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CAPÍTULO 5: ANÁLISE DAS ENTREVISTAS

5.5 A TRANSGERACIONALIDADE NO DISCURSO TERAPÊUTICO

Uma característica percebida no discurso terapêutico é que os profissionais que atendem as crianças abusadas e suas famílias já têm de antemão a tarefa de investigar o histórico de abusos dentro da relação ancestral.

Segundo elas afirmam, é muito comum que, quando se descobre um caso de abuso intrafamiliar, já é resultado de um histórico de permissões, omissões, segredos

e pessoas silenciadas em torno de abusos sexuais frequentes. Por isso o estudo do genograma (que é a busca das relações anteriores entre os familiares) e a investigação das histórias transgeracionais na terapia.

O discurso das terapeutas apontou para uma característica desse abuso, qual seja, a transgeracionalidade, como a responsável por haver uma permanência de ocorrências de violência sexual contra crianças repetidas em muitas famílias.

Segundo relata a terapeuta Aleteia, há pessoas que vão à terapia acompanhando o filho sem imaginar que sua própria história, escondida até então, pode ser escarafunchada e revelada:

Quando você vai catar a história, ela também passou por aquilo. Só que ela teve corage de vir pedir ajuda po filho, e de forma indireta ela veio denunciar. Só que ela vem pensando que jamais vai denunciar os dela. Mas no tratamento ela tem que abrir. Aí é

quando a gente sabe que o problema é transgeracional. (Anexo 1,

p. 156)

Dora, explicando os resultados da transgeracionalidade, e reforçando que ele pode influenciar na vida de vários membros de uma mesma família, relata o caso de uma parente próxima de uma criança que é atendida por ela. Essa pessoa, prima da vítima, foi exposta a uma sexualidade exacerbada e precoce, resultando em uma entrega ao trabalho com prostituição24:

A outra, que é a prima, ela ficou tão assim.. é.. com a sexualidade tão aflorada, que.. ela.. ela agora, segundo a avó, essa avó, ela já.. já tá fazendo disso uma... ela deve ter uns treze anos... ela já tá fazendo disso um trabalho, ela já tá vivendo a prostituição. Entendeu a questão da transgeracionalidade, né? (Anexo 1, p. 157)

Carmem também faz um relato com exemplo mostrando como se trabalha a transgeracionalidade em uma família, especialmente com a técnica do genograma:

Ah, a transgeracionalidade tem livros específicos pra isso, que é o genograma que a gente utiliza muito. Então a gente constrói um mapa dessa família, até a terceira geração, e aí elas... assim... é filho de quem, né? Comé que era essa história? Comé que é essa vivência? É muito interessante nessa área, por exemplo, de você ver os mitos da família.

24 Para uma compreensão da prostituição como um trabalho opcional em que a mulher profissional do

sexo exerce agenciação, diferentemente da prostituição por necessidade, sem prazer e/ou por obrigação, ver Xavier, 2013.

Uhum.

Aquilo que é levado de geração pra geração.

Uhum.

O que que é os ditos não ditos dessa família, tipo... é... vou te dar um exemplo bem básico assim: não pode comer manga verde, manga verde após o almoço morre. Por que que morre? Já foi ver? Não sei o que, então a gente começa a quebrar.

A vovó falou e ficou...

A vovó falou e ficou.

Até tradição.

Não pode dar... antes do casamento, por que que... ah eu dei e não presto. Então a gente começa a perceber em cima daquilo que é falado, como ficou aquilo, como significou isso e como ela vai levando... porque a gente tem realmente uma coisa uma repetição e a gente repete uma história familiar, entendeu? Mas a gente já percebeu o que que é repetido, então o que que você vê, ciclos de

violência são repetidos... um pai que batia, né?, como forma de

comunicação, batia lá, a mãe repete isso batendo nele também... é a forma de aprendizagem que ela teve, não teve comunicação verbal, uma coisa que a gente nota muito nessas famílias hoje é a falta de comunicação. (Anexo 1, p. 157)

Dessa forma, podemos perceber que a transgeracionalidade deixa claras as repetições de comportamento que uma família apresenta. Além do disso, os terapeutas vão perceber, por meio do apoio do trabalho com o genograma familiar, a ideologia que permeia aquela família. Os julgamentos de situações, de pessoas e de instituições estarão intrincados na personalidade de seus membros.

As famílias carregam, muitas vezes, problemas relativos a esse segredo das situações injustas que acontecem, como violência, abuso sexual, descontrole financeiro, uso de drogas e álcool e outras ocorrências parecidas.

Já no campo do julgamento de situações e escolhas ideológicas, uma família pode levar aos seus membros uma visão específica no campo do esporte, da religião, da política partidária, e também leva a uma escolha cultural no campo da alimentação, música, leitura ou temas parecidos.

Nesse sentido, os terapeutas continuam a afirmar sobre a importância da família e da transgeracionalidade como fator que perpetua a violência sexual cometida a crianças e adolescentes no lar:

Aí a gente vai fazendo essa quebra, né?, por onde entrou a violência na sua família. Aí a gente vai lá atrás pra poder ver essas relações de violências foram construídas..

Da pessoa entender que isso não é normal..

É.

Isso não pode continuar..

Exatamente.

Às vezes a pessoa nem percebe que tá acontecendo.

O que a gente nota na violência sexual é o seguinte: a porta

doméstica, eu to falando, a porta de entrada muitas vezes não é a violência, é.. é... são as relações violentas, entendeu? Ela vai indo, até que chega no abuso, né?, e se você também não continua

trabalhando depois, essas relações continuam, né?, uma questão até cultural. Então é todo um paradigma que tem que ser mudado..

(Anexo 1, p. 158)

Nesse relato de Elis, percebe-se que, quando ela fala sobre a “questão cultural”, relacionando com relações que continuam, sua afirmação mostra que a família faz desse tipo de atitude, dessa consideração dos fatos, uma situação cultural. Torna-se uma prática que segue seu rumo de geração a geração. Os entes seguintes continuam um pensamento e uma atitude que são considerados normais. Além disso, a violência “entra” na família, desconsiderando como e onde ela está já dentro dela. É necessário, segundo as terapeutas, um trabalho constante para que as relações deletérias não continuem. Essa é a importância do trabalho feito por meio do genograma e o estudo da transgeracionallidade em cada família que é assolada pela violência sexual e/ou doméstica.