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Ponciá Vicêncio: tomar posse de si, o barro inicial da liberdade

Ponciá Vicêncio é um romance cuja narrativa alterna flashbacks e momentos do

presente da personagem. A narrativa começa com a protagonista já adulta, morando na cidade grande, mas relembrando a infância, revelando a história que percorreu até ali. Ao ver um arco-íris, ela começa a lembrar-se de um tempo feliz, quando, ainda menina, temia passar por baixo dele e mudar de sexo, conforme lenda popular. Nesse rápido episódio, o narrador afirma que “naquela época Ponciá Vicêncio gostava de ser menina. Gostava de ser ela própria.” (EVARISTO, 2003, p. 13), o que já nos cria a expectativa em compreender os motivos que, mais tarde, levariam a protagonista a deixar de gostar de sua condição de mulher.

Antes de mudar-se para a cidade, Ponciá, uma jovem mulher negra, vivia com a mãe, Maria Vicêncio, o pai e o irmão Luandi, na Vila Vicêncio, situada numa zona rural do Brasil. Nesta vila, vivia uma população de descendentes de escravos. O pai e o irmão de Ponciá trabalhavam na lavoura para a família Vicêncio, que era dona das terras onde todos moravam, além de serem os donos do sobrenome dos habitantes da vila, como a família. Esse é um detalhe importante, pois o fato de todos moradores portarem ainda o sobrenome do antigo senhor dos seus antepassados, conforme a tradição escravagista, os conecta com uma memória, ainda próxima, das experiências de abusos vividos durante a escravidão.

O nome equivale à marca feita a ferro que os escravagistas usavam para registrar a posse de seus escravos. No nome herdado, mesmo depois do período escravagista, os descendentes permanecem ligados, ainda que não mais como propriedade, mas eliminando a possibilidade de desligamento entre os descendentes das vítimas da escravidão e os algozes de sua família, mesmo no período posterior à escravidão. De certa forma, era como se ainda lhes fosse negada a condição de uma identidade própria. Além disso, morando nesta comunidade, as condições de trabalho muito se assemelhavam à condição anterior porque os trabalhadores permaneciam subjugados a um regime de servidão, sem direitos trabalhistas, presos a uma terra que não possuíam legalmente, sem possibilidade de ascensão social.

Outra vez, como em Becos da Memória, Evaristo usa a onisciência como estratégia narrativa. Essa escolha proporciona dinamismo, permitindo que acompanhemos

vários personagens em acontecimentos e momentos diversos a um só tempo. A narradora39enfatiza a insatisfação da personagem com relação ao uso do nome Vicêncio. Desde menina, ela não gostava do nome que portava. Neste romance, como no poema “Meu Rosário”, quando a voz lírica afirma “eu falo de mim mesma outro nome”, a autora deixa claro que reconhece a importância simbólica que adquire o ato de nomear e busca, através da insatisfação da personagem, representar essa questão, pondo-a em discussão. Ponciá Vicêncio “não ouvia seu nome responder dentro de si. Inventava outros. Pandá, Malenga, Quieti, nenhum nome lhe pertencia também, ela, inominada, tremendo de medo, temia a brincadeira, mas insistia. A cabeça rodava no vazio, ela vazia se sentia sem nome. Sentia-se ninguém. Tinha então vontade de choros e risos.” (EVARISTO, 2003, p.19).

É significativo que os nomes que Ponciá escolhe como substitutos são nomes africanos; o nome que possui e que a incomoda, é um nome de origem europeia. Entretanto, conforme atesta a última frase da citação, a personagem não se identifica sequer com os nomes africanos que evoca; isto evidencia o conflito em que vive, sentindo-se sem raízes, situação provocada pela diáspora forçada que trouxe consequências danosas para todos que viveram esta dolorosa experiência.

A relação com o nome nos leva a uma necessária reflexão acerca do sentido do ato de nomear, sua relação com a construção do conceito de cada pessoa consigo nas culturas africanas. Como já mencionamos, o desrespeito ao nome escolhido na África, com a imposição dos nomes cristãos, foi uma das formas de violência praticada dentro do sistema escravagista. Esta prática, conforme atestamos na ênfase dada pelos escritores afro-brasileiros, é compreendida como algo que causou sérios prejuízos para a autoestima dos afrodescendentes, seu sentido de identidade e sua relação com o meio em que vivem e com o passado dos seus ancestrais.

