e a terapêutica foram os assuntos dominantes nos dois pe- riódicos. Observa-se certo equilíbrio entre os trabalhos de origem nacio- nal e os de origem internacional (traduções) versando sobre essas duas temáticas, com maioria para os nacionais em higiene e para os interna- cionais em terapêutica. Dos 115 trabalhos nacionais publicados no Diário

de Saúde, 27% deles foram de autoria do próprio Siguad. A informação

sobre a produtividade de Sigaud serve para evitar ilusões quanto à con- tribuição dos médicos brasileiros. Apesar de 40% dos trabalhos publica- dos nos dois periódicos serem de autores nacionais, isso não significou uma grande diversidade de autores.

Após o encerramento das atividades do Diário de Saúde ocorrida, em 1836, Sigaud ocupou-se da redação do tratado sobre a higiene do Brasil. Em 1843, Sigaud retornou a França com dois objetivos: verificar as pos- sibilidades de educação para uma de suas filhas (que era cega) e encontrar um editor para o livro Du Climat et des Maladies du Brésil. Statistique Mé-

dicale de cet Empire. Finalmente, em 1844, o livro foi publicado pela Fortin,

Masson et Cie Libraires de Paris (Sigaud 1844). É o ápice da carreira de Sigaud como médico e higienista. A obra foi recebida com entusiasmo pela Academia Real de Medicina de Paris e mereceu também o elogio do rei da França, Luiz Filipe I, que o condecorou com a Cruz da Ordem Real da Legião de Honra. Na volta ao Rio de Janeiro, Sigaud foi agraciado pelo jovem imperador Pedro II com o título de Cavaleiro da Ordem Im- perial do Cruzeiro, título, aliás, dado na mesma ocasião ao médico ita- liano Luiz Vicente De-Simoni, secretário perpétuo da AIM. O drama fa- miliar de ter uma filha cega o motivou a lutar pela criação de uma instituição dedicada à educação especial. Em 1854, o Imperador Pedro II o autorizou a fundar o Instituto Imperial dos Meninos Cegos. Essa foi a última iniciativa de Sigaud no campo da higiene e sua importância deve-se ao fato de ter sido responsável pela introdução no Brasil do mé- todo de alfabetização de cegos desenvolvido por Louis Braille. Os últi- mos anos de vida de Sigaud foram consumidos na direção do Instituto dos Meninos Cegos e na elaboração do Dicionário das Plantas Usuais e

Medicinais do Brasil, obra até hoje inédita. A notícia da morte de Sigaud,

Quadro 3.1 – Assunto e origem dos trabalhos publicados no SSP e DS

DS SSP DS SSP

Assunto/Origem Internacional Nacional Total

Higiene 15 23 30 59 127 Fisiologia/Anatornia 18 12 2 3 35 Cirurgia 24 22 6 11 63 Clínica 39 21 15 13 88 Terapêutica 53 33 5 10 101 Farmácia 35 4 24 5 68 Física/Química 12 5 0 0 17 Botânica/Zoologia 7 3 9 6 25 Psicologia 8 0 0 0 8 Homeopatia 2 0 0 0 2 Profissão/Ensino 12 10 24 7 53 Total 225 133 115 114 587

ocorrida em 11 de outubro de 1856, não recebeu nenhum tratamento especial da AIM. Foi bem mais tarde, em 1858, que aquela instituição «rendeu homenagem» ao higienista numa memória elaborada pelo mé- dico Antônio Félix Martins, feita em cumprimento da tarefa protocolar de relatar a vida dos 13 sócios que haviam falecido entre 1850 e 1857.4

A dedicação de Sigaud à causa higienista não lhe rendeu nenhum bene- fício material, pelo contrário. Apesar da obra e dos títulos acadêmicos e honoríficos, morreu pobre, tanto que sua família precisou contar com a caridade do Imperador para que pudesse sobreviver.

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