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Os derrotados deixam poucos sinais de sua passagem.

Christopher Hill – Origens intelectuais da Revolução Inglesa

O auge do absolutismo na Inglaterra deu-se entre os reinados de Henrique VIII e Elizabeth I. Com o Parlamento sob controle e com a política mercantilista adotada, os monarcas desse período conseguiram agradar tanto a nobreza, mantendo seus privilégios, quanto a burguesia, que detinha o monopólio do comércio externo. Essa situação, no entanto, gerou contradições que iriam se fazer sentir principalmente no século XVII. O acesso às companhias que realizavam o comércio externo era limitado e o crescimento acelerado da classe burguesa tornou-se um problema para a aristocracia. A nova burguesia teve que se contentar com o mercado interno, menos lucrativo, e passou a investir na produção de mercadorias. Enquanto isso, a alta burguesia lutava para manter seu monopólio do lucrativo comércio externo. Já a população campesina e os pobres, duramente afetados pela alta dos preços e dos tributos, realizavam constantes rebeliões, como veremos nos capítulos posteriores.

Depois de sucessivas dissoluções (em 1626, 1629 e maio de 1640), o Parlamento é reconvocado em novembro de 1640 diante da ameaça escocesa. Em 1642,

37 O número sete exerce papel importante tanto nas culturas antigas quanto nas contemporânceas. Na

teologia cristã este número é considerado um número perfeito, ele aparece no Gênesis, quando Deus cria o mundo em sete dias, até o Apocalipse, onde aparece inúmeras vezes. Lembremos também os sete

quando Carlos I tenta nova dissolução, irrompe a Revolução Civil Inglesa. De um lado, a favor da monarquia absolutista, estavam anglicanos e católicos, os chamados Cavaleiros. Do outro, estavam os calvinistas (presbiterianos e puritanos), chamados Cabeças Redondas. Após sete anos de guerra, Carlos I é julgado e executado, e o regime monárquico é substituído pela República Puritana, ou a Commonwealth, sob a liderança de Oliver Cromwell.

Agora no poder, os puritanos expulsam seus antigos aliados presbiterianos, confiscando seus bens e terras. Isso porque os presbiterianos, liderados pela alta burguesia, defendiam a implantação de uma monarquia parlamentar, enquanto os puritanos, liderados pela pequena e nova burguesia, queriam a implantação da república. Tendo o General Oliver Cromwell como seu principal líder, os puritanos acabam com a rebelião escocesa que ameaçava a Commonwealth. Em 1653, a exemplo dos monarcas anteriores, Cromwell dissolve o Parlamento e se proclama, de forma vitalícia, Lorde Protetor da Inglaterra, com o respaldo do exército e da burguesia.

O quarto capítulo do romance se situa entre o fim da Revolução Civil e a ditadura de Cromwell. Nessa parte do romance não temos Cromwell e os demais vultos históricos como personagens centrais, tampouco a política e seus diferentes partidos são as questões importantes. O que vemos como enfoque são as terríveis consequências da guerra e seus efeitos nas comunidades, nas famílias, em uma clara alteração do ponto de vista em relação aos romances históricos tradicionais, que levariam em consideração somente os vultos históricos que a historiografia tradicional considera importantes.

Lady Lucy e seu marido, o coronel Francis, são presbiterianos, enquanto lady Sarah (irmã de lady Lucy) e seu esposo apoiam Carlos I. Outras duas irmãs, netas de Alice, também estão separadas pela guerra: Jane, a parteira e curandeira do povoado e Susan, aia de lady Lucy, que ficou na casa grande durante vários meses, pois preparativos eram feitos para se enfrentar o eminente cerco à propriedade do coronel Francis. As consequências da guerra foram sentidas de formas diferentes pelas duas netas de Alice. Susan lembrava-se de que lady Lucy precisava fornecer não só cavalos e homens para o exército, como também comida, roupas e dinheiro:

