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Não poderia iniciar os relatos de Anderson Herzer, de outra maneira, senão com sua própria apresentação feita em A queda para o alto, seu livro autobiográfico, lançado no ano de 1982, o qual tomaremos como referência para tecer nossas análises.

Apresentação

Para que nos apresentemos, vamos a uma poesia, na qual eu me transfiguro, a seguir iniciamos o nosso trabalho. Boa leitura.

A GOTA DE SANGUE

Eu decaí, eu persisti

tentei por todos os meios ser forte. Lutei contra o tempo,

chorei em silêncio gritei seu nome ao vento. Sou filho da gota

fui templo de miséria meu pai, um perdido minha mãe, a megera. Cresci vendo prantos, dormi em meio à mata chorei gotas sanguíneas sou o pecado, sou a traça. Eu ouvi um grito de desespero, vi a lenta corrupção,

vi o olhar do corruptor, vi uma vida na destruição eu vi o assassinato do amor. Tentei, venci, a vitória conquistei porém um dia faleci.

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Hoje estou em sua lembrança eu sou sua alma oculta e serei sua esperança.

Anderson Herzer (HERZER, 2007, p. 23).

A história de Anderson Herzer se arquiteta pela forma como enfrentou uma vida marcada pelo abandono, sofrimento e inumeráveis situações limites. Contra toda desumanidade e secura de seus dias, encontra na escrita da poesia uma rota de fuga repleta de uma beleza decantada em sua própria dor.

O inesperado quase sempre lhe veio revestido pela irrevogável morte, temática recorrente em sua poesia.

A obra de Herzer é um instrumento potente e passível de análises pelos mais diferentes campos de saber, pois há inúmeras conexões presentes, desde a negligência aos direitos dos/das menores à denúncia de uma instituição que se presta a ser protetora de menores, mas é carcerária. De igual modo, a narrativa poética e literária, os meandros e especulações psicológicas em torno dos conflitos indentitários, os quais terão desdobramentos dramáticos, e as questões de gênero e da sexualidade, as quais nos despertam singular atenção. Entendemos que os relatos de Herzer configuram-se como instrumentos possibilitadores da desconstrução dos discursos constituidores dos gêneros dicotômicos e heteronormativos, pois segundo Guacira Lopes Louro “é preciso

desconstruir o ‘caráter permanente da oposição binária’ masculino-feminino” (LOURO,

2012, p. 34-35).

Herzer nasceu em uma cidade do interior do Paraná, Rolândia, no dia 10 de junho de 1962. Relata não se recordar de ter conversado algum dia com sua mãe, ou seu pai, o qual foi assassinado quando tinha apenas 34 anos. Era apenas um menino de aproximadamente quatro anos. “Eu e minha irmã, em cima de duas cadeiras, ajoelhados, olhando o corpo do meu pai em seu caixão” (HERZER, 2007, p. 27).

Havia ainda sua mãe, porém não tinham maiores vínculos, era trabalhadora do sexo, e não tinha tempo para se dedicar aos/às filhos/as; Herzer e duas irmãs. A fome uma conhecida frequente, conforme expõe “... quando tínhamos fome e pedíamos algo para comer, recebíamos de minha mãe uma caneca de água com açúcar; aquele era o único alimento ali dentro” (ibid., p. 28).

Ficava muitas vezes aos cuidados da avó materna e de uma tia. Certo dia ouviu a notícia da morte de sua mãe, “... de repente, pensei em um modo de fugir daqueles

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comentários. Andei em direção aos fundos da casa, onde existia uma pequena horta. Foi lá que eu chorei, sem que ninguém visse, de cabeça baixa, fingindo que estava colhendo abobrinhas.” (HERZER, 2007, p. 27).

Sem pai e sem mãe, foi adotado por sua tia e tio, mudou-se para Foz do Iguaçu. Em retorno de férias à Rolândia, sua cidade natal, mais uma triste notícia, sua querida avó paterna faleceu. Essa era a terceira morte em um curto espaço de tempo em sua vida.

A morte foi assim se tornando quase uma conhecida, uma espécie de companheira às avessas. Ganhou um cachorro que passou a ser sua maior alegria, porém, um dia quando Rex demorava a responder seu chamado, descobriu “Rex, deitado na calçada, com sangue por todo o corpo; perdi meu melhor amigo. Meu Rex estava morto” (ibid., p. 32). Sua poesia se arquitetará de forma a dar voz aqueles que são silenciados, esquecidos em sua invisibilidade de vida. De tal modo, ressalta as vidas abjetas, depositadas na sarjeta da insignificância, a exemplo de sua própria vida. Assim, sua criação se faz entre impossibilidades, uma vez que “A criação se faz em gargalhos de estrangulamento” (DELEUZE, 2004, p. 167).

