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A adolescência e o exílio imposto pela família (Referência principal: 6ª Carta: O concreto do Planalto Central/ Anexo 6)

Na carta O concreto do Planalto Central, Dom narra sua ida para Brasília aos 12 anos de idade, quando foi morar com a prima. A expectativa de sua família é que pudesse “seguir o exemplo de mulher que ela era, feminina, educada, culta e graduada” (ANEXO 6). Havia uma expectativa de que a produção da feminilidade, não eficaz no período da infância, pudesse ser efetivada na convivência com uma mulher feminina e inserida no ar político e inovador da capital federal. Era preciso esboçar uma filha-mulher nos moldes hegemônicos do que é traçado para a conduta feminina, pois a “A educação do sujeito e a harmonização da forma não param de obcecar nossa cultura, de inspirar as

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segmentações, as planificações, as máquinas binárias que as cortam e as máquinas abstratas que as recortam” (DELEUZE; PARNET, 1998, p.106).

Entretanto, apesar de tentar cumprir a meta traçada por sua família e prima, Dom descobrirá subterfúgios em outros caminhos, os quais o levarão a reafirmar sua masculinidade, mas não sem grandes conflitos.

É importante notarmos a fina metáfora construída para estampar seu sentimento de angústia, medo e aprisionamento ao ter que criar uma estratégia para negar o gênero identificado e forjar aceitar viver o gênero designado em seu nascimento. Para expressar a captura de seu gênero masculino faz um paralelo metafórico entre a solidez do concreto e a sonhada liberdade de fragmentá-lo, uma vez que se sentia sufocado. Delineia: “... aquele concreto erguido nos dias cinza do Planalto Central, aonde eu sempre sozinho, ia me divertir rasgando minhas calças escorregando na cúpula do senado, era uma agressão ao meu sonho de liberdade.” (ANEXO 6). A rigidez que constitui a amálgama dos concretos parece ser feita da mesma matéria-prima que solidifica as normativas do sistema heterocentrado, o qual lhe impedia a liberdade de viver sua masculinidade.

Convivia com o paradoxo de ter que ocultar sua identidade de gênero, pois acreditava que “... jamais poderia revelar minha verdadeira identidade” (idem), e a necessidade de forjar, construir uma identidade que estivesse em adequação com a causalidade de seu corpo biológico; era preciso ser mulher. Ainda que isso sufocasse suas maiores expectativas e desejo de viver como homem.

Precisava escapar à arquitetura cimentada e acinzentada produzida dentro si, pois “Era como se aquela arquitetura dissesse a todo o momento que eu era totalmente errado e só, naquela selva de pedra” (ANEXO 6). Essa sensação de estar errado e, abandonado em seu erro, impossibilitará Dom de reconhecer as sofisticadas tramas do poder ao elaborar mecanismos políticos para inscrever nos corpos as vontades de um sistema sexo/gênero hegemônicos e normativos. Como argumenta Preciado: “Os contextos sexuais se estabelecem por meio de delimitações espaço-temporais oblíquas. A arquitetura é política. É ela que organiza as práticas e as qualifica: públicas ou privadas, institucionais ou domésticas, sociais ou íntimas” (2014, p. 31).

Se por um lado Dom, desde criança, sentia prazer e alegria por ser reconhecido como menino, aos poucos, em especial com a chegada da adolescência, começa a sentir um pânico diante de sua diferença. Experimentava a força dos valores hegemônicos e da clandestinidade que lhe era imposta. As palavras cortantes e imperativas de suas primeiras

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professoras, ou seja, de que não era um menino, pareciam ressoar com mais força em sua cabeça. Agora “Para um adolescente na minha condição isso era como uma navalha na alma” (ANEXO 6).

Os sentimentos que agora lhe rondavam eram de temor, vergonha, pânico, pois sentia seu “... rosto queimar de vergonha quando alguém dizia que eu estava parecendo um moleque” (ANEXO 6).

