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Literatura e Afrodescendência: nossa imaginação em outras cores

Nos discursos que descrevem a realidade brasileira, muito se fala da nossa multifacetada face sociocultural. Sabemos que, embora ainda tenhamos espaços regionais onde as influências culturais e étnicas mais específicas, como é o caso da concentração da descendência europeia no sul ou a marcante presença indígena no norte, é a mesclagem de diversas origens que mais nos caracterizam. Na sua última obra sobre o povo brasileiro, Darcy Ribeiro afirma que:

Na confluência de tantas e tão variadas matrizes formadoras, apesar de sobreviverem na fisionomia somática e no espírito dos brasileiros os signos da sua múltipla ancestralidade, não se diferenciam em antagônicas minorias raciais, culturais ou regionais próprias e disputantes de autonomia perante a nação (RIBEIRO,1995, p. 20).

No entanto, essa nossa “múltipla ancestralidade” possui uma representação bastante limitada quando a buscamos no relato dos principais eventos da nossa história oficial, assim como na nossa produção cultural mais conhecida. Na literatura, por exemplo, essa representação é quase totalmente branca, tanto no que diz respeito a ocorrência de personagens, quanto à presença de autores. Se considerarmos que uma das possibilidades dos aspectos do estudo da literatura é observar a diversidade que uma cultura escrita pode apresentar ao longo do tempo, é esperado que esta cultura preserve, como um sistema representativo, a essa variedade como uma das suas marcas.

A literatura brasileira, concebida como um sistema nos moldes de Antônio Cândido (1975) começou em meados do século XVIII e definiu-se mais nitidamente em princípios do século XX. Para Cândido, são três os elementos básicos para a articulação de um sistema literário: um conjunto de autores, mais ou menos conscientes do papel que desempenham, um conjunto de receptores e um meio que se traduza em mecanismo transmissor, composto de linguagem e estilo; além disso, faz-se necessário que se crie uma “tradição de transmissão”, ou seja, que os escritores de uma geração sejam fomentadores da próxima geração, seja para negação ou reafirmação de padrões. Na visão de Cândido:

Sem esta tradição não há literatura como elemento de civilização. Quando a atividade dos escritores de um dado período se integra em tal sistema, ocorre outro elemento decisivo: a formação da continuidade literária. [...] Integrando em dado momento um sistema articulado e, ao influir sobre a elaboração de outras, formando, no tempo, uma tradição (CÂNDIDO, 1975, p. 24).

Embora ao analisar a formação da literatura brasileira, Cândido, assim como seus pares, ignore a produção já existente de uma literatura de autoria feminina, conforme

comprovou a pesquisa emprendida a partir do estímulo da prof Zahidé Muzart e publicado pela editora Mulheres, a conceituação que o pesquisador faz a respeito do sistema literário é importante para compreendermos a lacuna existente na representação social da nossa literatura. Seguindo o princípio de Cândido, percebemos o quanto é importante, na formação literária de uma nação, que exista uma variedade de formas (estruturas narrativas, poéticas, temas e personagens) capazes de expressar essa cultura e inspirar modelos que serão reelaborados pelas seguintes gerações de escritores e continuarão sua representação cultural no mundo. O Brasil começa a formar essa representação em plena ideologia romântica, ao tempo em que também formava as bases da concepção inicial de identidade-nação, já que foi o período em que se forjou nossa independência.

Naquele período, as personagens heróis ou protagonistas, representantes das virtudes que se queria cultivar, eram configurados a partir dos modelos europeus em prosa e verso. Mesmo quando se quis representar o protótipo do ser brasileiro, através do índio ou das “moreninhas”, talhou-se o corpo moreno na alma europeia. O personagem negro e mulato, quando havia, correspondia ao lugar da subalternidade ou da marginalidade. Mesmo no decorrer do século XX, com o avanço e diversidade das narrativas na nossa literatura, quando se buscam os personagens afrodescendentes, esses modelos permaneceram predominantes.

