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Padecer no paraíso: algumas faces da maternidade na história brasileira

Para melhor compreender de que maneira se organizou o pensamento e os padrões de comportamento na cultura brasileira sobre a maternidade, devemos buscar o que nos diz a pesquisa sobre a história das mulheres no Brasil, começando pelo período colonial. Ao estudar esse período, é importante observar que a vida social que aqui se tentava organizar buscava atender a um projeto expansionista e exploratório regido por Portugal, visando

povoar a colônia com pessoas que representassem a força trabalhadora necessária e que ocupassem estrategicamente este vasto território.

As mulheres que aqui viveram nessa época precisavam desempenhar um papel fundamental neste cenário; estiveram sempre atarefadas com a sobrevivência de sua prole e, muitas vezes, precisavam também suprir a ausências dos seus pares (maridos ou amantes ocasionais), mais dedicados às viagens exploratórias, em busca de supostos tesouros, do que às várias famílias que eles iam gerando pelo caminho. Além disso, essas mulheres enfrentavam o jugo de uma moral importada da Metrópole, vigiadas pelas autoridades eclesiásticas aqui instaladas, que lhes exigiam a virtude das santas, a coragem das guerreiras e a força de operários. Ainda assim, no espaço confinado e controlado onde viveram, há exemplos de surpreendentes estratégias de superação dos padrões ou expectativas impostas às mulheres, enquanto viviam suas experiências de maternidades.

No estudo que faz sobre a condição feminina no período colonial brasileiro, a historiadora brasileira Mary Del Priore demonstra como os porta-vozes da Metrópole -compreenda-se a representação do Estado português e da igreja na sua luta contra a reforma protestante - se empenharam em preparar mulheres, doutrinando toda a sociedade para a importância de torná-las mães cristãs e obedientes, dentro do modelo que atendesse ao objetivo de povoar a terra conquistada e manter a ordem colonial. Não era suficiente que as mulheres parissem muitos filhos, deviam também exercer o papel de mães dentro de determinados padrões. Por isso:

O processo de adestramento pelo qual passaram as mulheres coloniais foi acionado por meios de dois musculosos instrumentos de ação: o primeiro, um discurso sobre padrões ideais de comportamento, importado da Metrópole, teve nos moralistas, pregadores e confessores seus mais eloquentes porta-vozes; [...] o outro instrumento foi o discurso normativo médico, ou ‘phisico’, sobre o funcionamento do corpo feminino.[...] Apenas vazio de prazeres físicos o corpo feminino se mostraria dentro da normalidade pretendida pela medicina, e assim, oco, se revelaria eficiente, útil e fecundo(PRIORE, 2008, p. 27).

A normatização do corpo e da alma da mulher para atender ao projeto colonial impõe um roteiro de vida, propondo sanções e demandas que obrigam seu cumprimento. Contrariando essa ordem, porém, a mulher da colônia produziu suas pequenas vitórias; por exemplo, a partir da aliança com filhos e outras mulheres, conseguia alguma participação no poder, gerenciando negócios na ausência constante ou permanente dos homens. Essa liderança se fazia a partir do comando do chamado “fogo doméstico”, ou seja, da gestão do ambiente doméstico e de todos os que ali habitavam, abandonado pelos homens no seu afã bandeirante de construir e explorar a terra colonial em risco constante. Dessa forma, conseguiam driblar a

precariedade e jugo sob o qual viviam em casamentos na vida colonial, administrando suas vidas de forma corajosa e razoavelmente independente, solidarizando-se a outras e a seus filhos:

A gestão e administração dessa microcomunidade familiar acabou por reforçar a matrifocalidade já latente na sincrética sociedade colonial, bem como destacou o poder informal da maternidade, pondo em xeque a falsa igualdade pretendida nos textos eclesiásticos, que ordenavam a submissão da mulher ao marido (2008, p. 48).

É interessante notar que a observação feita pela historiadora refere-se à situação de mulheres livres, brancas, mestiças, negras e indígenas em situação de casamento oficial ou concubinato; graças à necessidade de constante mobilidade espacial dos homens na colônia, em franca expansão e em permanente estado de defesa, essas mulheres ficavam muito tempo sozinhas e tornavam-se responsáveis pela ordem financeira, educação e toda sorte de decisões que envolvessem a família. Muitas vezes, elas criavam uma rede familiar que envolvia seus filhos, às vezes os filhos bastardos de seus maridos, as irmãs e comadres em situação semelhante, formando uma espécie de rede familiar de características matrifocais. Essa situação de certa independência e autoridade feminina também vai ocorrer entre as escravas e ex- escravas, em período posterior, por motivos diferentes e, como será visto, termina por configurar um modelo de família brasileira, como analisaremos neste trabalho.

Priore conclui que o conceito de identidade feminina no Brasil se constituiu a partir da maternidade, desenvolvendo-se num jogo de ganhos e perdas, encontrando espaço para alguma autonomia ao passo em que cedia à construção de um estereótipo que o aprisionava. O preço, desse moderado poder, a partir da administração do chamado “fogo doméstico”, foi o reforço do modelo da “santa-mãezinha”, que se alimentou da rejeição violenta à mulher que escapasse desse arquétipo. Claro que a situação vivida pelas mulheres, mesmo considerando suas estratégias de superação, foi, sobretudo, adversa por largo período da nossa história.

