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Não há tão grande, nem revolucionário, quanto o menor. (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 52)

A transexualidade masculina é ainda um tema pouco abordado nas pesquisas acadêmicas brasileiras e de pouca evidência dentro do próprio movimento LGBTTT11.

Pode-se dizer que existe certa invisibilidade em relação a essa categoria, em especial

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quando comparada à transexualidade feminina, o que também compreendem Simone Ávila e Miriam Pillar Grossi:

São praticamente inexistentes no Brasil, estudos sobre transmasculinidade e que os transexuais masculinos, parecem ter menos visibilidade que as transexuais femininas, tendo em vista a ampla variedade de estudos sobre travestilidades femininas como os de Marcos Benedetti (2005), Don Kulick (1996, 1997, 1998), Roger Lancaster (1998) e Fernanda de Albuquerque e Maurizio Janelli (1995), e transexualidade feminina, como o estudo de Berenice Bento (2006) em comparação com a quase inexistência de similares sobre transexualidade masculina (ÁVILA & GROSSI, 2010, p. 1).

Dentro desse contexto da escassez dos estudos da transexualidade masculina parece ser indispensável traçar linhas de análises que contemplem essa categoria a partir de um lugar que prestigie o empoderamento12 dos homens trans.

Em relação às nomeações para os transexuais masculinos ressaltamos a inexistência de consenso entre as/os pesquisadoras/es, a comunidade LGBTTT e entre os próprios homens transexuais e seus movimentos sociais. Na literatura encontramos as possíveis nomenclaturas: transexuais masculinos, homens transexuais, homens trans, trans homens, Female to Male/FtM, ou, de mulher para homem, transman.

Todos esses termos nomeiam os homens que foram assignados ao nascer com o sexo biológico feminino, no entanto, sentem-se e percebem-se como homens, assim, reivindicam o reconhecimento social e legal como homem.

Internacionalmente propagou-se o uso da sigla em inglês FtM, female to male, para se referir as pessoas que nasceram com a genitália feminina, mas se autoidentificam com o gênero masculino, a sigla MtF, male to female, é o oposto, ou seja, as pessoas que nasceram com a genitália masculina, mas se autoidentificam com o gênero feminino.

No entanto, outro viés, antes de considerar o gênero como fator para atribuição de nomenclaturas, considera o sexo. Assim, por exemplo, Amanda V. Luna de Athayde (2001), em seu artigo Transexualismo Masculino, atribui aos homens, nascidos com o sexo masculino e que reivindicam o reconhecimento e o processo transexualizador para mulher, a nomeação de transexuais masculinos. Percebemos essa imputação no seguinte excerto:

Focalizaremos aqui apenas os transexuais masculinos. Nestes casos lançaremos mãos de um anti-androgênio, que irá diminuir as características

12 A definição de empoderamento é próxima da noção de autonomia, pois se refere à capacidade de os

indivíduos e grupos poderem decidir sobre as questões que lhes dizem respeito, escolher, enfim entre cursos de ação alternativos em múltiplas esferas – política, econômica, cultural, psicológica, entre outras. (HOROCHOVSKI, MEIRELLES, 2007, p. 486).

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masculinas. Mais freqüentemente, entretanto, os pacientes chegam a um centro especializado para tratamento já em uso de auto-medicação. Outro hormônio a ser utilizado é o estrogênio (ATHAYDE, 2001, p. 412).

Partilham também dessa noção, as psicólogas Maria Jaqueline Coelho Pinto e Maria Alves de Toledo Bruns. No livro Vivência Transexual: o corpo desvela seu drama, percebemos o corroborar dessa nomeação nos seguintes excertos: “No que se refere ao transexual masculino, a cirurgia visa à remoção dos testículos e à formação da neovagina funcionante” (PINTO; DE TOLEDO BRUNS, 2003, p. 52), e “No transexual feminino, são realizadas mastectomia bilateral, que consiste na redução significativa dos seios [...], colocação de próteses testiculares de silicone e faloplastia, (construção plástica do pênis)” (ibid., p. 60).

Esse viés postula-se pelos padrões e normatizações que atribuem causalidade entre sexo/gênero, assim, as designações dadas ao sujeito partem dessa lógica, a qual estabelece que a verdade do sujeito está incidida no sexo.

