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Muito cedo, o processo de dar à luz – o processo mais natural do mundo – se torna manchado pelas reverberações culturais do terror, e de uma ressonância peculiar de punição.

Adrienne Rich – Of woman born

Na Inglaterra do século XVII, não só o absolutismo estava em crise: o mercantilismo também entrara em declínio. Com a Revolução Gloriosa38 de 1688, que

re-estabeleceu a monarquia, a burguesia conseguiu implantar uma economia de livre comércio no lugar do mercantilismo, que se tornara um entrave para essa classe, na medida em que impedia o aumento da produção e era extremamente limitado por seu caráter francamente protecionista. Já a nobreza, que há muito se acostumara a vender parte de suas terras para os ricos comerciantes, viu uma oportunidade para aumentar suas rendas: os enclosures39 (cercamentos) e o aumento dos arrendamentos. Quando os arrendamentos terminavam, os senhores, ao invés de renová-los com os mesmos preços dos antigos, de acordo com a tradição, elevavam o preço dos arrendamentos a tal ponto que os arrendatários não conseguiam mais pagar e tinham que abandonar suas terras (HUBERMAN, 1986: 106). Expulsos de suas terras, servos e camponeses migravam para as cidades, aumentando ainda mais o número de desempregados. O período entre 1649 a 1658 foi o momento de aceleração dos cercamentos, mas este processo de fechamento de terras estendeu-se até a primeira metade do século XVIII.

No quinto capítulo do romance, a narradora contemporânea acha em sua casa papéis antigos, uma mistura de diário e caderno de receitas. Esse diário trata, intercalado

38 A Revolução Gloriosa foi um evento histórico no qual o rei Jaime II (católico) foi removido do trono e substituído por sua filha, Maria II e pelo marido desta, Guilherme de Orange da Holanda, ambos protestantes.

39 Os enclosures eram parcelas de terra de uso comum que passaram a ser cercadas e de onde se expulsavam os servos e os camponeses, substituindo-os por arrendatários que cultivavam a terra ou

a outros assuntos de sua vida pessoal e familiar, de observações sobre os cercamentos e sobre a Revolução Industrial. A autora desse diário é Nancy, filha de Susan, que nos relata como o senhor Thomas, filho de lady Lucy, cercou sua propriedade. Lembramos aqui que @s historiador@s da Nova História Cultural vêem os diários – antes não considerados como fontes históricas – documentos que possibilitam um melhor entendimento do passado.

Depois de matar um homem em um duelo, Thomas foi mandado para as colônias, onde se tornou rico. Quando retornou, casou-se com sua prima Charlotte Maria, filha de lady Sarah, e começou a promover grandes mudanças na aldeia: primeiro reformou a velha casa grande, substituindo os velhos móveis por cadeiras feitas de damasco com pernas longas e delgadas, e mesas fabricadas com pau-rosa e madeira de cerejeira. No lugar das antigas janelas, mandou colocar envidraçados e construiu no exterior da casa um pórtico com altas colunas. Após modificar a casa, Thomas

(...) decidiu que a própria terra tinha que ser mudada (...) E embora os homens estivessem contentes por receberem seis centavos por dia (...) as mulheres murmuravam desde o princípio, porque, diziam elas, onde vamos nós buscar as nossas ervas medicinais se as grades crescem e as velhas sebes vão abaixo? Porque com elas iam a sarça e a madressilva, a rosa brava e a escabiosa, a framboesa e o espinheiro, os frutos da roseira brava e do espinheiro e remédios que nós conhecíamos. E os resmungos transformaram-se numa fúria aberta quando toda a aldeia foi mudada, porque com as velhas árvores deitadas abaixo e com o novo ha-

ha o senhor podia ver as casas das suas janelas envidraçadas e não as achava a seu gosto e, embora mandasse construir duas filas de casas novas, meia milha para a esquerda, onde não as podia ver, as mulheres não tinham bem nenhum a dizer das suas casas novas (...) Também havia sarilhos na água (...) e algumas crianças adoeceram e morreram. Toda a gente estava certa de que a culpa era da água, porque a água melhor e mais pura fora toda para o belo lago novo do senhor, que não era para uso mas somente para ser visto de casa, onde se espalhava um belo grupo de carvalhos e freixos plantados de novo, mas estava fora do nosso alcance. (FIGES, 1989: 148-9)

