• Nenhum resultado encontrado

A trajetória e a “escrevivência” de Conceição Evaristo

Maria da Conceição Evaristo é uma ficcionista, poetisa e pesquisadora contemporânea que milita nas esferas do feminismo e da luta pela valorização da linha afrodescendente da cultura brasileira. Sua obra tem sido também estudada pelo valor estético que alcança em todos os gêneros nos quais já publicou: conto, romance, ensaio e poesia. Seu livro de poemas intitulado Poemas da recordação e outros movimentos (2008) foi finalista do Prêmio Portugal Telecom em 2009, assim como o livro de contos Insubmissas Lágrimas de

Mulheres (2010), finalista do mesmo Prêmio, na edição de 2011. Além disso, possui textos

em antologias publicadas na Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos.

Evaristo nasceu no ano 1946 em Belo Horizonte, filha de D. Joana Josefina Evaristo e José Evaristo. A autora concluiu, em 1971, o Curso Normal (que formava professoras para o ensino fundamental) do Instituto de Educação de Minas Gerais. Ao terminar o curso, mudou para o Rio de Janeiro, prestando concurso na cidade de Niterói, onde permaneceu como professora do ensino supletivo por dez anos. Em 1976, ingressou como aluna no curso de Letras da UFRJ, continuando a estudar e trabalhar paralelamente. No mesmo ano, casou-se e teve sua única filha, Ainá Evaristo de Brito. Mais adiante, em 1996, concluiu o Mestrado em Literatura Brasileira na PUC/RJ, defendendo a dissertação Literatura

Negra: uma poética da nossa afro brasilidade. Sua pesquisa de Doutorado em Literatura

Comparada, concluída em 2011 pela Universidade Federal Fluminense, intitula-se Poemas

Malungos: cânticos irmãos.

Evaristo participou com contos e poemas de vários volumes dos Cadernos

Negros, tendo estreado no volume 13 (1990) com alguns poemas, entre eles o “Vozes

Mulheres”, do qual trataremos adiante. Trinta e um dos poemas publicados ao longo de vários volumes nos CN juntaram-se a outros para compor o único livro de poesia que a autora publicou, já mencionado anteriormente. A maior parte dos poemas desse livro trata da cultura

27

Trecho do poema “De Mãe”, In Poemas da recordação e outros movimentos. Belo Horizonte: Nandyala, 2008, p32

afrodescendente, de temas relativos à memória, diversos aspectos da identidade de gênero, inclusive trazendo referências à maternidade e à ancestralidade feminina.

Evaristo publicou dois romances: Ponciá Vicêncio (2003) e Becos da Memória (2006), ambos pela Editora Mazza, de Belo Horizonte; um livro de contos pela editora Nandyala, também de Belo Horizonte, e vários artigos relativos a questões da afrodescendência, literatura africana e afro-brasileira. O romance Ponciá Vicêncio é a obra que mais tem divulgado Evaristo como escritora; foi indicado para o Vestibular/2007 da UFMG e do CEFET de Belo Horizonte, fato que propiciou uma edição especial em formato de livro de bolso. Em novembro de 2007, Ponciá Vicêncio foi lançado em New York, em versão inglesa, pela Host Publications.

Em vários depoimentos, a autora menciona fatos da infância e adolescência que a influenciaram no desenvolvimento da sua escrita, que ela mesma nomeia de “escrevivência”, declarando que sua escrita tem inspiração e compromisso com sua existência. A autora afirma, em vários depoimentos, que o hábito de contar histórias sempre foi uma tradição das mulheres de sua família, destacando a tia Filomena e a mãe como mantenedoras dessa tradição. A transmissão de histórias pela oralidade é uma forte marca da tradição cultural africana e esta marca se manteve em nossa cultura brasileira, sobretudo nas comunidades religiosas afro-brasileiras. Como vimos anteriormente, a liderança das mulheres nas famílias e em outros setores da sociedade foi uma herança que as comunidades afrodescendentes no Brasil conseguiram manter na diáspora.

O depoimento de Conceição Evaristo (2007), num texto em que trata da origem da sua necessidade de escrever, ilustra bem como, para a autora, é artificial a fronteira que se estabelece entre o pessoal e o político; esta posição nos remete a um dos princípios fundadores dos feminismos: “o pessoal é político”. Tomo aqui o sentido aristotélico (1997) do homem como ser político, que vive agregado a outros cidadãos a comunidade que habita, com intenção de realizar um objetivo, portanto, afetando e sendo afetado pelas ações individuais e coletivas. No caso de Evaristo, percebo claramente que a experiência familiar da infância a faz pensar na escrita não só como criação, mas como uma possibilidade de interferência modificadora do mundo ao seu redor, no sentido aristotélico da reciprocidade da ação política. Como exemplos de influência na sua decisão de escrever, a escritora relata alguns episódios vividos com a mãe, a qual, embora sem instrução escolar, transmitiu a noção da importância dos registros escritos na imaginação da filha. O primeiro exemplo de que trata é o que fazia sua mãe quando desenhava no chão um sol, numa espécie de desejo de influenciar o clima, fazendo com que o sol surgisse no céu, já que o trabalho de lavagem de roupas

