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CAPÍTULO 5: ANÁLISE DAS ENTREVISTAS

5.6 MENINOS E MENINAS: A CULTURA E O DISCURSO ENVOLVIDOS

As marcas de gênero também nos apontam a maior dificuldade para as meninas com relação à violência à qual são submetidas. Por uma série de fatores, a sociedade espera (e, por isso mesmo, predetermina) uma determinada atitude diferente de meninos e meninas. Lilian Atanga, pesquisando sobre o modelo camaronense de mulher, sabedora de que sua verificação era sobre um grupo marginalizado com poderes assimétricos (Fairclough, 2003), esclareceu que:

Tais discursos sobre as mulheres e as construções das mulheres por homens e pelas próprias mulheres (como lutadores que resistem à posição tradicional das mulheres) mostram a evolução dolorosa de uma sociedade profundamente "masculina".25 (Atanga, 2012, p. 40)

Com isso, percebemos que há, sim, discursos que buscam a superação dessa relação assimétrica de poder. Ela gera abuso e traz insatisfação para os componentes da sociedade. As mulheres, com seu poder de agenciação, têm sido protagonistas nos estudos da linguagem que trabalham pela igualdade de direitos. Assim, apontam para

25 “Such discourses on women and constructions of women by male and female themselves (as fighters

who resist the traditional positioning of women) shows the painful evolution of a deeply “masculine” society.”

fatores, que temos abordado nesta tese, como o silenciamento, o abuso de poder, a denúncia e a violência doméstica entres outros.

Outra dificuldade, que está intrinsecamente ligada à identidade feminina, é a relação de uma falta de dureza por parte do masculino que o faça traçar paralelo com a identidade homoafetiva. A sustentação de uma ideia de heterossexualidade masculina que deva ser demonstrada por força física gera uma agressividade e uma manutenção do poder pela violência. Isso se soma ao conceito de que a superioridade vem de uma performance sexual ativamente masculina, conforme podemos perceber nas palavras de Russsel Luyt abaixo:

Os discursos dominantes de masculinidade tendem a servir o interesse dos homens jovens heterossexuais que defendem a escolha por um objeto sexual feminino e são mais capazes de desempenhar uma relação heterossexual.26 (Luyt, 2012, p. 70)

Essa compreensão de um poder machista que permeia a sociedade já atinge aos pequenos dentro da própria família. O pensamento patriarcal atinge todo um grupo social, não somente os homens. Por isso é comum dizer que as próprias mães criam seus filhos para o machismo, especialmente quando relegam às meninas as tarefas domésticas, enquanto os meninos podem, por exemplo, após o almoço, assistirem à tevê com seus pais (homens), sem problema algum.

Então, as mães, principalmente as mães, os pais também, mas mais as mães, elas temem que o menino fique homossexual, elas têm esse fantasma vem junto, né? A gente que pensa que menina é mais abusada que menino, eu não sei te dizer se é igual, mas é quase que igual, né, e sempre as duas famílias elas têm esse medo de que.. que vai ficar sequela, por mais que a gente.. (Anexo 1, p. 160)

No geral... as mães.. que os meninos foram abusado.. elas têm medo que virem homossexual, se ele sentiu algum prazer, será que ele vai querer repetir? O outro medo é da repetição, que a gente tem que passar isso que nem... num é uma regra.. (Anexo 1, p. 160)

Nos relatos, percebemos, também, essa diferença de preocupação com relação a meninos e meninas. Várias situações apontam para a visão de inferioridade do gênero feminino ou a normalidade de uma sexualidade submissa à vontade dos

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“The dominant discourses of masculinity tend to serve the interest of young heterosexual men who espouse a female sexual object choice and are best able to perform heterosex.”

homens. Isso se potencializa quando o indivíduo está na posição infantil. O uso da expressão “virar homossexual” aponta a crença de que não se vê a homossexualidade como inata. Assim, a heterossexualidade é considerada inata.

Num há escolha de sexo, né, o que a gente tem é uma questão que passa pelo cultural, que o menino abusado vai virar bicha, né,

a menina abusada vira prostituta, né, então assim (???) que é mais

a nível de um tabu, de uma coisa assim cultural, e que isso a gente trabalha com essas famílias, fazendo essa leitura, né, isso não é real. (Anexo 1, p. 158)

As terapeutas, inclusive, têm mais dificuldade para que o menino possa relatar o abuso sofrido do que as meninas. Entende-se que, em alguns casos, as meninas são levadas a entender como normal se submeterem a um ato sexual com um homem mais velho. Essa pode ser a causa de algumas meninas reagirem entregando-se à prostituição. Essa dificuldade de relato gerou a separação, na terapia em grupo, de sessões para meninas e meninos separadamente, como relata Fabiana:

A gente tá trabalhando, né?, a.. a gente antes juntava menino e menina, mas eles não falam... os meninos.. eles não gostam de falar. Eles têm vergonha.. então eles não relatam. A cri... a menina.. ela diz. Cê pergunta como é que aconteceu, ela conta tudinho, direitinho.

Ela faz o relato..

É.

Mais minucioso.

O menino ele num num, num quer falar. (Anexo 1, p. 159)

Para o menino, o abuso sexual sofrido significa que ele perde a condição de poder masculino atribuído à criança do sexo masculino. Essa tradicional posição de liderança e de virilidade é aviltada.

Por outro lado, se um abuso é cometido por uma mulher, acaba sendo considerado como de menos gravidade. Trata-se como algo mais de cunho psicológico que físico. Não se pode esquecer que, para muitos pais, é interessante que os filhos sejam iniciados logo na vida sexual, quanto mais tenra a idade melhor. Alguns meninos são levados a prostíbulos por seus pais, que o fazem com orgulho. Sendo assim, um menino abusado por uma mulher tem um peso bem menor. Essa “tradição” construída em uma sociedade machista é comum e aprendido por homens e mulheres desde cedo, conforme nos afirmam Mariléia Sell e Ana Cristina Ostermann:

É importante ter em mente que tanto homens quanto mulheres se constroem e são socializados dentro de perspectivas de gênero, ou seja, vão aprendendo aquilo que é deles e delas esperado dentro das “comunidades de prática” das quais fazem parte. (Sell e Ostermann, 2012, p. 134)

Essa relativização do abuso sofrido por meninos é percebida no discurso terapêutico que evidencia que a questão física é menor, portanto, a gravidade não é tão grande.

Em termos de abuso sexual num... num tem a... a gente num consegue ainda comparar. Realmente ele tá menos... esse menino que te falei, ele tá com menos sequelas, e consegue... dizer mais. Por causa da condição emocional dele? Pode ser. Ele realmente é um menino muito bom. (Anexo 1, p. 159)

Ainda que sejam consideravelmente menores, os abusos cometidos por mulheres existem, e as sequelas psicológicas têm consequências que não se podem mensurar, mas que merecem ser tratadas. Em todo caso, fica evidente que o tratamento oferecido nos casos de meninos e de meninas mostra como são criadas as identidades de homens e mulheres para com o sexo.

Notemos que a terapeuta, ao se referir ao caso específico do menino, levanta a possibilidade de ele conseguir falar mais por ser “um menino muito bom”. Todavia, comparando-se a situação com a prática discursiva e social sobre o sexo na infância ou adolescência, relembramos a comum inserção de pré-adolescentes no mundo do sexo, muitas vezes estimulada pelo próprio pai, bem como a vergonha que meninos apresentaram em grupo de verbalizarem os abusos sofridos, notadamente por serem de natureza passiva.