Pouco a pouco [lady Lucy] teve que mandar o seu dote de prata dourada, travessas e jarras e um saleiro finamente trabalhado (...), a longa avenida de carvalhos plantada no tempo de lady Elizabeth teve de ser derrubada para construir uma paliçada. (...) E, durante todo este tempo, lady Lucy continuou receosa. Não passava um dia em que não viessem notícias de um servo detido, de gado roubado ou de saques de veados no parque. Eram interceptadas mensagens em código e as poucas rendas que ainda eram pagas voluntariamente eram coletadas com risco de vida e do corpo. (FIGES, 1989: 124-5)

Jane, no entanto, tinha outras lembranças dos tempos de guerra:

Tetos a caírem, urtigas a crescerem à vontade no meio do cereal por ceifar, e alguns homens que tinham ficado para a altura das colheitas a desertarem. Outros que voltaram mais tarde, sem um olho ou um membro, nunca ficaram aptos para voltar a trabalhar. (...) E se o criado de sua senhoria foi atirado para uma vala quando tentava receber suas rendas, podes censurar-nos, irmã? (...) a verdade é que nós tínhamos que fornecer ambos os lados numa guerra que não tinha nada a ver conosco, uma questão que não causamos. (FIGES, 1989: 126-127)

As recordações diferentes das duas irmãs sinalizam a existência de duas histórias, porque narradas por duas perspectivas diferentes: uma internalizou a servidão feminina, enquanto a outra, mais independente, reflete sobre os problemas de sua classe. Essas recordações nos lembram de que o conceito de uma história única e linear foi uma construção masculina, que deixou silenciada outras histórias. Ademais, essa é mais uma evidência da ligação entre o público x privado que a escritora desenvolve neste romance.

Quando a Revolução Civil termina, lady Sarah muda-se para a casa grande de sua irmã lady Lucy. O marido de lady Sarah fugiu para a França, e sua casa e terras foram confiscadas pelo governo republicano. Lady Sarah estava grávida, e apesar de sua gravidez ter levado quase doze meses, a criança sobreviveu. Foi durante a gravidez de Sarah que a ditadura do Lorde Protetor começou e o coronel Francis é feito prisioneiro pelos próprios puritanos, dado que o exército estava agora sob o comando de Cromwell. No entanto, o foco desse capítulo não é Oliver Cromwell, e sim os dilemas familiares que a narradora considera mais merecedores de registro. Assim, os fatos históricos

servem de pano de fundo para a narrativa da vida dessas mulheres, e não o contrário, como vemos nos romances históricos e em obras de autoria masculina.

Após ter sido libertado, o coronel Francis volta para casa e começa a organizar um exército para defender suas terras, encontrando ―homens cheios de vontade, porque, sem dúvida, a maior parte dos homens ainda são da vizinhança, já se tinham armado contra quem quer que viesse e (...) recusavam-se a pagamentos de qualquer espécie e espancavam os vagabundos de qualquer dos lados suficientemente loucos para viajarem por aquelas paragens‖ (FIGES, 1989: 135-6). O livro mostra como a Revolução Civil, embora já terminada para os mais poderosos, ainda continuava para as pessoas do vilarejo. As mulheres, como por exemplo, Jane, escondiam as poucas provisões que tinham e ―tomavam bagas de hera com receio de mais uma boca para alimentar ou ferviam raízes frescas de arruda e bebiam, bebiam até as cólicas e os vômitos começarem‖ (FIGES, 1989: 135). O romance mostra o que a história tradicional não diz, mas cuja importância é indiscutível.

Mais uma vez o livro mostra como as mulheres utilizam seu conhecimento sobre a natureza para os seus propósitos. Elas também ajudavam na colheita, que devido à guerra, foi pequena. Jane e Susan, assim como Judith e Medhuil, vivenciaram a guerra de formas diferentes. Susan, protegida pelos muros da casa grande, assim como Medhuil foi protegida pela muralha que rodeava o castelo, sentiu os efeitos da guerra quando lady Lucy teve que entregar parte de sua riqueza. Jane, assim como Judith, precisava proteger a si mesma, seja escondendo provisões, seja participando de pequenas rebeliões contra as taxas que devia pagar a sua senhoria. É isso que o romance apresenta ao/à leitor/a, lembrando-@ que inúmeras histórias foram apagadas ou obscurecidas na construção da história tradicional.