Ao buscar outras pesquisas sobre a história das mulheres no Brasil nesse período, uma das questões que surgem é o número elevado de abandono de recém-nascidos. Segundo o historiador Renato Venâncio (2011), durante o período colonial, o abandono de crianças recém-nascidas tornou-se tão comum que gerou diversos empreendimentos de acolhimento de enjeitados por jesuítas, freiras e criaram-se incentivos financeiros para a distribuição dos filhos de criação.

Ao longo dos séculos XVII e XVIII, o aumento da população nos centros portuários brasileiros, associado a uma precária situação estrutural de mercado de trabalho

para atender à explosão das cidades, fez crescer muito o número de pobres, gerando grande número de filhos enjeitados. Nas áreas mais rurais, as crianças abandonadas eram frequentemente transformadas em agregados. Porém, nas cidades, surge o que se passou a chamar de “abandono selvagem”, ou seja, filhos deixados ao relento, com ou sem algum apelo de ajuda.

As câmaras de deputados organizaram-se no Rio de Janeiro e em Salvador para pagar um auxílio àqueles membros da comunidade que aceitassem cuidar do enjeitado, desde que comprovado não ser seu filho e referendado pelo pároco local. Havia também o registro de criadeiras profissionais, que ganhavam a vida ou aumentavam sua renda tomando conta dos enjeitados com o auxílio e o aval dos membros da comissão da câmara. As chamadas criadeiras ou seja, mães de aluguel, contratadas pelas câmaras ou Santas Casas, podiam ser mulheres livres ou mesmo escravas, desde que seu dono assinasse um termo de compromisso junto à instituição responsável por contratá-la.

Importante destacar que outro motivo levantado pelo historiador para o abandono de crianças era a condenação moral que se fazia às mulheres que tivessem filhos fora das fronteiras do casamento. Essas mulheres tinham seus filhos em segredo e os abandonavam para escapar da condenação social, pois reconhecer publicamente um filho ilegítimo representava definitivo constrangimento e até banimento social. Reforçando essa interpretação, menciona-se que a maioria dos “expostos”, crianças abandonadas nas chamadas rodas da misericórdia que existiam nas portas dos conventos em Salvador, por exemplo, eram brancos, já que não se exigia a conduta de manter as aparências a mestiças ou negras.

Na verdade, é preciso considerar que mestiças e negras, frequentemente, sequer podiam decidir sobre a vida dos seus filhos, estando elas ou ambos na condição de cativos. Mesmo quando eram legalmente livres, dentro do regime escravagista, negros e mulatos, especialmente crianças, eram submetidos à vida escrava por algum incidente que os afastasse de suas mães. O medo da escravização dos filhos está, segundo Venâncio, em advertências colocadas nos bilhetes junto às crianças, apelando para os compromissos da assistência, alertando para certa “pureza genealógica” ou ainda pedindo que não lhes enviasse para casas muito pobres. Este medo justifica-se inclusive porque era tão comum o uso das crianças por inescrupulosos em busca de dinheiro fácil que, às vezes, encontrava-se em anúncios de jornais da época crianças à venda. Há registros, segundo Venâncio, de casos em que as criadeiras cadastradas vendiam os bebês.

Muitas vezes, o abandono era temporário, motivado por doença ou pobreza da mãe e, em vários casos relatados, elas retornaram depois de alguns anos para buscar os filhos

entregues na roda. Venâncio afirma que muitas mulheres livres na colônia viviam no limiar da pobreza, transitando entre diversas ocupações, como quituteiras, lavadeiras e pequenas comerciantes. Essas mulheres chefiavam seus domicílios; o levantamento de 1799 arrolou oitocentas mulheres como responsáveis pela renda de suas famílias. Para elas, um filho a mais podia significar a completa miséria. No entanto, outros arranjos, além do abandono, tornaram- se comuns. Uma estratégia comum às mulheres pobres da época, mencionada por diversos historiadores, e que perdurou até mesmo no século XX, consistia em socializar os filhos numa extensa rede familiar e de vizinhos. Dessa forma, crianças circulavam por vários lares, estabelecendo outras formas de parentesco em que as próprias mães alternavam suas disponibilidades de cuidados aos filhos seus e outros, dependendo de estar ou não em alguma atividade produtiva.

A historiadora Maria Lúcia Mott (1988) destaca a má qualidade de vida e a vigilância sob a qual viviam as mulheres no período colonial brasileiro. Segundo ela, vários viajantes estrangeiros que descreveram a vida social brasileira durante os séculos XVIII e XIX, utilizam a palavra escravidão para descrever a falta de liberdade das mulheres no Brasil colônia e imperial, graças às limitações educacionais, além do jugo representado pela violência e arbitrariedades realizadas por pais, irmãos e maridos, como por exemplo, as negociações de dotes, manipulação das heranças e adesão compulsória aos conventos.

Além disso, é necessário considerar que o peso dessa opressão se agrava com a dupla responsabilidade de muitas dessas mulheres, ao acumular a responsabilidade pelo sustento da família e o cuidado cotidiano com extensas proles. No caso das mulheres afrodescendentes, escravas e ex-escravas ainda sob o regime escravista, a situação era muito mais grave; criar estratégias de sobrevivência desta realidade exigia muito mais capacidade de superação.

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3.3 Escravidão e maternidades: as mães de sangue, as mães de leite, as mães de