A culpa, ou vergonha, não é um atributo particular, individual. É efeito de uma sociedade orquestrada para ser mantenedora de uma sexualidade tida como natural, biológica, passível de reprodução por ser considerada legítima ao assegurar a ordem familiar heterossexual. Louro argumenta que por meio de variadas “... estratégias de disciplinamento, aprendemos a vergonha e a culpa; experimentamos a censura e o controle. Acreditando que as questões da sexualidade são assuntos privados, deixamos de perceber sua dimensão social e política” (LOURO, 2013a, p. 27).

A estratégia e revolta da infância de lançar ao chão as tampinhas tomadas pela professora, em sala de aula, já não lhe era mais possível. Seria preciso tentar outras rotas de fuga. Ainda que fosse simular sobre sua pele uma capa, criar uma pessoa desejável socialmente, mesmo que inexistente no reconhecimento de sua subjetividade. Precisava, especial para a prima que o acolhera, simular atração por garotos, quando de fato desejava ser visto e desejado como um. Relata:

Naquele momento eu precisava urgentemente construir uma identidade que não a decepcionasse (eu tinha que ser mulher) [...] Passei a ter a necessidade de inventar interesse em garotos para agradá-la. Dizia a ela que na minha escola tinha um garoto ou outro que me interessava (ANEXO 6).

Movido pelas mesmas circunstâncias e sentimentos, João Nery também se vê interpelado a criar estratégias para não ser vítima de exclusão e preconceito, fala da necessidade de se criar uma “... espécie de pista falsa, de conduta desidentificadora, para evitar os rótulos tão incômodos” (NERY, 2011, p. 50).

Ambos tentam escapar dos apontamentos, discriminações e dos guetos da marginalização. Nesse caso, o que parecia estar em questão era o temor de serem identificados como pertencentes ao grupo identitário das homossexualidades, ou seja, que fossem reconhecidos como lésbicas. A princípio, a estratégia usada será semelhante à distinguida por Eve Kosofsky Sedgwick (2007), quando afirma que pessoas não heterossexuais acabam forçadas a não assumirem publicamente sua orientação sexual, e permanecem reclusas em sua privacidade, pelos mais diferentes armários produzidos

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normativamente na sociedade heterocentrada. O objetivo é evitar justamente as acusações, julgamentos e penalidades dos diferentes grupos sociais, em particular do primeiro deles, a família. Mesmo não sendo gays, vivenciam em algum período a mesma necessidade e segurança do armário. Dom trancafiará sua masculinidade durante um longo período de sua vida, pois como expressa Sedgwick:

O armário gay não é uma característica apenas das vidas de pessoas gays. Mas, para muitas delas, ainda é a característica fundamental da vida social, e há poucas pessoas gays, por mais corajosas e sinceras que sejam de hábito, por mais afortunadas pelo apoio de suas comunidades imediatas, em cujas vidas o armário não seja ainda uma presença formadora. (SEDGWICK, 2007, p. 22)

A produção minuciosa da política de emolduramento dos gêneros exigirá atuações correspondentes com a inscrição realizada nos corpos em seu nascimento. Mas, segundo Leandro Colling (2013, p. 8), “Além de exigir uma linha coerente entre o “sexo biológico” e o gênero, as normas também exigem que as pessoas desejem uma outra pessoa considerada do sexo e do gênero oposto e ainda pratiquem esse desejo de uma determinada forma bem restrita”. Exigência que será feita pela prima de Dom, entre inúmeras outras pessoas de seu ciclo de convivência, entre amigos/as, colegas de trabalho, familiares. Relata que a prima evidenciava “... o quanto era bom namorar um rapaz, fazia questão de deixar claro que eu já estava na idade de interessar por um garoto, o que não ocorria de maneira alguma” (ANEXO 6).

Dom precisava provar ser a mulher que nunca se reconheceu, ou desejou ser; era levado, incitado a atestar os atributos designados para seu gênero de nascimento, o qual pela vertente heteronormativa implica uma relação causal entre gênero e orientação sexual. Atestar a sua feminilidade perpassava em mostrar interesse por meninos.

Para Dom, simular uma orientação sexual oposta a de seu desejo afetivo-sexual era, e será em outros momentos importantes de sua vida, uma via tortuosa, porém mais admissível do que simular uma estética ou gênero feminino.