De acordo com Bento, nessa “mesma lógica da patologização, o saber oficial nomeia as pessoas que passam pelo processo transexualizador de mulher para homem, de ‘transexuais femininos’, e de homem para mulher, de ‘transexuais masculinos’” (BENTO, 2006, p. 44). Desse local de poder atribuidor e nomeador de uma nova identidade de gênero, os/as normalizadores/as do sexo/gênero sustentam seus posicionamentos tendo como referência e defesa absoluta a centralidade heteronormativa. De tal modo, ainda que tenham cumprido todos os processos destinados “... a construção de signos corporais socialmente reconhecidos como pertencentes ao gênero de identificação, os/as transexuais não conseguiram descolar-se do destino biológico, uma vez que o gênero que significará ‘transexual’ será o de nascimento.” (BENTO, 2006, p. 44).

A linguagem utiliza todo o seu poder de designação para alcançar e produzir a verdade que nesse caso lhe parece mais apropriada. Entretanto, sabemos que a linguagem não apenas nomeia, ela é discurso, e enquanto discurso transita entre o “desejo e o poder”, entre sua “vontade de verdade”, como bem lembra Foucault (2010b). O filósofo considera que “por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder” (FOUCAULT, 2010b, p. 10). Sobre as armadilhas da linguagem, Nilson Fernandes Dinis nos lembra de que:

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... este é um eterno embate de resistência aos limites da linguagem, pois aprendemos, com Roland Barthes (1989), que infelizmente a função da linguagem não é comunicar, mas nos sujeitar, nos obrigar a dizer. Nesse sentido, a linguagem seria fascista, pois mais do que nos impedir de falar, nos obriga a dizer utilizando suas formas convencionalizadas (DINIS, 2011, p. 40).

Nesse afã, fascista, de produzir uma verdade, o absurdo a se observar é que a pessoa mesmo na reivindicação de se livrar de um gênero contestado, do qual se esforça para construir uma imagem contrária, se vê obrigada durante todo o processo transexualizador a ser qualificada em sentido oposto ao de seu desejo. Assim sendo, “A nomenclatura oficial retorna à essencialização que a própria experiência transexual nega e recorda todo tempo que ele/ela nunca será um homem/uma mulher de ‘verdade’”. (BENTO, 2006, p. 44).

Em sentido oposto ao discurso oficial, a pesquisadora Bento expõe que suas escolhas para nomear os/as transexuais, parte das subjetividades das pessoas trans e de suas narrativas, mais que se preocupar com a possibilidade de intervenção cirúrgica, preocupa com o desejo que as move. Assim, esclarece: “Utilizarei ‘transexuais femininas’ ou ‘mulheres transexuais’ para me referir aos sujeitos que se definem e se sentem como mulheres, e ‘transexuais masculinos’ ou ‘homens transexuais’ para os que se definem e se sentem como pertencentes ao gênero masculino” (BENTO, 2006, p. 44).

De forma semelhante, Simone Ávila, ao referir-se à transmasculinidade, não toma o sexo como critério para sua nomeação, mas sim o gênero, e utiliza o termo transhomem para se referir “aos sujeitos que foram identificados no nascimento como pertencentes ao ‘sexo’ feminino...” (ÁVILA, 2014, p. 34). Explica que, entre outras considerações, sua escolha se deu, pois:

... ‘transhomem’ se torna um substantivo, que é a palavra com que se denomina, e não se ‘qualifica’, um ser ou um objeto, como é o caso do adjetivo. Ao usarmos ‘masculino’ ou ‘feminino’ após transexual (transexual masculino, transexual feminino), ao usar ‘transexual’ após homem ou mulher (homem transexual, mulher transexual), estamos qualificando o sujeito (idem).

Além de compreender que transhomem é um substantivo, fugindo assim da adjetivação, Simone Ávila também compreende que sua escolha se afasta dos “binarismos já conhecidos, como por exemplo, homem/mulher, masculino/feminino...” (ÁVILA, 2014, p. 34), e se aproxima de uma vertente “polissexual” (idem). Utiliza ainda, outra categoria de grande repercussão em relação aos estudos das transmasculinidades, que é a categoria ‘Transexperiência. Pontua que sua opção se justifica no sentido de partir “da

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categoria ‘experiência transexual’ que aparece frequentemente em estudos publicados no Brasil sobre o tema, em uma perspectiva teórica diferente da psiquiatria...” (ÁVILA, 2014, p. 34-35).

Destacamos a produção na área do direito da pesquisa Transexualismo e direitos

humanos: o reconhecimento da identidade de gênero entre os direitos da personalidade de Camila de Jesus Mello Gonçalves. A autora corrobora a perspectiva da necessidade de se ressaltar a demanda de gênero das pessoas transexuais em detrimento do crivo biológico. Esclarece que “Assim, será considerada ‘mulher transexual’ o indivíduo que nasce com a anatomia masculina e se identifica com o gênero feminino, e como ‘homem transexual’ a pessoa que nasce com anatomia feminina, identificando-se com o sexo masculino” (GONÇALVES, 2014, p. 66). Ponto de vista com o qual compartilhamos.