Pensando na representação do coletivo da população afro-brasileira na literatura brasileira, podemos observar dois aspectos: a do/a autor/a e de personagens representados. A partir dessas categorias, podemos avaliar o quanto se faz presente a autoria de ficção que parte do lugar social da afrodescendência, quanto e de que forma esta comunidade está representada. Para essa avaliação, recorrei à pesquisa empreendida por Regina Dalcastagnè e o grupo de pesquisa em literatura brasileira contemporânea, por ela coordenado na Universidade de Brasília. Nesse trabalho, o grupo realizou a leitura de todos os romances publicados entre 1990 e 2004 pelas três maiores editoras brasileiras: Record, Companhia das Letras e Rocco. Depois da leitura dos romances publicados, o grupo analisou os dados colhidos, considerando as categorias de autoria e configuração de personagens, observando suas identidades de gênero, raça, classe e ocupação.

A equipe constatou que, entre os autores publicados, 72% são homens, comprovando a clara desvantagem das escritoras no mercado editorial, representadas em faixa menor que 30%. Entre homens e mulheres publicados, 93% são brancos, demonstrando a quase exclusão dos autores afro-brasileiros das editoras de maior circulação no país; isto implica a baixa ocupação de espaço nas livrarias de todo o país da produção literária desse grupo, e, consequentemente, a pequena atenção despertada na escolha de leitores ou mesmo

na pesquisa acadêmica. Se pensarmos no leitor comum, que se forma nas escolas de ensino fundamental e médio e seus professores, o desconhecimento é ainda maior.

Considerando a definição dada por Cândido sobre o sistema literário de uma nação, podemos concluir que a pesquisa de Dalcastagnè registra o retrato de uma representação fortemente inadequada. Lembro aqui também a ideia trazida por Hall (1998), com relação ao lugar de fala de cada um, antes mesmo de saber como se configuram as personagens negras nas tramas narrativas desta literatura, podemos concluir que há aí uma deficiência de sérias consequências, pois há um grande grupo de autores que pertencem ao mesmo lugar de fala (homem e branco), enquanto outros grupos ficam sub-representados (mulheres e não brancos de qualquer sexo).

Dalcastagnè, colaborando com as conclusões de Hall sobre a influência do lugar de fala de cada uma em qualquer atividade que exerça, nas suas conclusões, nos lembra que a criação de enredos e personagens não se faz isenta dos conceitos e preconceitos do criador, ou seja, o olhar localizado traz naturalmente para o texto criado os reflexos de sua experiência. Essa observação provavelmente explica o que se verifica com relação à distribuição das personagens brancas e negras nos enredos, pois se constata a irrisória participação do grupo afrodescendente.

Quase 80% das personagens nos romances analisados são brancas e quando se isolam protagonistas e narradores, a porcentagem de personagens negras diminui. Observando esses dados sob a perspectiva das obras em termos quantitativos, os dados dizem que temos que em 56% dos romances há apenas personagens brancas e em apenas 1,6% das obras não há personagens brancas. Em apenas dois dos 258 romances lidos nesta pesquisa, estão reunidos 20% da totalidade dos personagens negros.

Na literatura produzida por essa perspectiva limitada, fica confirmada a manutenção do preconceito racial pela repetição dos estereótipos. Ao observarmos os modelos criados na literatura brasileira contemporânea mais prestigiada, publicada pelas grandes editoras, o painel torna-se mais preocupante, pois 20,4% das personagens negras estão relacionadas a algum tipo de delito, 12% são empregadas domésticas, 9,2% são escravas e 8,2% são profissionais do sexo. A autora também alerta para a quase inexistência de obras que retratem a opressão racial no cotidiano da sociedade, o que reforça o mito da democracia racial brasileira, considerado pelos estudiosos das questões raciais no Brasil como um dos discursos mais danosos à população afrodescendente, já que camufla a ação racista e seus efeitos tanto a nível social, quanto psicológico.

Pensando mais uma vez na formação de autores em um sistema literário nos moldes sugeridos por Cândido, sabe-se que os modelos inspiradores de personagens são tomados sobretudo dentro da tradição literária já construída, conforme antes comentado. A quase ausência de modelos apropriados gera uma situação que tende a continuar, caso não se busque abrir o leque das publicações para um universo maior de representações e assim alterar o padrão limitado. Em um artigo publicado na revista CRAGOATÁ, posterior à pesquisa citada, quando, além dos dados já mencionados, Dalcastagnè analisa a configuração dos personagens negros em romances contemporâneos, a pesquisadora alerta para o fato de que todo criador precisa buscar seus modelos nas representações discursivas que existem na cultura.