A seguir trazemos uma dessas poesias, por compreendermos que mais do que fazer parte do contexto de vida de Herzer, fala do anonimato e das linhas incertas de muitas caminhadas de vida; conforme expõe, de suas menoridades; seja a raça, classe, gênero, ou sexualidades não hegemônicas e, portanto, abjetas. Podemos facilmente visualizar a imagem de João Ninguém refletida nas pessoas vítimas da homo/lesbo/transfobia.

Mataram João Ninguém

Quando o próximo sangue jorrar daquele por quem ninguém irá chorar,

daquele que não deixará nada para se lembrar daquele em quem ninguém quis acreditar. Quando seus olhos só puderem fitar o escuro quando seu corpo já estiver inerte, frio e duro, quando todos perceberem morto João Ninguém e quando longe de todos ele será seu próprio alguém. Tantas mãos, tantas linhas incertas,

tantas vidas cobertas, sem ninguém pra sentir, Tantas dores, tantas noites desertas

tantas mãos entreabertas, sem ninguém pra acudir. Qualquer dia vou despir-me da luta

pisar em coisas brutas, sem me arrepender. Tão difícil ver a vida assassinada

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quando estamos já tontos pra tentar sobreviver. As perguntas sem respostas, sem nada,

as vidas curtas e desamparadas o último grito que não foi ouvido calaram mais um homem iludido. E no mundo não dão mais argumentos pra fugir aos lamentos

de quem sozinho falece.

Para esses, não há mais compreensão, não há mais permissão, para que se tropece. Na televisão, o aguardo da cotação

um instante ocupado, para dizer morto João Ninguém mas a aflição ataca, a cotação subiu ou caiu?

e João morreu... ninguém ouviu. Eu vou distribuir panfletos, dizendo que João morreu talvez alguém se recorde do João que falo eu.

Falo daquele mendigo que somos pelo menos em matéria de amor,

daquele amor que esquecemos de cultivar

o qual com tanto dinheiro, ninguém jamais coroou.

Anderson Herzer (HERZER, 2007, p. 146).

Após sua adoção, deixou de ser conhecido como Sandra Mara Peruzzo para ser, temporariamente, Sandra Mara Herzer. Esse foi o nome que o acompanhou em seu meio familiar e social até o início de sua adolescência, quando passa a utilizar o nome social de Anderson Bigode Herzer.

É interessante observarmos que mesmo assinando seu livro no masculino, e ao longo de todo seu relato tratando a si no masculino, muitas/os pesquisadoras/es que tomaram sua obra e história de vida como objeto de estudo, optaram em fazer referência a Herzer no feminino.

Em um de seus poemas, Estado psicológico, afirma: “e se me quer na lembrança,/ guarde meu nome contigo/meu nome é nome, só nome/é simples, mas decisivo” (HERZER, 2007, p. 150). Herzer enfatiza o poder produtivo da linguagem e de seus ecos emitidos pela repetição. Parece saber que a linguagem produz corpo, sujeitos, vidas. E, assim, por sua linguagem escrita, deixa marcado seu nome.

Contudo, conforme observamos no excerto: “Um dos poucos relatos sobre as meninas na FEBEM é o de Sandra Mara Herzer (1982), o Anderson Bigode. Nascida em 1962...” (GONÇALVES, 2015, p. 01), a referência ainda que traga a presença da

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masculinidade, mantém a identidade de Herzer atrelada à naturalização do gênero feminino. De modo semelhante, também percebemos que Renato Cordeiro Gomes segue a mesma dinâmica, pois expressa: “É, neste mundo marcado pela falta de compreensão e carinho, como Herzer redundantemente afirma, que ela vai viver a sua situação-limite em busca de identidade” (GOMES, 2013, p. 204-205).