A ausência de consensualidade em relação à nomeação da/do transexual é notável, assim, é pertinente lembrarmo-nos da alegação de Bento (2006), quando defende a necessidade urgente de se descontruir a patologização imputada pelo saber oficial (jurídico, médico e psi) à vivência transexual. Salienta que tal trabalho de desconstrução deve se iniciar “... pela problematização da linguagem que cria e localiza os sujeitos que vivem essa experiência” (BENTO, 2006, p. 43).

Dada à divergência aqui apresentada, e os pilares que a sustentam, ou seja, por um lado uma prerrogativa que se pauta no sexo como o atribuidor primeiro da identificação transexual; por outro, o gênero como referência central, percebemos a necessidade constante da problematização do discurso, já que esse não é neutro. Ao contrário, pois como argumenta Foucault “... – o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nós queremos apoderar” (FOUCAULT, 2010b, p. 10).

Sabemos que também corremos o risco de nos apoderarmos de um discurso polido, palatável, repleto de boas intenções. Diante da controvérsia em torno da nomenclatura a se adotar para se referir aos sujeitos transexuais masculinos, optamos incialmente em expor as diferentes utilizações e abordagens para posteriormente delinearmos a respeito de nossa eleição.

Como o/a leitor/a deve ter percebido, até o momento de nosso texto não fizemos uma única opção relacionada à nomenclatura a ser empregada para nos reportarmos à transexualidade masculina e aos sujeitos que vivenciam tal experiência. Partimos sim, na esteira da reflexão das pesquisadoras Simone Ávila e Berenice Bento, de uma

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consideração em relação à dimensão de gênero, e não do sexo como fazem as ciências médicas e psicológicas.

Ponderamos a respeito da problemática inserida no ato de nomear, das implicações políticas de uma atribuição identitária, que invariavelmente opera por rotulações, fabricações de sentidos, verdades, inclusões e exclusões. Indagamos quais seriam as contribuições ou barreiras que nosso ato de nomear traria ao sujeito transexual masculino, e a seu corpo coletivo enquanto movimento político-social.

A opção a ser realizada, vai além de uma mera escolha de nome, ou categoria, trata-se de uma tarefa de delicadeza e particularidade ética, especialmente por não viver essa experiência na própria pele, portanto, estarei nomeando o outro. Operarei um processo de diferenciação, já que de fato não me incluo dentro da categoria transexual. Sou a não transexual! Pois, de acordo com Tomaz Tadeu da Silva (2014), quando a linguagem é utilizada para atribuir uma identidade, ao mesmo tempo, aponta a diferença, já que identidade e diferença são interdependentes, inseparáveis, marcadas por relações amplas de poder, e nunca são inocentes. Em outras palavras:

A afirmação da identidade e a marcação da diferença implicam, sempre, as operações de incluir e de excluir. Como vimos, dizer ‘o que somos’ significa também dizer ‘o que não somos’. A identidade e a diferença se traduzem, assim, em declarações sobre quem pertence e sobre quem não pertence, sobre quem está incluído e quem está excluído. Afirmar a identidade significa demarcar fronteiras, significa fazer distinções entre o que fica dentro e o que fica fora. A identidade está sempre ligada a uma forte separação entre ‘nós’ e ‘eles’. Essa demarcação de fronteiras, essa separação e distinção, supõem e, ao mesmo tempo, afirmam e reafirmam relações de poder. ‘Nos’ e ‘eles’ não são, simples distinções gramaticais. Os pronomes ‘nós’ e ‘eles’ não são, aqui, simples categorias gramaticais, mas evidentes indicadores de posições-de- sujeitos fortemente marcadas por relações de poder (SILVA, 2014, p. 82).

O que torna necessário questionar como me sentiria na mesma condição, assim como ponderar sobre qual nomeação seria mais estratégica no sentido de trazer ganhos à luta dos homens transexuais, e não simplesmente qual categoria seria mais favorável ao propósito da presente pesquisa.

Como já alertamos, sabemos que não escaparemos ao rol do poder, pois transitamos nessa mesma roda, e em nossas mãos também se encontra o pesado bastão do poder, que ora muito desejamos, e por vezes tememos não saber controlar seu peso, e assim causar cicatrizes naqueles a quem esperamos atuar em defesa. Igualmente, não somos inocentes, mas esperamos saber manusear o peso do poder que circula por nossas mãos.