Não é diferente com um escritor, que precisa buscar seus modelos em representações discursivas já estabelecidas, mesmo que seja para se contrapor a elas. Por isso, a ausência de personagens negras na literatura não é apenas um problema político, mas também um problema estético, uma vez que implica na redução da gama de possibilidades de representação (DALCASTAGNÈ, 2008, p. 208).

É importante ainda salientar que a pesquisa de Dalcastagnè não propõe que a literatura seja um retrato estatístico da realidade social, mas nos alerta com relação à danosa ausência de representação de grupos sociais inteiros e, portanto, da falta de muitas perspectivas sociais possíveis, o que empobrece nossa formação cultural. Quanto à recorrência e divulgação de personagens afro-brasileiras representando situações sociais de subalternidade e marginalização, sabe-se do efeito que isso produz no imaginário social e como interfere na formação da autoestima do afro-brasileiro. Segundo Fanon (2008) e outros estudiosos interessados na construção da identidade e autoestima dos afrodescendentes, a introjeção de estereótipos negativos por parte das vítimas de racismo é quase inevitável, o que dificulta a mobilidade social desta parte da população.

Com relação à interface gênero/raça, a pesquisa revela que, das 1245 personagens femininas analisadas, apenas 6% são mulheres não brancas. Também se observa que há grande diferença entre a criação das personagens femininas imaginadas por homens ou mulheres. As escritoras constroem essas personagens de formas variadas, ou seja, nos romances de autoria feminina, os pesquisadores encontraram meninas, mulheres jovens, maduras e idosas, em situações profissionais diversas, ora sozinhas, ora envolvidas em algum relacionamento, nem sempre feliz; já nos romances de autoria masculina, a pesquisa evidenciou que, na sua ampla maioria, as personagens femininas são jovens adultas (tem entre 18 e 25 anos), esguias, brancas, cabelos longos, bonitas e sempre interessadas num relacionamento erótico-amoroso. Mais uma vez, portanto, os resultados da pesquisa apontam

para o problema do excesso de imagens estereotipadas nas personagens com relação aos padrões de gênero, assim como em relação à raça.

A pesquisa da literatura produzida pelos afrodescendentes no Brasil busca hoje estabelecer outra lógica na compreensão da contribuição dos afrodescendentes na construção da cultura brasileira. Essa nova compreensão busca trazer à tona outras imagens, não estereotipadas, de homens e mulheres afro-brasileiros/as. Para tanto, é fundamental a contribuição dos escritores e escritoras que, por viverem a experiência de pertencimento a esse grupo social, podem reelaborar os dados culturais a partir de uma perspectiva bastante diferente daquela que já conhecemos em nossa tradição literária, construindo outras imagens identitárias.

Os vários estudos que pensaram nossa formação cultural até as primeiras décadas do século XX tratavam sempre da hibridização da nossa cultura, da mestiçagem, sob a perspectiva ainda positivista desenvolvida no século XIX, ou seja, o conceito de deteriorização da cultura dita superior (europeia) no contato com outras inferiores, leia-se quaisquer outra de origem não europeia; daí a formulação de modelos de personagens que continham principalmente os elementos da cultura julgada superior ou que reforçavam ideias negativas a respeito das outras. Na primeira metade do século XX, as ideias racistas começaram a ser questionadas, mas só na segunda metade, já no ambiente cultural do mundo contemporâneo, tanto no plano da ciência, como nos estudos culturais, pudemos avaliar melhor o custo do prejuízo social e cultural resultantes do jogo de relações entre colonizador/colonizado.

Compreendemos hoje que a hibridização cultural, alardeada no nosso país como uma vitória da chamada democracia racial, não se efetiva se não houver a participação real e ampla da fala do colonizado subvertendo e redimensionando fatos históricos que envolvam sua presença. No Brasil, estaríamos falando de uma recomposição do quadro cultural a partir também de uma nova visão da nossa história, revendo a posição de atores antes subjugados, como o indígena e o negro. Para Homi Bhabha (1998), a hibridização seria “a intervenção do colonizado no exercício da autoridade colonial, uma reversão dos efeitos de desapropriação colonial” (p. 162) (grifos meus).