No artigo Homofobia em a queda para o alto: discriminação x afirmação de

identidade por menores infratores, as autoras e autor, embora optem por nomear Herzer no masculino, em alguns momentos escorregam e, normativamente, o tratam no feminino. Nota-se que, mesmo antes de trazerem uma citação de Herzer afirmando se reconhecer como um rapaz em fase adolescente, o incluía no grupo das meninas lésbicas, conforme observamos no excerto: “... não havia sequer o direito de expressar-se como eram de fato, fazendo com que elas se perguntassem por que não podiam ser aceitas da forma como realmente eram...” (BARBOSA, et al., 2015, p. 6).

Em outra referência, no artigo Experiência autoritária e construção da identidade

em A queda para o alto, de Herzer, o autor Arnaldo Franco Júnior, em muitos momentos também opta por um tratamento no feminino, conforme observamos no excerto: “Amparada pelo então deputado Eduardo Matarazzo Suplicy, a ex-interna da Febem apresentou-lhe poesias e peças de teatro...” (FRANCO JUNIOR, 2009, p. 240).

Percebemos como a linguagem, no poder enunciativo de suas elaborações discursivas, ainda se mantém regulada pelo policiamento dos gêneros, defensor da política heteronormativa, ainda quando parece propositalmente intencionada a descontruir tais regulações. Assim, o que mais uma vez se nota é uma produtividade incansável realizada pelo discurso heterocentrado, o qual não cessa de se renovar e recompor nas mais detalhadas e inesperadas formas.

O cineasta Sérgio Toledo Segall fez uma adaptação do livro A queda para o alto de Herzer para a produção do filme Vera, no qual teve “liberdade para modificar a história real de Herzer” (SUPLICY, 2007, p. 10). Em sua trama Herzer é Vera Bauer, entretanto, apesar do nome feminino, o cineasta traz Herzer como um transhomem, o qual se autonomeia apenas como Bauer. Enfatiza em seu enredo os dilemas enfrentados por um homem trans ao viver a instabilidade de uma identidade de gênero subversiva em uma sociedade que impõe barreiras constantes para a vivência das experiências transexuais.

Para Marie-Hélène Bourcier, é preciso conceber “o sujeito e o agente político não como um centro autômato de soberania e conhecimento, mas como uma posição instável,

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como o efeito de constantes renegociações estratégicas de identidade” (BOURCIER, 2014, p. 10). Assim, nomear um sujeito em um gênero decorrente de um sexo gonodal, constitui uma forma de encerrá-lo numa posição estável e politicamente intencionada.

Nosso olhar buscou trilhar pelas vias da instabilidade e renegociações da identidade de gênero de Herzer. Buscamos perceber o que não se apresenta na essência biológica de seu corpo, ou, em outras palavras, não nos deixamos guiar por sua certidão de nascimento, a qual lhe atestou um nome e um gênero, pois segundo Preciado (2014), todas/os nós já fomos mais ou menos operadas/os quando nos foi inscrito um gênero no nascimento. Uma operação realizada com intuito político de manutenção do sistema sexo/gênero heterossexual.

Por meio de seus relatos, compreendemos que Herzer nos dá várias indicações de que desde cedo se reconhece e busca construir vivências e performances dentro de um universo convencionalmente considerado masculino. Enaltece que seus melhores e inesquecíveis amigos eram Artur e Duda. Suas brincadeiras preferidas não se vinculam ao ideário tradicional feminino, relata que “Aos domingos, jogava bola no campinho, matinê à tarde, às vezes brincava de carrinho num terreno baldio, construía barracos no mato e saía à procura de bichos, com meu revólver de espoletas e um pedaço de pau” (HERZER, 2007, p. 33).

Ao arquitetar sua trajetória em territórios nomeadamente reconhecidos como pertencentes à dimensão masculina, certamente não o fez sem embates, pois, conforme nos relata, aprendeu precocemente a ser um contestador das normas. Assim, possivelmente teve que burlar os regulamentos impostos a seu gênero biológico, por exemplo, no que se refere às suas escolhas por brinquedos e brincadeiras reservadas aos meninos, especialmente por sua infância ter sido vivida no contexto da década de setenta.

Podemos conjecturar que Herzer ao perceber que “O contexto social, ao construir o que é próprio do sexo (menino e menina), inventa os atributos de gênero (masculino e feminino)” (FURLANI, 2011, p. 69), buscou traçar para si, por meio das brincadeiras vinculadas à dimensão masculina, os atributos tradicionalmente catalogados para o gênero desejado. De alguma forma parecia intuir que “Essa construção cultural geralmente é limitada e engessa o aprendizado das crianças, sobretudo quando nós, professores e professoras, nos apegamos às construções rígidas de gênero, considerando não adequado que meninos brinquem de casinha, por exemplo” (idem).