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Assim, após muitas conjecturas, optamos em não fazer uma única escolha ao nos referirmos aos sujeitos que vivem à experiência da transexualidade masculina. Sendo assim, adotamos distintas nomenclaturas, como: transexuais masculinos, homens transexuais, homens trans, transhomens, Female to Male/FtM, transman, por compreender que esse é um campo teórico de estudos relativamente novo, que começa a ganhar evidência no Brasil apenas nos últimos anos. Assim, nossa justificativa respalda- se no fato de que a utilização de uma multiplicidade de termos opera um alargamento e empoderamento dessa categoria. Vale ressaltar que também entre os homens transexuais não há uma unanimidade ao se auto referirem, ou ainda, uma única categoria utilizada para se representarem no coletivo.

Em relação aos movimentos sociais de homens transexuais no Brasil, temos o Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (IBRAT), o qual utiliza diferentes nomeações para se referir aos transexuais masculinos, como: FtM, homens transexuais, transhomem, entre outras. Temos o Núcleo de Apoio a Homens Trans (NAHT) e a Associação Brasileira de Homens Trans (ABHT), a qual, em relação à polêmica da autonomeação, Simone Ávila esclarece que:

Leonardo Tenório afirmou no seu discurso que a ABHT não nega as lutas do movimento LGBT e, em especial, a luta de travestis e transexuais, a ABHT quer somar, e não dividir, e aceita todas as autoidentificações, como homens trans, transhomens, FTM, transgêneros, etc. (ÁVILA, 2014, p. 203).

Tais movimentos sociais, juntamente com o aumento de pesquisas acadêmicas direcionadas à problematização da categoria transmasculinidade, têm contribuído nos últimos dez anos para compor um novo cenário e campo de visibilidade para os transhomens e suas lutas.

Sabemos que o homem transexual enfrenta desafios frequentes por estar inserido em uma sociedade que postula um único modelo desejado de masculinidade. O qual não é fácil estar inserido quando não se é um homem esperado pelos ditames de uma sociedade machista, patriarcal, heteronormativa, misógina, sexista.

O FtM se constitui, nesse sentido, como um subversor, pois toma para si o papel de desconstrutor de verdades. O homem transexual é o próprio martelo13 que liquida com

13 Referência à obra de Friedrich Nietzsche Crepúsculo dos ídolos ou como filosofar como o martelo (1888).

O filósofo faz uso do “jogo de palavras” para se referir ao martelamento dos ídolos. Trata-se de uma declaração de guerra aos ídolos, como a moral cristã e crítica à razão e à metafísica. Dessa maneira, lemos

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a verdade da virilidade genital e do falocentrismo, e com um suposto arquétipo daquilo que seria um homem de verdade.

Considerarmos em nossa problematização a transmasculinidade como uma categoria menor, não no sentido numérico de menos, mas pertencente às relações de poder constituídas como menores, ou seja, aquelas não dominantes, não normativas. Emprestamos essa categoria de Gilles Deleuze e Félix Guattari cunhada em Kafka: por

uma literatura menor. Nessa obra os autores consideram que “uma literatura menor não

é de uma língua menor, mas antes a que uma minoria faz em uma língua maior” (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 35).

Em relação à análise da mesma obra, Nilson Fernandes Dinis considera que “O Menor não tem mais uma conotação valorativa pejorativa [...], menor é sempre no sentido de revolucionário” (DINIS, 1998, p. 14). Consideração a qual condescendemos e endereçamos à transmasculinidade, pois essa é menor no sentido revolucionário de seu caráter, uma vez que o homem transexual é o dissidente de uma masculinidade soberana, tida como modelo ideal para a heterossexualidade.

Talvez possamos considerar que o poder circulante nas mãos dos FtM é justamente esse, o de ocupar um lugar de menoridade e, desse modo, capaz de operar potencialmente um desmantelamento do regime de normalização heteronormativa que produz hegemonicamente os corpos masculinos e faz deles reféns. Sendo assim, necessário realizar “Toda uma micropolítica das fronteiras contra a macropolítica dos grandes conjuntos” (DELEUZE, 2004, p. 61). Nesse caso, temos a sociedade heterocentrada como a macropolítica que impõe condutas e verdades aos corpos considerados marginais.