Longe de negar ou rejeitar a hibridização da sua ascendência, os que estudam ou produzem cultura numa perspectiva afro-brasileira, expressam consciência de terem sido formados num espaço (onde vivem) de trânsito de diferentes culturas, em que uma cultura eurocêntrica se quer absoluta e universal, depreciando as outras componentes desse espaço. A opção de, tendo a experiência da afrodescendência, escolher lidar com uma produção textual

que se quer afro, indica decisão de expor uma perspectiva diversa daquela apresentada pela tradição eurocêntrica, destacando os aspectos sociais e culturais que envolvem os afro- brasileiros.

A questão é delicada desde a sua nomenclatura (negra/ afro-brasileira/ afrodescendente) até a discussão sobre quais elementos a caracterizariam. Tais questões não encontram consenso, talvez porque, como afirma o pesquisador Eduardo Assis Duarte (2008), seja “um conceito em construção”. Precisamos, pois, adotar alguma dentre as diversas posições teóricas a esse respeito para seguirmos adiante. Entre nós, alguns teóricos trazem questões bastante pertinentes ao debate e têm sido referência constante nos grupos de pesquisa que se dedicam ao assunto nas universidades brasileiras. Aqui adotaremos a nomenclatura de literatura afro-brasileira, porque meu interesse é estudar a vertente dos escritores afrodescendentes que pertencem à literatura brasileira e que tematizam nossa realidade.

Zilá Bernd (1987) estabelece uma das primeiras reflexões sobre o que começou a ser denominado literatura negra no Brasil, quando os escritores afro-brasileiros organizaram- se e passaram a assumir uma postura diferenciada na divulgação dos textos literários produzidos. Bernd posiciona-se sobre uma questão que muitas vezes é usada como argumento contrário à proposta de estudo e divulgação dessa produção literária: a relação entre raça e texto. Recorrendo a Levi-Strauss, ela lembra um conceito básico: raça e cultura, embora devam ser pensados juntos, não têm relação direta, ou seja, o fato de existirem mais culturas que raças indica que as culturas não são determinadas por configurações fisiológicas, e sim que dependem da combinação de circunstâncias geográficas, sociais, históricas e outras.

Para Bernd, a literatura que começava a se afirmar a partir de um mesmo passado histórico relacionado a origem afrodescendente não se explicaria simplesmente pela “epidermização do texto”, ou seja, o conjunto de textos que se chamava então de literatura negra relacionava-se ao que, segundo Bernd, Leon François Hoffmann chamou de “articulação de uma reivindicação”: os escritores partilham de uma forma comum de olhar e expressar a realidade, forma essa relacionada ao fato histórico de serem afrodescendentes, de perceberem as marcas de uma escravização ancestral e de sentirem a necessidade do reconhecimento da sua contribuição cultural e política no seio do todo que formamos.

No caso das escritoras afro-brasileiras, essa postura em comum pode ser compreendida a partir dos elementos configuradores do que algumas militantes chamam de ‘feminismo negro’ (embora também não haja consenso com relação ao termo), que acrescenta às reivindicações relativas à questão de opressão de gênero, outras que são pertinentes à situação das mulheres afrodescendentes em particular. O fato é que a interseção entre essas

reivindicações configura elementos presentes nos textos publicados pelas autoras que estudaremos. Quando publica seu estudo, ainda nos anos oitenta do século XX, Bernd já demonstra preocupação com o pouco interesse demonstrado pela academia com relação à análise da produção literária dos/das escritores/as afro-brasileiros/as. Ainda hoje partilhamos a mesma preocupação, pois, embora o estudo e debate sobre a afrodescendência tenham avançado muito, sobretudo nas áreas da sociologia, antropologia e história, há muito o que fazer na área literária, como demonstra a pesquisa de Dalcastagnè. Mesmo assim, a pesquisadora destaca os esforços no sentido de ampliar esses estudos, citando algumas publicações e apontando a dificuldade de se reunir material para pesquisa e leitura, devido aos padrões de editoração e distribuição desses autores, ou seja, devido a estarem esses autores fora das editoras mais prestigiadas e de melhor distribuição. A maior parte dos estudos citados por Bernd versa sobre a imagem do negro na obra de escritores consagrados na historiografia literária brasileira ou sobre questões relativas ao conceito da negritude ou identidade negra na literatura e não sobre as obras de autores afro-brasileiros contemporâneos, menos ainda sobre autoras afro-brasileiras.