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Ao discorrer sobre a destruição de sua nova casa, derrubada por uma forte ventania, parece querer marcar os próprios vendavais que atravessaram sua vida, e a impregnou de destruições constantes. Afirma que “O tempo foi passando e levando com ele as lágrimas de um coração quase sempre ameaçado pela destruição” (HERZER, 2007, p. 28).

Uma forma de enfretamento às seguidas destruições e à ausência de carinho e afeto em sua vida, já que não os encontrara em sua nova família adotiva, será um comportamento de agressividade e rebeldia. Afirma que “O tempo foi passando, e eu me tornando uma criança adulta, que lutava contra tudo e contra todos que viessem a me aborrecer com opiniões sobre fatos contra os quais eu me colocava: a agressividade parecia ter se infiltrado no meu sangue” (HERZER, 2007, p. 33).

Na escola sempre se envolvia em brigas, acarretando diversas queixas dos/as professores/as, da vizinhança. E mesmo que Herzer não se dedique muito a relatar os conflitos na escola, nos permite pensar que sofria discriminações e preconceitos no contexto escolar, decorrentes de sua identidade de gênero. Segundo Ávila, em pesquisa realizada com transhomens, “... seria ingenuidade pensar que seus tempos de escola tenham sido fáceis. Eles também relatam inúmeras situações de violência na escola” (ÁVILA, 2014, p. 117).

Sabemos que a escola tem sido historicamente, ao lado de outras instituições reguladoras e normativas, especialmente a família, responsável por incentivar, produzir ou mesmo impor, estrategicamente, padrões hegemônicos e dicotômicos de gênero. A criança apreende na escola, como em uma retroalimentação dos ensinamentos familiares tradicionais, o que é o mais adequado e valorizado para cada gênero. Meninas ou meninos internalizam, precocemente, que ser valorizadas/os e reconhecida/os como mulher/homem exige o cumprimento protocolar de postulados polarizados e marcados para cada gênero.

Estar à margem de um padrão normativo dos gêneros em um ambiente escolar significa quase que diretamente se submeter à experiência de marginalização, aversão, exclusão, conflito e dor. A homo/lesbo/bi/transfobia é uma realidade elaborada, costurada nos mais variados espaços educacionais, assim, necessita ser incansavelmente desconstruída em suas minuciosas estratégias de produção dos corpos, saberes e subjetividades, pois de acordo com Richard Miskolci:

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No caso as “identidades de gênero”, desde a infância, os sujeitos são ensinados a se enquadrar em padrões normativos, demarcando fronteiras do que é esperado ou não de uma menina ou menino. Esses corpos são vigiados pela sociedade (família, escola, mídia), de forma a não apresentar ambiguidades e se ajustar a comportamentos percebidos como “normais” (MISKOLCI, 2014, p. 61).

De modo semelhante às suas perdas precoces, Herzer, aos quatorze anos, já havia alçado vários voos ao romper os convencionais espaços designados para sua idade, “Às noites, não dormia mais em casa; ao entardecer eu saía e só voltava no dia seguinte” (HERZER, 2007, p. 35).

Passou a frequentar um bar-lanchonete, perto de sua casa, em que só frequentavam homens com mais de trinta anos de idade. A bebida passou a ser mais que um hábito, tornou-se uma necessidade, o alimento diário de sua existência, uma possibilidade de vida perante as amarguras acumuladas, e os acontecimentos não menos áridos em sua nova família adotiva. Herzer compartilha que:

Sem o álcool, eu não era nada, brigava muito em casa, mas bastavam algumas doses e me transformava, jogava palitos, baralho, participava de rachas de carro e motos, em São Bernardo do Campo. Porém, se não bebesse nada, só tinha vontade de fugir, de brigar, de ver sangue alheio ou mesmo o meu. [...]sentia-me feliz; naquele mundo não havia tristeza, não havia ódio, era como uma viagem a um mundo perdido (ibid., p. 35-36).