Como vimos nos capítulos introdutórios, nas culturas africanas o nome que se escolhe tem frequentemente relação com as circunstâncias do nascimento, a posição que a criança ocupa na família (se é primogênito, se é gêmeo, se é o último de seu pai ou mãe ou outra circunstância particular). O nome também pode relacionar-se com um desejo ou uma previsão que se faz sobre o futuro daquele que chega. Outra situação que pode interferir na escolha do prenome é, quando acontece, no jogo de Ifá40, a previsão de maus presságios, perigos à nova vida; quando isso acontece, deve se escolher um nome de proteção ou realizar rituais para pedir proteção contra perigos específicos antevistos. A diversidade dos nomes está

39 Aqui, como no romance anterior, compreendo a onisciência oriunda de uma narradora mulher. 40

Segundo Prandi(2001), Orumilá ou Ifá é o conhecedor dos destinos dos homens. Os babalaôs consultam-no através do jogo de búzios.

relacionada, nas diversas culturas africanas, à valorização da individualidade, enquanto o sobrenome está relacionado à origem, à região e nação.

No processo de escravização, foram várias as medidas tomadas pelos proprietários, com o objetivo de neutralizar dados sobre o passado de seus escravos, tais como nomes e nações de onde vinham. Essa é uma das questões sobre as quais os afro-brasileiros têm refletido, na busca por compreender melhor os processos de ocultamento da história dos africanos no Brasil, já que o nome está diretamente relacionado à identidade pessoal e à história coletiva de um povo. Em Ponciá Vicêncio, assim como em Um Defeito de Cor, as personagens protagonistas lidam com esse conflito, convidando o leitor à reflexão.

No período escravagista, muitas vezes, o batismo era realizado ainda nos navios ou nos galpões onde os negros ficavam presos até serem comercializados. Quando eles recebiam um nome (cristão41), os mercadores conseguiam vendê-lo com mais facilidade, pois os possíveis proprietários compreendiam que aquele africano não era um rebelde, que era submisso, além de identificá-lo mais facilmente. Essa nova denominação também contribuía para afastar o africano de sua memória, sua identidade anterior ao cativeiro; esperavam minimizar as marcas individuais, como se apagasse ou tentasse apagar aquele que existia antes de tornar-se uma “peça”.

Segundo nos relata o historiador João José Reis (1985), que descreveu detalhadamente a Revolta dos Malês, os presos durante e após a rebelião, ao serem interrogados, identificavam-se usando os nomes cristãos atribuídos a eles; tratavam a si e aos companheiros pelos nomes africanos, que faziam questão de juntar ao nome da sua nação africana. Esse dado, confirmado também por outras pesquisas, revela que africanos e muitos de seus descendentes, mesmo durante o período escravagista, permaneceram usando seus nomes africanos individuais e de origem. Acreditamos que isso ocorria por julgarem que era uma atitude importante para preservarem sua integridade moral, assim como pode indicar a esperança que tinham em reencontrar os familiares e entes queridos separados pelo regime escravocrata.

É significativo, portanto, que o romance de Evaristo comece informando a insatisfação que sentia a protagonista com o fato de que, na comunidade em que nasceu e vivia, embora todos fossem livres, moravam ainda na mesma propriedade em que seus antepassados foram escravos e ainda carregavam o sobrenome do antigo senhor. É um indício do que motivou a personagem a sair dali. Além de não gostar do sobrenome, a personagem

41

O concílio de Trento (1545-1563) proibiu o emprego de nomes não cristãos ou não religiosos no momento do batismo. Esta norma durou até 1840. (Revista Nossa História, 2003, p38)

também não gostava do seu primeiro nome, o que também revela reação contrária ao passado escravagista imposto de seu povo. O nome escolhido por Evaristo para sua protagonista neste romance, Ponciá, segundo sua origem grega Pontius significa o que vem do mar, assim como vieram seus antepassados para o Brasil, forçados e acorrentados. Neste caso, fica justificado o incômodo da personagem com relação ao seu nome; ela parece indicar a recusa à imposição não apenas do nome do senhor, mas à própria violência praticada pelos antepassados escravagistas do dono das terras contra seus antepassados.