Como bem ilustra o texto acima, a questão da exploração das colônias e dos recursos naturais é também contemplada neste capítulo. Thomas faz sua fortuna em uma

colônia, devido às plantações de cana-de-açúcar, e quando retorna à Inglaterra, traz consigo um escravo para servir à Charlotte Maria. As mudanças promovidas por ele na casa grande e os materiais dos quais seus novos móveis são feitos também refletem seu

status econômico. Ao cercar suas terras, Thomas retira da população não só a água melhor e mais pura, reservando-a para si, como também as ervas que eram tão preciosas às mulheres da aldeia. A concentração de riquezas e do poder nas mãos de poucos – nesse caso somente nas mãos de Thomas e sua família – se faz sentir na aldeia, bem como a destruição da natureza, cujos efeitos danosos são sentidos com intensidade. O trecho também ilustra a diferente reação de homens e mulheres em relação às mudanças promovidas por Thomas: os homens, mais imediatistas e egoístas, não tinham a visão de todas as implicações nocivas daquele processo. Já as mulheres, mais preocupadas com os efeitos negativos para a comunidade, viram desde o início o que aquelas mudanças significariam para a aldeia.

Quando o trabalho terminou, os homens perceberam o que deviam ter visto desde o começo: com a terra cercada e com a diminuição da necessidade da mão de obra, nada mais seria gratuito, e assim começou a migração para a cidade, onde muitos pensavam que teriam mais chances de sobreviver. Novamente vemos a conjunção do público e do privado: através da narrativa sobre as mudanças que ocorreram no âmbito familiar, Figes aborda o processo de industrialização e de urbanização do país. Nancy acompanhou todas essas mudanças quando ainda era criança e os efeitos do fechamento das terras comuns da aldeia perduraram até sua vida adulta. Ela casou-se com Jack, um arrendatário, e juntos cultivavam uma pequena porção de terra, mas o que lhes dava lucro e lhes proporcionava uma vida boa era a criação de cordeiros.

Outra consequência dos cercamentos foi o aumento da pobreza entre a população campesina. Muitos migraram para a cidade, só para voltarem tempos depois ainda mais pobres, pois não tinham mais um pedaço de terra para cultivarem. Pessoas que não pertenciam à comunidade também vagueavam pela aldeia, muitas vezes roubando ou matando. Daí o receio e o medo dos vagabundos ou andarilhos e a dura punição infligida aos que roubavam: ―... não é de admirar que muitos lavradores não

durmam sossegados na cama, e falem em enforcamentos, quando os celeiros ardem de noite, e faltam cavalos, e há também histórias de crianças desaparecidas‖ (FIGES, 1989: 154). Recordemos que Delumeau (1989) coloca o medo dos andarilhos, vagabundos e ciganos como um fator presente tanto no medievo, quanto nas sociedades do século XVII.

Apesar disso, Nancy ajudou duas mulheres – mãe e filha – a se esconderem na aldeia. Elas haviam se mudado para a cidade na esperança de obter uma licença para trabalharem como parteiras em uma das novas maternidades, mas não conseguiram, por isso voltaram para a aldeia. Entretanto, elas tinham outro motivo para não ficarem lá: uma delas, Rose, estava grávida e sua mãe não queria que ela desse à luz no hospital da cidade. Nancy descobre que as duas mulheres são parentes suas, pois a mãe de Rose é na verdade filha de Jane, antiga parteira da aldeia e irmã de Susan.

O começo da transformação da obstetrícia numa profissão predominantemente masculina é discutida nesse quinto capítulo. Como vimos, Adrienne Rich sublinha que até o século XVII a obstetrícia era não só um domínio feminino, como também um ofício considerado degradante e aquém das habilidades masculinas. Para RICH (1981: 134), essa opinião está relacionada com a ―misoginia da Igreja dos Pais, que via a mulher – especialmente seus órgãos reprodutivos – como depositários do mal.‖ Contagiados por essa visão misógina, o parto era julgado como um mal necessário, e as parteiras que auxiliavam as parturientes nesse delicado momento eram consideradas sujas e dignas do desprezo masculino.