O álcool se tornou um vetor de força, que como o próprio Herzer afirma, o transformava, e permitia-lhe inventar novos modos de vida e de subjetivação, entendida segundo Foucault, como “... o processo pelo qual se obtém a constituição de um sujeito, mais precisamente de uma subjetividade, que evidentemente não passa de uma das possibilidades dadas de organização de uma consciência de si” (FOUCAULT, 2012, p. 256). Por meio da embriaguez podia ser mais um homem a jogar palitos e baralho num bar; era uma viagem, uma rota de fuga em sentido deleuziano, passível de romper as normatizações impostas em sua família, escola, em sua dureza cotidiana. Mesmo perante os riscos da dependência, era uma das linhas disponíveis para que pudesse seguir; mais tarde essa linha se bifurcará em outro efeito embriagador, o da escrita de poesias.

Devido sua dependência em relação ao álcool, sua mãe o internou na Comunidade Terapêutica Enfance/CTE. Afirma que a grande ironia era o paradoxo da situação, pois apesar de ingerir muito álcool, e passar quase todas as noites no bar próximo à sua casa, nunca havia ingerido drogas. Entretanto, “... a Comunidade Terapêutica Enfance/CTE não me guardou desse obstáculo” (HERZER, 2007, p. 36). Em um local que deveria

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realizar o tratamento de seu alcoolismo, conheceu as drogas, por meio do uso do comprimido Optalidon.

Ao sair dessa clínica foi levado por sua mãe para um tratamento psicológico, o qual não suportava. Foi novamente internado, dessa vez na clínica Instituto Eldorado de Repouso. Saiu depois de três semanas, devido sua promessa de não mais beber. Porém, não conseguia se afastar da bebida. Abandonar o consumo do Optalidon foi possível, mas o álcool era seu motor.

As internações a que foi submetido representam os dispositivos iniciais, atravessados por relações de poder, as quais minuciosamente produziram as delinquências e infrações que posteriormente conduziu Herzer à Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor (FEBEM), e as sofisticou em mecanismos ainda mais refinados, pois de acordo com Foucault “As relações de poder são, antes de tudo, produtivas” (FOUCAULT, 2012, p. 354).

A ameaça de sua mãe e de seu pai em encaminhá-lo à FEBEM, tornou-se frequente. Até o momento que se cumpriu, pois “... um dia, chegara em casa pela manhã, mal me deitara para dormir, fui acordado com alguém me chamando. Olhei ao redor de minha cama e entendi tudo: meu pai, minha mãe, uma mulher e um policial, todos me fitavam” (HERZER, 2007, p. 38).

Desabafa ao dizer que quando a perua da FEBEM se afastava o levando, sua mãe deixava cair lágrimas da face, no entanto, questionava o motivo de seu choro, já que o havia internado em três lugares seguidos. Acreditava que todos queriam na verdade livrar- se dele, como se livra de um objeto inútil.

As internações de Herzer em clínicas psicológicas, embora visassem o tratamento ao alcoolismo, certamente possuía motivações semelhantes àquelas que levaram a mãe de Jô Lessa a encaminhá-lo para internações em clínicas psiquiátricas. Conjecturamos que a internação de Herzer se deve ao fato de também vestir, transitar, circular com um corpo tido como abjeto e, assim, não desejável aos padrões heterocentrados, pois segundo Louro:

As normas regulatórias voltam-se para os corpos para indicar-lhes limites de sanidade, de legitimidade, de moralidade ou de coerência. Daí porque aqueles que escapam ou atravessam esses limites ficam marcados como corpos – e sujeitos – ilegítimos, imorais ou patológicos (LOURO, 2013b, p. 84)

Ao entrar na FEBEM, de imediato percebeu que aquela fase seria a mais difícil e dolorosa de sua vida. Seria “Um encontro direto com a marginalização!” (HERZER,

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2007, p. 39). As palavras de Herzer estavam, assim, estreitamente conectadas com o pensamento foucaultiano, ao afirmar que “As prisões não diminuem a taxa de criminalidade: pode-se aumentá-las, multiplicá-las ou transformá-las, a quantidade de crimes e de criminosos permanece estável, ou, ainda pior, aumenta” (FOUCAULT, 1999, p. 292).

Após narrar a perda de seu e sua genitor/a, a adoção pela/o tia e tio, a infância marcada por sua personalidade agressiva, a precoce boemia e alcoolismo, as internações em clínicas para o tratamento do alcoolismo, sua ida para FEBEM, explica às/aos leitoras/es, no capítulo VII, os acontecimentos ocorridos com sua família adotiva antecedentes à sua ida para Febem.

Afirma que desde o período da infância, o desentendimento entre ele, sua mãe e seu pai adotivos se iniciaram. Em resumo, a trama se deu devido Herzer ter delatado ao