Compreendemos nessa escolha um atravessamento puramente político e social, pois podia teatralizar interesse por garotos, uma vez que na esfera privada sabia que essa era uma realidade inventada. Por outro lado, vestir-se nos moldes daquilo que a sociedade hegemônica atribui como sendo próprio à dimensão feminina, não era algo minimamente suportável para nosso colaborador. Por exemplo, teve boa intenção em não ofender a prima quando essa lhe sugeriu e deu de presente saia e batom, tentou a experiência de usá-los. Afirma que vestiu a saia e passou o batom, porém o “... resultado foi que eu não

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tive coragem de sair do quarto, a sensação foi pior que quando alguém dizia que eu parecia homem, não tive alternativa, tive que dizer a ela que a saia e o batom não davam em mim, eu não conseguia sair daquele jeito...” (ANEXO 6).

Dom se esforça para performatizar certa adequação à feminidade padrão, porém, toma para si uma culpabilidade por não se adequar às normas dicotômicas dos gêneros. O que lhe resta é o receio de perder o respeito e carinho da prima que o acolherá. Demonstra o desejo de não decepcioná-la ao afirmar: “Minha prima me tratava muito bem, dizia sempre que gostava muito de mim e isso melhorou bastante a minha autoestima” (idem). Toda a pressão sofrida lhe gerava um enorme conflito, comum entre pessoas desviantes dos gêneros e sexualidades normativas. Sobre os conflitos vivenciados por pessoas transexuais em relação às normas de gênero, Bento considera:

Esse processo de fuga do cárcere dos corpos-sexuados é marcado por dores, conflitos e medos. As dúvidas ‘por que eu não gosto dessas roupas? Por que odeio tudo que é de menina? Por que tenho esse corpo?’ levam os sujeitos que vivem em conflito com as normas de gênero a localizar em si a explicação para suas dores, a sentir-se uma aberração, uma coisa impossível de existir (BENTO, 2011, p. 551).

Será mais fácil fingir se interessar por garotos do que violentar seu corpo ao lhe impor o uso de indumentárias femininas. Era intolerável a exibição pública do gênero odiado. Se a face lhe queimava quando alguém dizia que estava parecendo um moleque, ardia-lhe a alma quando via no espelho a exibição ampliada do corpo repudiado. Fugir do corpo que lhe recusava o reconhecimento de sua identidade masculina será uma arma potente, a qual Dom não abrirá mão ao longo dos mais distintos itinerários percorridos. Certamente a usará como forma de manter sua dignidade e enfrentar as adversidades postas.

Batom somente para ser retirado da boca das amadas que conhecerá nas curvas da arquitetura brasiliense, por meio das professoras que o transportará dos conhecimentos científicos e acadêmicos às práticas da sexualidade, da sensualidade regada à boa música e muita literatura.

Evitava olhar os decotes e as saias das meninas de sua idade, pois temia se entregar e revelar seu segredo perante uma possível paixão. Preferirá caminhar por outra linha, acreditando ser essa uma garantia de mais segurança. Passa a se interessar por mulheres mais velhas, estratégia que tem mantido ao logo de sua vida. O que não esperava era ser correspondido em seu interesse. Dom expõe:

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Por outro lado, comecei a ter interesse por mulheres mais maduras, sonhava com a tigresa da música do Caetano Veloso. Nessa fase eu vivi inúmeras paixões platônicas por mulheres maduras e extremamente fora da minha realidade, muitas eram minhas professoras e outras eram de outros lugares que eu frequentava, tal como as reuniões do PC do B. O fato de me apaixonar por essas mulheres me dava à certeza e a tranquilidade de que meu segredo estava seguro, tal qual o concreto do Oscar Niemeyer(ANEXO 6).

Porém, o concreto lhe trairá as expectativas ao mostrar a inexistência da suposta e desejada segurança perseguida pela maioria dos sujeitos. A respeito da ânsia por previsibilidade argumenta-nos Daniel Soares Lins que “A razão humana detesta a incerteza. Queremos sempre prever o que vai acontecer ou conhecer antecipadamente o que seria o resultado de nossas iniciativas ou o termo de um projeto no qual estaríamos implicados” (LINS, 2013, p. 131).

