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CAPÍTULO 2: O DISCURSO TERAPÊUTICO

2.3 O PODER ENVOLVIDO

Ao longo dos tempos, como vimos no quadro acima (Quadro 1), a compreensão do conceito de infância foi sendo ampliada. Assim, natural seja que o discurso que a envolve também sofra mudanças.

No trabalho de Rodney Jones sobre discurso e o corpo histórico (Jones, 2008), ele aborda a capacidade de o discurso gerar ações precipitantes que modificam a abordagem do corpo. Esse círculo de ações leva a uma nova antecipação de conceitos e atos, que mais uma vez vai gerar discursos, reiniciando a cadeia de atitudes com relação a essa visão do corpo.

Essa concepção trabalhada por ele mostra como a ideia do corpo da criança como objeto foi sendo modificada a partir de conceitos que foram crescendo ao longo do tempo. A evolução dessa percepção ocorre com fatos contestados que geram novos discursos. Assim, a modificação de um discurso sobre o corpo infantil gerou uma nova visão dele e, consequentemente, uma nova ação relativa a ele, demandando de toda a sociedade uma nova atitude direcionada às crianças.

A reflexão de Jones é visualizada em um quadro preparado por ele e baseado em Scollon (2001). Abaixo uma adaptação para a língua portuguesa da compreensão de Jones sobre a mudança na concepção de corpo a partir das alterações nos discursos relativos a ele:

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er, por exemplo, o site da Safernet Brasil: www.safernet.org.br e a cartilha preparada pela CPI da Pedofilia: Abuso sexual infantojuvenil (Brasil, s.d.)

Figura 7: Mudanças na concepção do corpo histórico Baseado em Jones (2008, p. 248).

Com esse entendimento, percebe-se que a relação que se tem de poder com o corpo da criança também vem sofrendo essas mudanças. Ao passo que há seis séculos a criança era vista como insignificante, quase nada, hoje já se vislumbram suas necessidades e a grande relação que ela tem com a mãe, esta dando-lhe a ligação com a sociedade que lhe vai garantir a sobrevivência, o sentido de pertença e, consequentemente, a proteção e a orientação para sua vida.

Essas esferas de responsabilidade, autoridade, consequentemente, já que nessa relação há uma influência de pensamentos e opiniões naturais, são exercidas por aqueles que têm a tutela da criança. Repetimos, o grande problema nesse desenho é o abuso do poder, da autoridade, da condição de ser a pessoa que detém a maior possibilidade de influência sobre aquele ser, qual seja, a criança.

Teun van Dijk, teórico do discurso, aborda significativamente a questão do poder e de seu uso abusivo por parte de autoridades políticas (Van Dijk, 2008A), levando a uma reflexão que também contempla família, racismo (Van Dijk, 2008B), poder econômico, relações de gênero e outras esferas de poder na sociedade.

Van Dijk fala da reprodução de ideologia e da manipulação de informação, deixando clara a dificuldade ao acesso às informações sem regulação de acordo com os interesses envolvidos:

Isso significa que precisamos examinar em detalhe as maneiras como o acesso (grifo do autor) ao discurso está sendo regulado por aqueles que estão no poder, como é tipicamente o caso de uma das formas mais influentes de discurso público, qual seja, o da mídia de massa: Quem tem acesso à (produção da) notícia ou aos programas, e quem controla tal acesso? Quem é capaz de organizar entrevistas coletivas que serão assistidas por muitos jornalistas? Os

releases de quem estão sendo lidos e usados? Quem está sendo

entrevistado e citado? As ações de quem são definidas como notícias? Os artigos de opinião de quem ou cartas ao editor estão sendo publicados? Quem pode participar de um programa de televisão? E, de forma mais geral, de quem é a definição acerca da situação social ou política que é aceita e levada a sério? (Van Dijk, 2008a, p. 19)

Com essa ideia de ideologia como forma de deter e manipular o conhecimento para manutenção ou estabelecimento de poder, Van Dijk percebeu que não se dava oportunidade para que se estabelecesse um tipo de conhecimento que permitisse a aproximação entre indivíduos que fazem parte de um mesmo estrato social. Assim, em contraponto à ideologia, Van Dijk utiliza o termo contexto (ver Van Dijk, 2012).