dependia desta ocorrência. O segundo exemplo é a anotação das roupas entregues, o que se configurava como um contrato entre patroa e a lavadeira. Evaristo comenta como esse contrato estabelecia uma tensão em sua mãe, por receio de que se tivesse perdido ou trocado alguma peça de roupa. Essas duas experiências deixaram nela, desde cedo, a certeza sobre a importância do registro escrito. O último exemplo refere-se ao diário escrito pela mãe, como notas avulsas e esparsas de acontecimentos da vida que corria; ficou marcado como a possibilidade de integrar o lírico e o vivido também no que se escreve. Por meio dessas três escritas, a menina e, posteriormente, a adolescente, já ensaiando textos mais elaborados, compreende a escrita como um movimento de criação transformadora, inserção no mundo prático e catarse. Evaristo comenta:

E retomando a imagem da escrita diferencial de minha mãe, que surge marcada por um comprometimento de traços e corpo, (o dela e nossos) e ainda a um de diário escrito por ela, volto ao gesto em que ela escrevia o sol na terra e imponho a mim mesma uma pergunta. O que levaria determinadas mulheres, nascidas e criadas em ambientes não letrados e, quando muito, semialfabetizados, a romperem com a passividade da leitura e buscarem o movimento da escrita? Tento responder. Talvez, estas mulheres (como eu) tenham percebido que se o ato de ler oferece a apreensão do mundo, o de escrever ultrapassa os limites de uma percepção da vida. Escrever pressupõe um dinamismo próprio do sujeito da escrita, proporcionando-lhe a sua autoinscrição no interior do mundo. E, em se tratando de um ato empreendido por mulheres negras, que historicamente transitam por espaços culturais diferenciados dos lugares ocupados pela cultura das elites, escrever adquire um sentido de insubordinação (EVARISTO, 2007, p. 21).

Compreendo como feminista a atitude dessas mulheres das quais trata Evaristo, entre as quais ela se inclui, que teriam lhe inspirado o desejo de escrever, já que lutavam por se inscrever num outro lugar, diferente daquele que lhes era sugerido por várias articulações opressoras. É importante perceber o quanto essa atitude em prol de percepções e sentimentos positivos se relaciona com um modo de escrever, desde o princípio marcado pelo desejo de se afirmar com voz própria, diversa da situação subalterna que a vida parecia querer-lhe impor.

A atitude de determinação dessas mulheres simples que mudaram suas vidas, vencendo as dificuldades sociais e os preconceitos de raça e gênero, é exemplo decisivo para suas filhas. Tal atitude contribui para que as novas gerações de mulheres afro-brasileiras consigam alcançar novo patamar educacional e social, superando as expectativas de um lugar social estabelecido pelo padrão patriarcal racista. Ciente disso, o movimento feminista negro tem como um dos seus princípios a valorização do relato da experiência dessas mulheres negras, sobretudo as que chefiam famílias ou possuem liderança numa comunidade. Como afirma Luiza Bairros, socióloga e Ministra-chefe da Secretaria de Políticas da Promoção da

Igualdade Racial, é preciso “considerar as experiências não acadêmicas de mulheres negras (mães, líderes comunitárias, religiosas) como relatos válidos da história”.(1995, p 458)

No caso de Evaristo, que vem de uma família de mulheres fortes e solidárias que muitas vezes chefiam suas famílias, a valorização da maternidade como uma expressão do cuidado e da transmissão de valores positivos, parece ser inspiração constante. Na sua obra, a maternidade, a amizade entre mulheres são temas que aparecem em muitos momentos; entretanto, isso não impede a escritora de tematizar situações complexas que envolvem essa experiência na vida das mulheres, como exemplos de mães que desistem de seus filhos, de mulheres que decidem não serem mães, entre outras questões.

Um poema em especial trata de seu respeito às lições e aos cuidados da mãe como importantes em sua vida, é o poema “De mãe”28. Logo nos primeiros versos, a voz lírica29 diz

“O cuidado de minha poesia / aprendi foi de mãe,/ mulher de pôr reparo nas coisas,/ e de assuntar a vida. /A brandura de minha fala / na violência de meus ditos /ganhei de mãe,/ mulher prenhe de dizeres, /fecundados na boca do mundo.” Fica claro que a voz lírica apresenta-nos uma mãe que, apesar de não ter passado pelos bancos escolares, já que adquiriu seu saber na experiência do que viveu, atenta ao que via e ouvia, soube ensinar a filha a conter seus ímpetos, talvez de indignação pelas injustiças que presenciava. Pelo que nos diz a voz lírica, a mãe exemplifica uma forma não agressiva de reação às adversidades, que pode ter inspirado a autora a transmutar sua indignação em palavra poética. Ainda que, é claro, o apuro do texto seja resultado da educação formal, o direcionamento da indignação para a linguagem e seu potencial expressivo deriva do exemplo dessa mãe que demonstrava brandura nas reações. Isso, aliado ao talento literário inegável fez com que Evaristo se tornasse poetisa e ficcionista atenta aos temas que abordam a vida afrodescendente.