Se antes a escola lhe era aversiva, se mostrará também como um lugar de intensos encontros, pois como veremos na maioria de suas demais cartas, é na escola que tecerá conexões de amizade e, particularmente, encontros amorosos, pois com suas principais companheiras o primeiro contato se deu por mediação do contexto e território escolar. Concordamos com a defesa de Rosimeri Aquino da Silva e Rosângela Soares quando reverbera:

A escola é um espaço de relações sociais e não somente um espaço cognitivo. As relações sociais referem-se ao fato de a escola ser tanto um local de encontro entre jovens quanto um local que tem relações com a mídia e outros espaços culturais (SILVA; SOARES, 2013, p. 91).

A escola tece ferramentas disciplinares, elege discursos e utiliza suas técnicas sutis de poder para produzir nos corpos um gênero e sexualidade desejáveis, normativo e correspondente à lógica binária macho/fêmea em defesa da manutenção da heteronormatividade. A escola opera diversos e minuciosos mecanismos de agenciamento, por exemplo, banheiros separados por gêneros dicotômicos, brincadeiras, esportes, jogos, gestos, posturas corporais e falas designadas como apropriadas e diferenciadas para meninos e meninas. Cores divididas entre universo azul, ou cores mais escuras para meninos, e rosa, ou cores mais claras para meninas. Entre outras fabricações destinadas a manter a ordem dualista dos gêneros.

Todavia é preciso considerar que contra toda tentativa de poder e captura, há sempre engendramentos de ruptura, subversão; o poder, como salienta Foucault (2010a), é transitório, circular, está em todas as mãos, ou, por suas palavras: “- que lá onde há

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poder há resistência e, no entanto (ou melhor, por isso mesmo) esta nunca se encontra em posição de exterioridade em relação ao poder” (FOUCAULT, 2010a, p. 105)

Os sujeitos quase nunca acatam designações sem se rebelarem contra uma determinada ordem, em particular, aquelas que agridem seus modos de experimentação de vida. A partir dessa compreensão é fácil perceber que a arma mais potente no ambiente de sobriedade e aparente racionalidade escolar é a formação dos grupos de amizade e de relações amorosas. O que é visto nas dinâmicas de Dom quando afirma: “Aos 16 anos meu sangue fervia como de qualquer adolescente da minha idade, gostava das festinhas que rolavam na Asa Norte, de ouvir Cazuza, Legião Urbana, RPM etc., com as poucas amizades que conquistei no Colégio” (ANEXO 7).

Se as/os professoras/es a princípio são quem seriam as/os representantes de um poder legal, aos estudantes cabe o lugar de menoridade. Entretanto, não sem subvertê-lo ao realizar pequenos atos de potência de vida, tais como: o amor, amizade e o sexo em suas múltiplas nuances. Sem traçar nenhuma via precisa, Dom realizará uma dobra em relação às asperezas do contexto escolar. Fará de seus desafetos com as primeiras professoras uma arma de enfrentamento. Se antes eram inimigas, como afirma: “As professoras de fato me odiavam, e eu a elas, e a escola” (ANEXO 3), se tornarão, em larga medida, aliadas, companheiras de vida, jornadas e rotas de fuga. A teia de relações estabelecidas por nosso colaborador nos ajudará a compreender que nos espaços disciplinares e de relações hierárquicas, poder e prazer muitas vezes fazem parte da mesma estratégia de produção das sexualidades. Pois, como bem mostra Michel Foucault...

Captação e sedução; confronto e reforço recíprocos: pais e filhos, adulto e adolescente, educador e alunos, médico e doente, e o psiquiatra com sua histérica e seus perversos, não cessaram de desempenhar esse papel desde o século XIX. Tais apelos, esquivas, incitações circulares não organizaram, em torno dos sexos e dos corpos, fronteiras a não serem ultrapassadas, e sim, as perpétuas espirais do poder e prazer (FOUCAULT, 2010a, p. 53).

3.7 Experiências em Brasília - Primeiras paixões (Referência principal: 7ª Carta: O