Assim como Ponciá, os africanos escravizados, como vimos, recusavam o nome cristão escolhido. Persistir com o nome africano trazia para eles a sensação de conectar-se às suas culturas originais, suas lembranças familiares. Quando Ponciá tenta imaginar um nome africano para autonomear-se, ela está buscando uma memória ancestral que a salve do estigma do passado. Sobre os danos relativos a essa apropriação da identidade que o ato de nomear implica, Roland Walter faz uma reflexão importante:

Nomear de forma imprópria é um meio primário de gerar dissonância cognitiva. Definições externas impostas forçadamente sobre uma episteme cultural geram dissonância identitária. Desde o início de sua diasporização nas terras americanas, o africano/afrodescendente tinha e continua tendo que lidar com essas dissonâncias enquanto resultado de um conjunto de violências corporais, mentais e epistêmicas. O motivo de se voltar ao passado é que no negreiro, na plantação e em outros lugares do sistema escravocrata, se originou a produção de epistemologias que violentam os corpos, as mentes, as experiências e culturas africanas/afrodescendentes. Dessa forma, o resgate de eventos e pessoas do passado na literatura afrodescendente das Américas deve ser visto enquanto quilombismo cultural, que tenta estabelecer uma consonância cognitiva e identitária mediante a transformação da não-história esquizofrênica em memória coletiva sedimentada que explica as trilhas do passado que levam ao presente. (WALTER, 2011, p 160).

Em Ponciá Vicêncio, essa inquietação que se revela num primeiro momento através da insatisfação da personagem com o nome, vai se configurando através de uma busca por outros rumos, o que se manifesta de forma cada vez mais acentuada na protagonista. Desde criança, Ponciá revelara uma conexão com o passado de sua família, como se trouxesse já a necessidade de compreender sua história. Logo que começa a andar, ela imita o jeito do avô caminhar, colocando o braço para trás para parecer com ele, que perdera o seu, o que espanta a todos, pois ela era ainda um bebê quando ele morrera. Depois, quando já moça, ela faz um boneco de barro que se assemelha ao avô, inclusive com o braço cortado.

Ela parece ligada à história do avô, mesmo antes de conhecê-la. O avô de Ponciá, pai do seu pai, em um acesso de loucura diante do sofrimento de ter os filhos seguidamente vendidos pelo senhor, resolve matar sua esposa e matar-se. Embora tenha sido contido antes de concluir o plano com o suicídio, mata a esposa e corta o próprio braço; passada a crise,

nunca mais recupera o equilíbrio emocional. Ser herdeira do avô significa estar ligada ao sofrimento que ele expressa em sua história pessoal, significa não suportar a injustiça representada pela história escravagista, nem mesmo as consequências desta história na vida dos afrodescendentes.

A memória, a ligação com o passado com o objetivo de compreendê-lo, é sempre referência fundamental na construção do resgate da autoestima da população afrodescendente. Pesquisadores como Elisa Larkin Nascimento e Neuza Santos Souza, por exemplo, destacam que o não conhecimento de um passado de lutas e participação dos antepassados é um dos pilares da subjugação emocional que afastou por tanto tempo os afrodescendentes da luta por seus direitos. Portanto, para construir aquilo que Roland Walter chamou de “quilombismo cultural”, resgatando os episódios e personagens da história ancestral africana, é importante continuar esse trabalho que a escrita literária afro-brasileira tem realizado, contribuindo com imaginação e pesquisa para a formação de uma nova memória afrodescendente.

No romance, a busca de Ponciá acontece de várias formas: a tentativa de atribuir- se um nome, a confecção de bonecos que traz a imagem dos ancestrais, a imitação do andar do avô e também quando procura Nêngua Kainda. Esta personagem é uma referência da busca pela memória ancestral, representada aqui na dimensão religiosa. Nêngua Kainda é um suporte para toda a família de Ponciá, espécie de sacerdotisa e oráculo a quem todos os moradores recorrem. Essa mulher, que estabelece um elo entre mortos e vivos, desvenda sinais do sobrenatural e dos sonhos; lembra-nos da função das sacerdotisas nas culturas africanas e das mães de santo na cultura afro-brasileira. Nessa personagem temos, mais uma vez, na produção literária de Evaristo, a valorização das personagens femininas que representam a liderança das mulheres africanas e afrodescendentes.

