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A transgressão das fronteiras entre Literatura e História

V. IMPASSIONED CLAY: UMA HISTÓRIA DO POSSÍVEL

5.3. A transgressão das fronteiras entre Literatura e História

O papel d@s historiador@s, em meu entender, não é afirmar tradições, corroborar certezas, expor evidências. É ao contrário, destruí-las para reviver o frescor da multiplicidade, a pluralidade do real. Para encontrar uma história do possível, da diversidade, de um humano que não se conjuga apenas em sexo, sexualidade, dominação, posse, polarização.

Tânia Navarro Swain – ―Os limites discursivos da história: imposição de sentidos‖

É importante ressaltar que um romance histórico tem características diferentes da metaficção historiográfica. Diferentemente do romance histórico, onde história e ficção convivem na intenção do resgate do passado e a presença de personagens históricas tem por objetivo dar ao mundo ficcional um estatuto de verdade histórica, na metaficção historiográfica esses elementos estão presentes para serem problematizados. O romance selecionado está, portanto, longe de ser um romance histórico, pois os dados que ele toma por empréstimo à história da Inglaterra são transmutados em fatos ficcionais sobre esse período com o objetivo de proporcionar uma releitura crítica desse passado histórico oficial, ao mesmo tempo em que desafia @ leitor/a a repensar o presente à luz desse redimensionamento do passado.

A apropriação, a releitura e a reescritura de textos ficcionais e não-ficcionais são estratégias narrativas importantes para a literatura pós-moderna e em especial para os feminismos. Ao desafiarem pressupostos e verdades estabelecidos a partir de critérios hegemônicos que privilegiam a cultura dominante, nitidamente patriarcal, escritor@s tornam possível o surgimento e o estabelecimento de uma literatura subversiva, resistente aos universalismos e de imensa criatividade. Toril Moi, em seu livro Sexual/Textual Politics: Feminist Literary Theory (1985: 72), aponta o caráter político dessa apropriação enquanto estratégia feminista, estratégia essa que deve ter em vista mudanças na própria realidade e não se constituir apenas em um mero jogo de

palavras. Ressignificação e recontextualização de signos, desconstrução de conceitos inseridos nas crenças e práticas culturais, e representação da experiência das mulheres tornam-se então parte importante na produção ficcional e na crítica literária feminista das últimas décadas.

Em seu livro Metafiction: the Theory and Practice of Self-conscious Fiction (1984), Patricia Waugh nos informa que muit@s teóric@s atualmente vêem a metaficção como um renascimento do romance: ―a metaficção contemporânea é tanto uma resposta quanto uma contribuição para uma consciência de que a realidade ou a história são provisórias: não há mais um mundo de eternas verdades, mas sim uma série de construções, artifìcios, estruturas impermanentes.‖ (WAUGH, 2003: 7) Como já mencionamos neste trabalho, uma estratégia narrativa importante para a grande parte dos textos literários ditos pós-modernos é a auto-reflexividade; embora presente em diversos textos literários antigos, ela torna-se estratégia fundamental nos romances metaficcionais pós-modernos.

Já Linda Hutcheon diferencia metaficção de metaficção historiográfica; ela argumenta que a metaficção historiográfica, além da auto-reflexividade, apresenta a preocupação (também central) com a problematização da história. Tendo em mente os conceitos apresentados na fundamentação teórica, a ―história, como relato narrativo, é inevitavelmente figurativa, alegórica, fictícia; ela é sempre já textualizada, sempre já interpretada‖. (HUTCHEON, 1990: 143). Outro importante aspecto da teoria de Hutcheon é o papel exercido pela personagem marginal, silenciosa ou silenciada, membro de qualquer uma das diversas minorias criadas pela sociedade eurocêntrica, habitante das margens da cultura dominante, personagem ao qual ela dá o nome de personagem ex-cêntrico. Hutcheon mostra como a literatura pós-moderna tem trazido para o centro da narrativa essas personagens marginalizadas, dando-lhes uma voz própria e uma posição de sujeito dessas novas produções ficcionais (HUTCHEON, 1990: 60-2), como pudemos ver em Impassioned Clay.

Outro aspecto ligado à metaficção historiográfica é a intertextualidade, que se faz presente na obra literária de Stevie Davies através dos relatos históricos no romance

e sua relação com a herança textual (ficcional e não-ficcional) sobre esse período. A reapropriação desses discursos do e sobre o passado é marcada por uma consciência contemporânea que avalia e questiona esses mesmos discursos. Em Impassioned Clay o recurso historiográfico também é explorado a partir da utilização de fontes antes consideradas não autorizadas pela historiografia tradicional: essa é uma das diferenças em relação aos romances históricos, que só se apoiavam em fontes autorizadas. Um exemplo de como o romance joga com os discursos produzidos e os vultos históricos da época revolucionária inglesa é a inserção, no panfleto de Anna Trapnel, do encontro entre a profetisa pentamonarquista e as personagens Hannah e Isabel, trecho por nós já analisado na primeira parte deste capítulo.