Em pesquisas mais recentes, como as do professor Eduardo de Assis Duarte, criador do site Literafro11, além de diversas publicações importantes que o destacam como um dos mais importantes pesquisadores do assunto, encontramos significativos estudos sobre o estilo e produção dos autores afro-brasileiros, partindo, sobretudo, daqueles que iniciaram a divulgação de seus textos nos CN. No site, que é resultado do seu grupo de pesquisa, Duarte reúne artigos de vários pesquisadores que têm se dedicado à análise dessa produção, além de textos dos mais destacados autores da emergente literatura afro-brasileira.

Segundo Duarte (2008), embora o conceito ainda esteja em construção, podem-se destacar algumas constantes discursivas na caracterização da literatura afrodescendente brasileira, quais sejam: a autoria, compreendendo a complexidade que envolve tal categoria num país com a nossa história; a temática, compreendendo aqui não apenas o negro como centralidade temática, mas um todo que envolve o universo cultural, histórico e social que os descendentes africanos viveram e vivem no Brasil; o ponto de vista, que vem a ser uma perspectiva coerente com a revisão histórica e cultural, ou seja, uma voz que é e se quer negra e, por fim, a expectativa de uma recepção que se identifica, ou seja, aponta para a formação de um público leitor específico, que antes parecia invisibilizado por quase toda a produção literária brasileira. O pesquisador alerta ainda para o fato de que esses elementos isolados não

caracterizariam o pertencimento à literatura afro-brasileira e sim a combinação, a interação deles é que daria a configuração desta produção.

Florentina Souza (2005) analisou os objetivos, a história e o conteúdo, bem como o ponto de vista político e literário da produção de autores negros no Brasil nas últimas décadas do século XX, publicada nos CN e no Jornal do Movimento Negro Unificado (MNU). Segundo sua pesquisa, comum aos textos dos dois grupos de publicações, com autores de diferentes linguagens e estilos, é que ambos terminam por compor “um mosaico que tenta sustentar sua identidade no propósito comum de posicionar-se contra o racismo” (p. 14).

Souza alerta para o fato de que essas publicações começam entre 1978 e 1981 e que, neste período, desenvolvia-se um diálogo estreito entre literatura e marxismo. Logo no início da década seguinte esse panorama de influência modifica-se e começa a notar-se no pensamento contemporâneo uma maior compreensão da identidade como uma categoria móvel, construída no interior da nossa vida cultural.

A pesquisadora cita como sintoma dessa percepção, o acréscimo do subtítulo “contos/poemas afro-brasileiros” a partir de 1995 nos CN e interpreta como estratégica essa decisão de tornar clara a origem histórica dos autores ali reunidos. Ao enfatizar essa origem, os autores declaram-se pertencentes ao grupo que, sendo afrodescendente, resolve discutir, na sua produção cultural, o lugar de pertencimento de um ponto de vista diverso da tradição em que foram educados. Para esse grupo, a revisão da história de seus ancestrais africanos e a revalorização da voz e da imagem do afro-brasileiro são temas sempre presentes naquilo que elaboram como arte. Os autores reunidos nos CN compreendem como motivo inspirador da produção literária, a percepção e denúncia de situações nocivas à cidadania, saúde e bem estar emocional/físico da população afrodescendente; combatem, portanto, em seus enredos ou poemas, a invisibilidade e os estereótipos que envolvem os afrodescendentes na nossa cultura.

Segundo Souza, a autodefinição de negros brasileiros que participam da produção cultural no nosso país é importante também porque um dos mecanismos de invisibilização da população afrodescendente vem da tradição daquilo que os estudiosos do assunto chama de mecanismo de “branqueamento” dos afro-brasileiros que ascendem a posições de poder e/ou