Gilles Deleuze e Félix Guattari apontam ainda uma segunda característica sobre as literaturas menores, ou seja, de que tudo nelas é político. Já “A terceira característica é que tudo toma um valor coletivo” (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 37). Em resumo, as três características da literatura menor são:

... a desterritorialização da língua, a ligação do individual no imediato-político, o agenciamento coletivo da enunciação. É o mesmo que dizer que ‘menor’ não qualifica mais certas literaturas, mas as condições revolucionárias de toda literatura no seio daquela que se chama grande (ou estabelecida) (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 39).

os golpes de martelo como uma forma de desconstruir verdades tidas como absolutas ou crenças enraizadas (NIETZSCHE, 1974, p. 335).

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Aplicamos aqui as mesmas características atribuídas à literatura menor à transmasculinidade. Assim, ao ocupar um espaço de desterritorialização, de um lugar zero, ou de um não lugar, se vê obrigada ao forjar sua própria língua, ou, nesse caso, suas nuances, caricaturas. Podemos dizer que a transmasculinidade constitui-se não como uma identidade de gênero ou sexualidade menor, mas como emergência e evidência de uma nova subjetividade masculina.

Enquanto categoria de menoridade, a transmasculinidade também se constitui por sua dimensão política, possível de reorganizar e engendrar novas linguagens e novos arranjos sociais. Os quais, diante de suas crescentes ramificações e alianças políticas, se tornam capazes de produzirem instrumentos e estratégias que desmontem as normatizações que buscam incansavelmente reconduzir as diferenças sexuais ao bojo da heterossexualidade.

Por fim, também podemos relacionar a transmasculinidade à terceira característica da literatura menor, ou seja, com seu valor coletivo, pois opera em conexão com a multiplicidade de homens trans, em suas mais distintas singularidades e reivindicações. Age como uma categoria desestabilizadora de verdades enraizadas e essencializadas socialmente, as quais implodem as dicotomias de gênero vinculado à lógica da causalidade biológica: feminino/masculino.

Em decorrência de seu caráter político e coletivo, possibilitam também denúncias das injustiças e abusos físicos, morais, psicológicos, afetivos a que são acometidos os homens trans, pelo saber médico, psiquiátrico, psicológico e sociológico, nos diferentes estabelecimentos de saúde responsáveis pelo processo transexualizador. E a que são submetidos cotidianamente nas mais distintas instituições sociais, e acentualmente pela própria família, a qual enquanto produto da sociedade heterocentrada vê-se na obrigação de renegar uma filha, quando essa não atende às designações impostas a seu gênero.

Os dois próximos capítulos serão dedicados a analisar a transexperiência. No segundo capítulo nos debruçaremos nos relatos literários de três homens trans, João Nery, Anderson Herzer e Jô Lessa. No terceiro capítulo analisaremos as cartas com os relatos autobiográficos de Dom.

Compreendemos que essas quatro experiências de vida nos permitirão realizar aproximações com a concepção de menoridade apresentada por Gilles Deleuze e Félix Guattari. Uma vez que suas masculinidades apresentam semelhanças com as

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características da literatura menor, ou seja, com a desterritorialização, o caráter político, e o agenciamento coletivo. Assim, buscaremos desenvolver analíticas mais próximas de uma literatura menor e mais afastada da literatura maior, a partir da compreensão de que:

Uma literatura maior ou estabelecida segue um vetor que vai do conteúdo à expressão: dado um conteúdo, em uma dada forma, achar, descobrir, ou ver a forma de expressão que lhe convém. O que se concebe bem se enuncia... Mas uma literatura menor ou revolucionaria começa por enunciar, e só vê e só concebe depois... (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 57-58).

73 Capítulo 2- RELATOS LITERÁRIOS SOBRE TRANSMASCULINIDADES: JOÃO W. NERY, ANDERSON HERZER, JÔ LESSA.

Então, chegar a falar sem dar ordens, sem pretender representar algo ou alguém, como conseguir fazer falar aqueles que não têm esse direito, e devolver aos sons seu valor de luta contra o poder? Sem dúvida é isso, estar na própria língua como estrangeiro, traçar para a linguagem um espécie de linha de fuga (DELEUZE, 2004, p. 56).

Este capítulo tem por objetivo apresentar e tecer possíveis análises sobre os relatos literários/autobiográficos que versam sobre a história e experiências de vida de três transhomens brasileiros, João Nery, Jô Lessa e Anderson Herzer.

Pretendemos estrategicamente, seguindo as ponderações de Deleuze, possibilitar que a linguagem de nossos interlocutores possa, como estrangeiros às designações normalizadoras dos gêneros, atuar contra o poder hegemônico do sistema sexo/gênero e