Embora vivesse sem questionar diretamente sua condição, Ponciá pensava sempre em como seria viver longe dali, em terras que não fossem dos brancos e ex-senhores. Quando o pai morre, ficando apenas a mãe, Maria Vicência, e os filhos, a protagonista já era uma moça e, além de dividir o trabalho doméstico com a mãe, produzia, junto com ela, artesanato de barro para vender. Os bonecos e outros objetos feitos por Ponciá são elementos importantes na sua busca por compreender a si mesma, sua condição, sua história, pois no momento em que manipulava o barro e fazia sua arte parecia sentir-se livre. Ela aprende a arte de moldar barro com a mãe, mas enquanto essa usava a arte para fins utilitários, Ponciá passa a usar a modelagem para fins artísticos, começando um processo de busca, através da arte, de uma nova identidade. Um dos primeiros bonecos que molda é aquele semelhante ao avô,

revelando, mais uma vez, seu interesse na história do passado e sua relação com a personalidade dele.

A mãe fazia panelas, potes e bichinhos de barro. A menina buscava a argila nas margens do rio. Depois de seco, a mãe punha os trabalhos para assar no forno de barro também. Ponciá também sabia trabalhar muito bem o barro. Um dia ela fez um homem baixinho, curvado, magrinho e com o bracinho coto para trás. A mãe pegou o trabalho e teve vontade de espatifá-lo, mas se conteve, como também conteve o grito. (...) A mãe andava com o coração aflito e indagador. O que havia com aquela menina? Primeiro andou como o avô...agora havia feito aquele homenzinho de barro, tão igual ao velho. (EVARISTO, 2003, p.21).

É através da arte criativa com o barro que ela começa a identificar em si as marcas do passado de seu povo e sua relação com o avô. Não podemos deixar de mencionar o valor simbólico da manipulação do barro para formar figuras humanas, como a versão bíblica sobre a gênese da humanidade. Importante lembrar aqui a referência simbólica do barro na mitologia ioruba. Como mencionamos anteriormente é Nanã Buruquê, um dos mitos maternais dos iorubas, que tem como elemento o barro, acompanhando o começo e o fim da vida. Assim como fazia nascer homens de barro, Ponciá concebe o plano de fazer nascer uma outra vida para si e compreende que o primeiro passo seria partir daquelas terras onde ainda se vivia a memória da escravidão, na pobreza e estagnação de todos que ali permaneciam.

Ponciá resolve migrar para a cidade. Afastar-se daquela realidade que lembrava o passado escravagista e que não lhe oferecia novas perspectivas parece ser o motivo da viagem, embora a personagem só mencione as causas sem detalhes “estava cansada de tudo ali (...) de ir e vir às terras dos brancos e voltar de mãos vazias” (EVARISTO, 2003, p33). Esse trecho sugere que a personagem buscava algo, ainda que não tivesse consciência do que buscava; leva-nos a refletir sobre o que seria a busca por uma vida com novas perspectivas. Ponciá parecia buscar a compreensão da história dos seus antepassados, bem como de um lugar que fosse realmente seu.

Este movimento de deslocar-se geograficamente, reconectando-se a uma memória ancestral, mas mirando um futuro que a supere, nos faz compreender que há duas dimensões de deslocamento: o externo, a viagem geográfica, e o interno, a viagem interior da busca por si. Essas duas viagens integradas podem ser consideradas como um leitmotiv da literatura afrodescendente. Em Ponciá Vicêncio, como em outras narrativas, a busca, o resgate é representado pela viagem, pelo vai-e-vem dos personagens ao longo do enredo, a errância esquizofrênica.