É possível que, considerando-a (a noção de contexto) como um pouco mais formal do que certos conceitos correlatos como “situação”, “circunstâncias” ou “entorno”, usemos a noção de “contexto” sempre que queiramos indicar que algum fenômeno, evento ação ou discurso tem que ser estudado em relação com seu ambiente, isto é, como as condições e consequências que constituem seu entorno. Portanto, não só descrevemos (grifo do autor), mas também, e especialmente, explicamos a ocorrência de propriedades de algum fenômeno focal em termos de alguns aspectos de seu contexto. (Van Dijk, 2012, p. 19)

Trabalhar, então, a questão do poder envolvido nos casos de abuso sexual a crianças e adolescentes requer perceber quais são as ideologias que envolvem a vida das crianças, a concepção de seus corpos e a visão deles como objeto de prazer. Como foi a evolução desse conceito e onde se encontram os grupos sociais que ainda não chegaram à compreensão da criança como se percebe hoje. Significa dizer que admitimos que ainda há parcela da sociedade que pode tratar a criança como insignificante ou quase nada, relegando, sem problema algum, seu corpo à condição de simples objeto.

Não se pode deixar de levar em consideração que a criança está à mercê dessa concepção, que avançou em muitos aspectos e locais, mas ainda encontra resistência em outros níveis da sociedade. Por isso mesmo, a própria justiça, em alguns casos de julgamento em situações de molestamento a menores, considera importante verificar as situações em que estão inseridos os envolvidos, ou seja, são examinados “história de vida, crenças, valores e momento atual de vida” (ver Costa e Santos, 2004, p. 61).

Com a verificação de que o conceito do corpo da criança como objeto de desejo sofre evolução, no sentido de que se consegue outorgar aos menores direitos sobre ele, a autonomia é dada à criança? Infelizmente, não é isso o que ocorre! Até mesmo sem ter muitas condições, especialmente, no caso dos mais novos.

Surgem, então, as dificuldades nos conceitos da agenciação (ver Seção 3.6.: O problema da falta de agenciação em crianças) e do abuso de poder. Como a criança não apresenta “capacidade para liberdade de ação à luz de ou apesar das estruturas sociais; estrutura refere às forças e restrições sociais que afetam muito de nossas vidas sociais”10 (conceito de agenciação em Schryer et al., 2003, p. 64), é necessário

que a sociedade entenda e delegue quem são seus tutores. Logicamente, pai e mãe, sua família celular, carregam esse poder. Seu abuso, entendemos, gera o escudo para uma violência silenciosa. Isso porque o conceito de inviolabilidade do lar e o silenciamento como característica da identidade da criança são um agravante.

Na apresentação de dados referentes a uma pesquisa realizada envolvendo abuso sexual no seio da família, Santos et al. (2009) mostram que não é fácil agir quando há pedofilia intrafamiliar. O subtítulo da pesquisa já demonstra isso quando questiona se a intervenção é uma “ingerência invasiva ou proteção devida?”.

A importância desse olhar cuidadoso sobre a família, especialmente no tocante ao que vimos sobre abuso de poder, a identidade silenciada de crianças, o conceito ainda permanente de que o corpo da criança é um objeto para o desejo sexual, pode ser percebida em alguns resultados da pesquisa citada:

Das 47 crianças abusadas sexualmente, 34 delas sofreram a violência dentro da própria família. Esse dado, além de alarmante, traz fortes repercussões sobre a atuação legal e de atendimento social e de saúde às famílias em situação de violência sexual, pois indica que a situação requer uma compreensão e atuação específica que levem em conta a dinâmica abusiva no contexto familiar, as relações familiares e suas interações sociais, entre outros aspectos que caracterizam a violência sexual intrafamiliar. Sobre os autores da violência sexual: das 41 pessoas denunciadas, 17 eram os pais das vítimas; 10 eram os padrastos; 3, os avôs; 9 eram outros familiares e

10

“Capacity for freedom of action in the light of or despite social structures; structure refers to the social forces and constraints that affect so much of our social lives.”

2, namorados das mães. Se o fato de que a maior incidência da violência sexual ocorre dentro da família surpreende e assusta, a constatação de ser o pai o agressor mais comum traz grande preo- cupação. (Santos et al., 2009, p. 517)

O abuso de poder é um problema enfrentado por crianças há muito tempo. A sociedade tem alertado para a necessidade de um olhar mais atento direcionado às crianças, todavia, quando o lar está marcado por uma relação de desigualdade no que diz respeito aos direitos, a criança se torna refém daqueles que deveriam cuidar-lhe, mas aproveita de sua autoridade para impor silêncio no sofrimento.

É necessário, portanto, conscientização de que a família é célula que gera consciência e proteção para a criança.