Na segunda estrofe deste poema, a voz lírica compara a mãe a um orixá materno (Yabá), o que é uma referência à sua ligação com a ancestralidade africana e, portanto, talvez a sinalização de que essa mãe lidava de forma positiva com a cultura afrodescendente e também destacando a capacidade de reverter situações difíceis, sempre encorajando os filhos: “Foi de mãe todo o meu tesouro / veio dela todo o meu ganho /mulher de sapiência, yabá, / do fogo tirava água / do pranto criava consolo.” Mais adiante, a voz lírica refere-se às orientações de sua mãe no sentido de precaver-se contra os perigos, de não tomar decisões ou se expor de boa fé sem observar bem as consequências, talvez numa advertência relativa à vulnerabilidade

28 Todos os poemas de Conceição Evaristo que serão analisados estão no livro Poemas de recordação e

outros movimentos(2008), da ed. Nandyala.

29

Usaremos voz lírica em lugar do tradicional eu-lírico por compreender que, nos poemas analisados, o eu é feminino.

do afrodescendente ao preconceito que o atinge: “Foi de mãe esse meio riso/ dado para esconder/ alegria inteira/ e essa fé desconfiada/ pois, quando se anda descalço/ cada dedo olha a estrada.”

Em seguida, a voz lírica trata de aprendizados mais dolorosos, numa referência à observação da morte e do sofrimento humano, mostrando que a mãe lhe apresentou também essa lição de forma delicada, encorajando-a diante das adversidades, preparando melhor seus filhos para os combates que viriam: “Foi mãe que me fez sentir/ as flores amassadas/ debaixo das pedras/ os corpos vazios/ rente às calçadas”. No final, o poema ratifica que foi a mãe a inspiradora da arte da escrita, reconhecendo outra vez a sabedoria materna como fundamental na condução de sua vida. “...insisto, foi ela/ a fazer da palavra / artifício/ arte e ofício / do meu canto.”

Não apenas quando se refere à memória que uma filha guarda de sua mãe, mas em muitas outras circunstâncias que envolvem a experiência da maternidade, a narrativa e a poética de Conceição Evaristo demonstram reflexão sobre a importância e a complexidade dessa experiência na vida das mulheres. Essa ocorrência é rara na ficção tradicional, onde este tema, de valor humano tão significativo, é abordado de forma muito limitada. Ao escolher representar personagens mães em várias situações, Evaristo revela sua preocupação com as dificuldades decorrentes da experiência diversificada sobre ser mãe, sobretudo quando estão presentes as opressões de gênero e raça simultaneamente.

A percepção das tensões que a experiência da maternidade pode acumular é, no caso da autora, enriquecida pelo lugar específico de observação que tiveram as mulheres negras no contexto social brasileiro. Como declarou30 Luiza Bairros, a mulher negra ocupou sempre um lugar específico na sociedade brasileira no que diz respeito à possibilidade de percepção dos mecanismos de opressão de gênero, classe e raça, pois esteve quase sempre em lugares sociais invisíveis, em contato direto com os conflitos que envolviam as tensões relativas a essas diferenças, tanto nos ambientes domésticos, quanto nos públicos.

Na posição de trabalhadoras domésticas ou de serviços gerais, quase sempre ignoradas, puderam observar conflitos envolvendo questões de gênero, classe e raça, mesmo quando não faziam diretamente parte deles; com relação aos conflitos de gênero que envolviam os membros da família entre si, por exemplo, elas presenciavam de uma posição única, já que eram quase sempre ignoradas como expectadoras e podiam perceber, sem tomar parte diretamente, esses conflitos. Também a segurança doméstica permitia que membros da

30

A declaração foi feita em entrevista concedida ao ator Lázaro Ramos no programa ‘Espelho’, do canal Brasil, no dia 08/07/2013

família expressassem seus preconceitos de classe e raça abertamente, sem preocupações com censura. Por tudo isso, Bairros ressalta que as mulheres negras desenvolveram, ao longo do tempo, uma percepção privilegiada dessa sociedade, sem se deixar enganar por falsas aparências em relacionamentos pessoais ou profissionais aparentemente cordiais que, muitas vezes, escondiam situações de opressão e violência.

A representação de personagens mães em situações sociais difíceis e vivendo conflitos familiares surge nos textos de Evaristo como resultado dessa percepção não idealizada da vida das mulheres e suas experiências maternais. Na ficção da autora, um dos elementos que seduz à leitura é a construção de personagens e imagens marcantes. No caso das personagens, destacam-se a força das mulheres, a capacidade e atenção solidária dessas mulheres entre si; no caso das imagens, destaca-se a importância dos sentidos metafóricos que as personagens mulheres podem adquirir dentro dos enredos, conforme veremos a seguir.