A viagem de Ponciá, decidida sem nenhum planejamento, atende, sobretudo, a uma urgência interna. Ela segue no primeiro trem que chega à vila e chega a passar fome, pois levara apenas broa de fubá, um pouco de café ralo e um pedaço de rapadura. Ao chegar, encontra uma igreja e resolve ficar ali, próxima à porta, abordando as pessoas que entram e saem, pedindo um emprego. Consegue a atenção de uma mulher que lhe indica uma casa para trabalhar como doméstica e lá permanece morando e fazendo o serviço da casa. Ao longo de alguns anos, consegue juntar dinheiro para comprar um barraco. Pensa então em buscar a mãe e o irmão na vila.

Depois de algum tempo da partida de Ponciá, seu irmão Luandi também resolve ir para a cidade. Também ele, em busca de uma mudança na vida, embora sem consciência exata do que esperava encontrar, além do desejo de rever sua irmã. Luandi, como Ponciá e outros personagens afrodescendentes, parece atender à mesma errância , motivada pelo sofrimento advindo dos efeitos da história escravagista.

É significativo que Luandi perca o endereço da irmã durante a viagem, indicando ainda mais o desnorteamento que caracteriza os personagens nessa errância. Logo que chega à estação, o personagem fica fascinado ao encontrar um soldado negro, o Nestor. Depois desse encontro, Luandi parece vislumbrar uma chance de empoderar-se, tornar-se soldado. Luandi vislumbra uma possibilidade que nunca imaginara. Ele torna-se faxineiro da delegacia, esperançoso de que o delegado e Nestor o aceitem e o treinem para ser um soldado. Percebemos que Luandi buscava também vencer dentro de si a herança cruel da escravidão, encontrando um caminho, que lhe permitisse o resgate da autoestima e da superação do que, até ali, havia sido sua vida: o trabalho semiescravo em terras alheias e a submissão ao nome imposto.

Luandi continua iludido na esperança de ser tratado como um igual, já que o próprio delegado o adverte de que considerava que negros como Nestor eram uma exceção. Chama-nos a atenção a diferença entre as perspectivas que surgem no caminho dos dois irmãos; essa diferença sinaliza os destinos tradicionais distintos para homens e mulheres. Aqui surge também uma diferença que decorre das determinações de gênero. Para Ponciá, fica claro desde o primeiro momento que a oportunidade na cidade seria na forma de um emprego doméstico; para Luandi, é acenada a possibilidade do emprego de soldado. Para ela, o recolhimento ao espaço privado, o emprego desvalorizado e desprovido de poder; para ele, o espaço público, a aquisição de força, de poder, representado na farda do soldado. Aqui também observamos a ironia da autora, pois trata-se de um poder ilusório ou contraditório, já

que, caso se concretizasse o empoderamento de um homem pobre e negro, significaria apenas a permissão legal de usar a violência, quase sempre contra outros negros.

No entanto, o fascínio de Luandi justifica-se, porque encontrar um soldado negro era para ele uma perspectiva nunca sonhada: a de que um negro poderia ser obedecido. Na terra dos Vicêncios, os negros obedeciam aos donos das terras e a lei representava esses donos, sempre brancos. Quando Luandi observa o soldado, enxerga a possibilidade de que um negro pudesse ter também poder, respeito, força, inclusive diante de brancos. Embora tivesse sido abordado de maneira desconfiada pelo soldado que fazia a ronda na estação e encaminhado à delegacia, Luandi vê-se animado pela descoberta feita, anima-se ainda mais ao chegar na delegacia e perceber que Nestor mandava em outro soldado e este era branco.

Estava feliz. Acaba de fazer uma descoberta. A cidade era mesmo melhor do que na roça. Ali estava a prova. O soldado negro! Ah! que beleza! Na cidade, negro também mandava! (...) Nestor mandou que o soldado branco guardasse Luandi na cela. Só trancasse o preso, não fizesse nada (...) Luandi concluiu que o soldado negro era mesmo importante. Era ele quem mandava. (...) Luandi só queria ser soldado. Queria mandar. Prender. Bater. Queria ter a voz alta e forte como a dos brancos (EVARISTO, 2003, p. 70-71).

Luandi começa a trabalhar como faxineiro na delegacia e, com a ajuda do soldado Nestor, estuda para habilitar-se como soldado. O poder pretendido por Luandi seria a garantia