A repulsa masculina era tão grande que a Igreja permitia que as parteiras realizassem um dos principais sacramentos: o batismo. Isso porque um recém-nascido podia morrer em pecado se um padre não chegasse a tempo para batizá-lo. É importante salientarmos que a Igreja não se preocupava com o bem-estar das parturientes. Prova disso são o batismo in utero, com o uso de uma seringa, e a proibição do uso de qualquer droga para aliviar as dores do parto, consideradas como parte da punição de Eva e de suas filhas. Apesar de consideradas representantes de uma profissão impura e suja, as parteiras eram vigiadas e punidas se tentassem mudar as regras impostas. Agnes

Simpson foi queimada em 1591 por tentar aliviar as dores das parturientes com láudano e ópio, Margaret Jones foi a primeira parteira a ser executada na colônia Massachusetts Bay (RICH, 1981: 129, 136-7) e muitas foram açoitadas por terem ousado desafiar a hierarquia do mundo masculino.

A hegemonia das mulheres na obstetrícia foi, no entanto, sendo quebrada pela presença do parteiro (accoucheur). Historicamente, data-se a mudança da obstetrícia como um ofício predominantemente feminino para um marcadamente masculino em 1663, quando um accoucheur chamado Boucher faz o parto da amante preferida do rei Luís XIV, Louise de la Vallière (RICH, 1981: 139). A partir daí, esta prática espalhou- se e os médicos notaram o quão lucrativa a até então degradante profissão de parteira poderia ser.

Devido às péssimas condições sanitárias dos hospitais da época, muitas mulheres contraíam infecções e morriam. De acordo com Adrienne Rich (1981: 153), o doutor Ignez Philipp Semmelweis constatou que em 1861, ―as mulheres que davam à luz literalmente nas ruas de Veneza tinham uma taxa de mortalidade menor que aquelas dos hospitais.‖ Parturientes, pessoas que estavam morrendo ou que sofriam das mais diversas doenças, tod@s, indistintamente, eram colocad@s nos mesmos quartos e até mesmo dividiam a mesma cama. Refletindo sobre essa realidade, o romance de Figes mostra que o hospital onde Jane ficou internada não era diferente: ―se viam passar as pessoas que lá trabalhavam com uma esponja com vinagre debaixo do nariz. (...) o ar estava viciado, as janelas estavam todas fechadas e as paredes, devido aos bichos, pareciam vivas, e nos quartos não havia uma cama que tivesse menos do que três pobres corpos doentes, e em algumas havia quatro‖ (FIGES, 1989: 161-2).

Nesse hospital, Jane e sua filha encontram-se com Isabel, filha de lady Lucy, que estava em trabalho de parto. Isabel conta como foi enganada por um rapaz, o qual logo depois foi morto em um duelo por seu irmão Thomas. Isabel não ficou muito tempo na companhia de Jane, pois logo foi levada para a sala de partos. Dias depois, um doutor diz à filha de Jane que Isabel dera à luz a uma menina, mas estava muito doente com a febre do parto. Assim como outras mulheres, Isabel morre de febre puerperal, no

mesmo dia em que morre Jane. Suas mortes, no entanto, não são divulgadas, pois os médicos guardavam ―segredo receando que as mulheres em trabalho de parto ficassem histéricas e chorassem e gritassem para serem levadas dali‖ (FIGES, 1989: 162). Além do mais, tantas mortes assustavam a população, principalmente os mais pobres, que dependiam dos hospitais.

Outro aspecto da medicina da época que o romance explora é o uso do fórceps. A escritora nos informa que ele era usado em todos os partos realizados por médicos, mesmo não sendo necessário. É com um toque de ironia que a narradora conta sobre o parto de lady Charlotte Maria:

(...) as cortinas das janelas foram corridas e ele [o médico] trabalhou com um lençol à roda do pescoço, e todo aquele disparate de escuridão e biombos, mais para proteger os seus fórceps de olhos curiosos, já que eles eram um segredo da sua família há perto de cem anos, do que para poupar os seus rubores por ser atendida por um homem com os seus instrumentos. Ainda que ela o viesse a saber bem depressa (...) quando viu a cabeça da criança e o estado em que ficou. (FIGES, 1989: 152)

Assim, para provarem que eram melhores e mais higiênicos que as parteiras, os médicos utilizavam indiscriminadamente seus instrumentos e mentiam sobre as altas taxas de mortalidade nos hospitais. Isso é mostrado no romance pela atitude dos médicos personagens e pelos comentários irônicos da narradora. São esses, entre tantos outros, os cruéis silenciamentos que permeiam a história das mulheres. Umas das formas de visibilizar este silêncio é re(criar), pelo menos ficcionalmente, essas vozes negligenciadas pela história tradicional.