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Aguardente e a limpeza dos locais feridos

As práticas de higienização dos locais do corpo machucadas podem ter sido adotadas deste tempos antigos. Mas de fato não havia nenhuma ex-

plicação lógica e racional para justificar o procedimento. A compreensão da existência de micro-organismos e suas formas de ação ocorreram a partir das últimas décadas do século XIX, naquela que ficou conhecida como Era

Bacteriológica. O esforço de observar a existência e a forma de vida dos micro-organismos alterou o padrão da medicina e das estruturas de pensa- mento do que significa adoecer e como proceder a cura ou restabelecer a saúde. Mas se considerarmos que nada disso havia sido discutido no século não é difícil concluir que o cuidado com a higiene e limpeza do local in- fectado ou machucado não era a primeira providencia a ser tomada.

Ao longo da narrativa do cirurgião Luís Gomes Ferreira há algumas passagens que indicam uma preocupação em lavar o local da ferida do machucado para apresentação da fratura exposta. Um desses casos refere- se a um acidente com escravos em uma mina. Ao que tudo indica o aci- dente deve ter sido considerado de grande proporção pois Gomes Ferreira refere-se a ele como «desgraça grande» (Furtado 2002, 479). Ocorreu um desabamento de morro soterrando aproximadamente 13 escravos. O qua- dro é trágico: muitas fraturas, ossos espatifados para todos os lados, cos- telas quebradas, alguns colocando sangue pela boca, nariz e ouvido.

Diante da catástrofe Gomes Ferreira entra em ação, indicando como pensava e agia um cirurgião em pleno século XVIII nas Minas Gerais.

Trata-se de um trabalho intenso. No mínimo um dia inteiro para tratar e colocar nos eixos a situação, depois o trabalho de acompanhamento da recuperação daqueles que sobreviveram.

Inicialmente ele realiza uma classificação dos tipos de acidentados: aqueles que tinham fraturas expostas e os que só tinham fraturas; fraturas e deslocamentos dos membros superiores e inferiores para um lado e da coluna para outro. Mas para nós o interessante é o apuramento dos gastos com material e medicamentos no final do dia. De acordo com Luís Gomes Ferreira foram gastos 7 varas de pano de linho para ataduras e 8 frascos de aguardente. Pano de linha e aguardente compuseram os ma- teriais essenciais para tratar de tantos feridos.

A aguardente foi utilizada para várias funções nesse grave acidente. Um delas é bastante interessante e já podíamos inferir que este tipo de uso ocorreria: simplesmente beber a aguardente. Uma sociedade acostu- mada a conviver, produzir e utilizar a aguardente não ficará limitada ao seu uso para fins medicinais. Irão ingerir a virtuosa bebida para acalmar os nervos, confortar a dor, aquecer o corpo. Isso sem falar que é bastante possível encontrar aqueles que, entre a preparação de um ou outro me- dicamento, todos incluindo a aguardente na sua formulação, não resis- tiriam a beber tão singular ingrediente com prazer (Figueiredo 2008, 154).

Gomes Ferreira ordenou que todos os feridos no acidente tomassem um copo de aguardente, de acordo com ele «por estarem todos tremendo com frio» (Furtado 2002, 651). A única ressalva foi feita para o que lan- çava o sangue pela boca, narizes e ouvidos. A situação desse pobre coi- tado não o permitia ingerir nem a singular aguardente. Para esse foi indi- cado outra beberagem: um copo de sumo de mastruços morno com pós de açúcar e franga cozida com beldroegas (Furtado 2002, 477).

Retomemos a ideia de que havia necessidade de proteger as partes fe- ridas para acelerar o processo de cicatrização e recuperação. Gomes Fer- reira, em outra passagem, indica a necessidade de não se descobrir as cha- gas que estava sob cuidados e recuperação. De acordo com ele, nos casos de fratura e feridas «é muito preciso haver advertência, quando se curar a chaga, para se não descobrir, senão quando o medicamento estiver pronto para se alimpar e curar, a respeito de não estar exposta ao ar [...]» (Furtado 2002, 474). Neste caso observa-se uma relação entre o ar e o processo de recuperação das partes internas, abertas em chaga, que se deseja curar.

Gomes Ferreira, graças a valorizar as observações advindas da sua prá- tica, avança com explicações interessantes. Nos casos em que ocorriam fraturas expostas percebia ele que «muitas vezes sucede ficar a quebradura, ou rachadura do osso, à vista, e, se lhe der o ar, penetra mais por ela e al- tera o osso de uma e outra banda, o que logo se conhece por ficar dene- grido ou mudado de cor [...]» (Furtado 2002, 474). A mudança de cor, ao que tudo indica, demonstra estados infecciosos e degenerativos, mas nenhum desses conceitos ou termos estavam disponíveis no universo de formação do autor ou nos tratados da época.

O autor foi capaz de sistematizar o seu método, sempre respaldado pelas conclusões possíveis de serem organizadas a partir da observação cuidado da sua prática, aliadas as características singulares da aguardente e ao papel da própria natureza. Assim conclui que:

curando-se com toda a cautela que tenho dito, quando se altere e se mude de cor alguma coisa, a natureza, ajudada do remédio da aguardente, vence muitas vezes a tal corrupção, e quando a não vença, ou por pouca limpeza que há quando se cura e se expõem ao ar, ou porque, quando se cura a pri- meira vez, já estão alterados, raspar-se-á, pois a tal corrupção com alegra as vezes que forem necessária, que muita me tem sucedido vencê-las deste modo, sem lançar ao depois esquírolas; e a natureza também ajuda a sua parte, pois é a melhor mestra e a melhor agente. (Furtado 2002, 475) Em outras passagens do tratado de medicina Erário Mineral encontra- mos a utilização da aguardente para o mesmo fim: higienizar o ambiente

da ferida. Essa capacidade da aguardente é considerada uma das suas mui- tas virtudes. É o caso apresentado na utilização do unguento egipcíaco composto por pedra-ume queimada e sal amoníaco, sumo de escórdio, sumo de aliaria e arruda, vinagre esquilítico, mel. Para que o unguento pudesse ser absorvido era necessário desfazê-lo com aguardente do Reino nos locais machucados do corpo. A receita de como utilizar o ungüento demonstra a importância da aguardente do Reino para limpar as chagas que estiverem sujas:

desfazendo um bocado dele (unguento) em aguardente do Reino e mo- lhando nela, quente, fios e panos, e nas gangrenas, ou nos podres, se usará dele em sustância, untando com ele as pranchetas muito bem, lavando pri- meiro a tal parte com aguardente do Reino bem quente e pondo-lhe por cima panos molhados na mesma. (Furtado 2002, 349)

Usos diversos da aguardente para fins medicinais

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