Temos também o encontro de Hannah e do rei Carlos II67, no qual notamos,

mais uma vez, a força dessa personagem: livrando-se dos soldados que tentaram impedi-la de se aproximar, Hannah fala: ―Amigo Charles, uma palavra com você‖. A fala de Hannah é baseada nos relatos sobre a época, como visto no capítulo anterior, pois o uso da palavra ―amigo‖ e do pronome ―você‖, ao invés de ―senhor‖ era um costume quacre que a elite considerava falta de respeito para com o seu status superior. Hannah, se dirigindo a Carlos II, diz: ―Amigo Carlos, você jogou seus amigos verdadeiros em covis impróprios até para bestas. E escuta falsos conselhos. Os Amigos não recusam juramentos & dízimos & tirar o chapéu em sinal de honra por ódio, mas por amor a Deus. Aqui está um papel que eu escrevi para você. Você irá lê-lo?‖ (DAVIES, 1999: 105) Carlos II, impressionado, afirma que lerá a carta de Hannah e vai embora, não mais aparecendo na narrativa do romance. Pode-se ver por essa passagem que Hannah se dirige a um homem de classe superior como se ele fosse seu igual. Essa personagem é o representante máximo de seu país e do sistema monárquico, o qual, como sabemos, tem uma rígida estrutura hierárquica.

Essa atitude transgressora da personagem é uma constante no romance, e seu

67 Depois da morte de Cromwell e do desastroso governo de seu filho Richard, o rei Carlos II foi restaurado no trono inglês em 1660. No entanto, a volta da monarquia não significou a volta do

comportamento em muito aborrece Lyngard, que se considera superior a Hannah não só porque ele é representante do clero protestante, como também porque ele é um homem. Recordemos mais uma vez as duas passagens bíblicas já vistas aqui, que pregam a ideia de que as mulheres são inferiores e devem manter-se em silêncio e serem submissas aos homens. Outro ponto interessante é que Carlos II, sendo um vulto histórico importante, não tem um papel muito relevante na narrativa de Impassioned Clay. Se a obra selecionada fosse um romance histórico, Carlos II seria uma das personagens centrais, e Hannah e Isabel seriam periféricas, isso se elas fizessem parte do romance. No entanto, nessa metaficção historiográfica os papéis são invertidos: é Hannah que está em primeiro plano, e não o monarca inglês.

O romance Impassioned Clay é, antes de tudo, uma releitura do período revolucionário inglês; no entanto, não é somente o passado que é problematizado. Essa releitura que indaga, problematiza, é feita a partir do olhar do presente e da perspectiva de gênero. É principalmente através do discurso de Olívia que vemos problematizada a relação entre romance, o passado histórico e as expectativas históricas condicionadas d@ leitor/a contemporâne@. Olívia, no romance, é uma professora de Oxford, instituição acadêmica de prestígio, lugar onde se produz conhecimento. A escolha da escritora inglesa de fazer sua protagonista uma professora de história não é gratuita; Olívia questiona o fazer-história tradicional, pedindo que seus/suas alun@s imaginem como se sentiriam durante a revolução inglesa, saindo às ruas para procurar vestígios de uma época passada.

A observação de Rita Schmidt sobre os feminismos pode ser utilizada na análise da personagem Olìvia, a qual ―rejeita a noção de verdade não mediada ao postular que toda conquista de conhecimento se dá por mediações de uma série de fatores relacionados à posição específica do sujeito do processo de pesquisa numa determinada formação sócio-polìtica e num determinado momento da história.‖ (SCHMIDT, 1994: 28) Dessa forma, o conceito de política do posicionamento, tão caro aos estudos feministas, também se encontra presente na obra. Ao analisar o discurso de Lyngard, procurando pistas de Hannah nos panfletos de Anna Trapnel e nos silêncios do

manifesto de Hannah, duramente censurado por sua própria mãe, Olívia está ciente tanto de sua posição de mulher lésbica e acadêmica como de que o seu olhar do presente interpreta o passado. Em Impassioned Clay os relatos são mediados pela voz narrativa feminina de Olívia, cujo olhar também é gendrado: ela tem consciência de que seu contexto histórico, suas categorias analíticas e perceptivas como historiadora, sua experiência pessoal e orientação sexual influenciam como ela lê os documentos achados (os diversos panfletos, o testamento de Isabel, o diário de Lyngard e o manifesto de Hannah).

O romance também traz o questionamento sobre a historiografia e sobre como a disciplina história é ensinada:

Quando el@s [@s alun@s] primeiro chegaram, ficaram desconcertados ao serem pedidos para imaginar. A imaginação é um talento do Mickey Mouse apropriado para disciplinas irresolutas como Inglês e Artes. El@s não vieram aqui para imaginar, el@s vieram... para que? Para aprender datas? Para avaliar o preconceito deste ou daquele documento a fim de mostrar que o passado é tão inescrutável como o presente? Sem imaginação, eu @s informei, vocês nunca serão historiador@s. Essa heresia não era aprovada pelo departamento, mas como meus/minhas alun@s, impelid@s talvez por puro pânico, tendiam a alcançar um alto desempenho, ninguém havia denunciado meus métodos. (DAVIES, 1999: 42)

Como discutimos na fundamentação teórica, a imaginação não é bem vinda no universo da historiografia tradicional; e mesmo sendo esse campo repleto de correntes teóricas diferentes, o estudo tradicional da história ainda persiste na contemporaneidade. A quebra dessa forma positivista do pensar-fazer história é questionada não só pela história cultural, como também por historiadoras feministas.

De acordo com a historiografia tradicional, as mulheres não possuíam poder algum, e se encontravam completamente subjugadas ao rei e a seus maridos; entretanto, vemos em vários momentos do romance, mulheres que negam essa condição de subalternidade. A ―descoberta‖ de Hannah e de suas seguidoras revolucionárias pela acadêmica Olívia reflete, na verdade, a realidade de várias pesquisas contemporâneas em diversos campos epistemológicos, como na antropologia, arqueologia e história,