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Minhas múltiplas faces Minha não aceitação – O retorno de Brasília (quando o tiro saiu pela culatra ) (Referência principal: 8ª Carta: De volta às raízes e a

decepção do real / Anexo 8).

Nosso colaborador retorna a sua cidade natal na expectativa de poder reencontrar junto a sua mãe e seu pai, agora residentes na zona urbana, o espaço para afirmar sua masculinidade. Movido pelas lembranças reconfortantes do tempo que vivia no campo, antes de se ingressar na escola, cogita poder ser o mesmo menino que andava a correr livremente pelos campos, de pé no chão, a subir em árvores, de shorts e sem camisa. Buscava o que nomeia de “harmonia com a minha identidade” (ANEXO 8).

Afirma que apesar de certa liberdade que exercia em Brasília, ao “passar despercebido na multidão” (idem), havia ainda uma “inquietação sem fim, a procura de mim mesmo” (idem).

É visível o clamor e ânsia por aquilo que nomeia de identidade, entretanto, talvez o que nosso colaborador estivesse a procurar, em um primeiro momento, era por possíveis espaços para vivência de sua singularidade, uma vez que os “... processos de singularização – poder simplesmente viver, sobreviver num determinado lugar, num determinado momento ser a gente mesmo – não tem nada a ver com identidade (coisas do tipo: meu nome é...) (GUATTARI; ROLNIK, 2013, p. 80-81). Entretanto, a singularidade de sua masculinidade encontrará no espaço da pequena cidade do interior barreiras ainda mais rígidas do que as deixadas na capital do país. Reconhece: “Delirei ao imaginar que a proteção dos meus pais me deixaria imune aos olhares e julgamentos alheios” (ANEXO 8).

O que terá é o reforço de seu gênero assignado no nascimento, a despeito da linguagem corporal revestida de enunciados masculinos, por meio das vestimentas, cabelo e acessórios; o que não será impedimento para que as pessoas o reconheçam no

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feminino. Essa vivência do gênero de identificação, ainda que inicialmente apenas pelo uso de vestimentas tidas como masculinas, se realizará de forma clandestina, pois os/as transexuais não tiveram abertura ou incentivo em sua família, escola, e sociedade em geral para vivência do gênero reconhecido. Nessa direção Berenice Bento considera que:

Depois de um longo período de impedimentos, começam a vivenciar experiências do gênero com o qual se identificam. Como não tiveram acesso à socialização de uma menina (para as trans femininas) ou de um menino (para os trans masculinos), tampouco vivenciaram os processos de interiorização das verdades que resultam na incorporação de uma determinada estilística dos gêneros, terão de aprendê-las (BENTO, 2014, p. 57).

Podemos dizer que, em um segundo momento, o anseio de nosso colaborador é sim por uma identidade, todavia, “... a identidade está frequentemente vinculada ao reconhecimento. Quando a polícia pede a carteira de identidade de alguém é justamente para poder identificá-la, reconhecê-la socialmente” (GUATTARI; ROLNIK, 2013, p. 80- 81). Nesse caso, o reconhecimento será normativo, uma vez que os olhares estarão governados pela linearidade biologizante sexo-gênero-desejo-orientação sexual. A identidade que pretende afirmar é considerada abjeta, anormal. Logo, estará submetido a um processo de normalização de identidades, já que “Normalizar significa atribuir a essa identidade todas as características positivas possíveis, em relação às quais as outras identidades só podem ser avaliadas de forma negativa. A identidade normal é ‘natural’, ‘desejável’, única” (SILVA, 2014, p. 83).

Sua expectativa era poder exercer “... o direto de ser eu mesmo e de ser aceito como realmente sou” (ANEXO 8). Entretanto, relata sua frustração ao perceber que sua mãe e seu pai o viam como mulher; ansiavam que fosse uma “moça prendada” (idem), correspondendo às expectativas do sistema heterocentrado, pois “Certas incorporações de gênero são difíceis de serem apagadas. Podemos interpretar estas permanências como heranças de gênero” (BENTO, 2014, p. 57).

A esperança depositada no encontro com sua família se dissolverá, pois: “Cheguei à triste conclusão de que eu voltava com a intenção de me apresentar como homem e meus pais me recebiam com a intenção de me apresentar como a filha querida...” (ANEXO 8).

Os termos apresentados por Dom: moça prendada, filha querida, o incentivo para que fizesse crochê, tricô, reforça um viés biológico, naturalizante e patriarcal de produção da subjetividade feminina, pautada fundamentalmente pela diferença dicotômica sexual.

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Diferença inexistente nas análises de Preciado, pois “Não existe diferença sexual, mas uma multidão de diferenças, uma transversalidade de relações de poder, uma diversidade de potências de vida” (PRECIADO, 2011, p. 18).

Nessa multidão de diferenças, Dom nos apresenta em seus relatos a interseccionalidade entre os reconhecidos marcadores sociais da diferença, ou seja, classe, gênero, raça e sexualidade. O excerto abaixo ao trazer uma afirmação racista, nos mostra como esses marcadores aparecem de maneira imbricada, fabricados pelos mesmos enunciados que os constituem como abjetos e anormais.

No primeiro momento tentei me impor, mas depois de uma visita a casa de um tio, onde ouvi duras críticas em relação a uma prima que vivia no exterior e que tinha assumido um namoro com uma mulher, fiquei perplexo. Meu tio disse que preferia ver suas filhas casadas com negros, a ver essa tragédia cair sobre sua casa (ANEXO 8).

O que reforça nossa compreensão de que as categorias de gênero, sexualidade e raça necessitam, conjuntamente, serem desconstruídas e subvertidas, pois são de modo semelhante produzidas em um viés normativo, naturalizante e biologizante, afirmadas de forma dicotômica em oposição à hegemonia do homem, heterossexual e branco. Segundo considera Avtar Brah, “Estruturas de classe, racismo, gênero e sexualidade não podem ser tratadas como variáveis independentes porque a opressão de cada uma está inscrita dentro da outra – é constituída pela outra e é constitutiva dela” (BRAH, 2006, p. 35).

Ao reconhecer o extremo preconceito de seus familiares, Dom teme ser apontado como lésbica, e passa a construir estratégias para se livrar do preconceito e apontamentos. Expõe: “Passei a me esconder e negar tudo que vivi no DF e o que sentia quando via uma saia a passar pelas ruas. Tentei frear todos meus instintos [...] Eu queria a todo custo apagar a ideia dos parentes de que eu era homossexual, feito a prima supracitada” (ANEXO 8).

Dom não se reconhecia como homossexual, ou lésbica, mas sabia que esse era um tema tabu para seus/suas tios/tias, primos/as. Suas escolhas serão impulsionadas, conforme veremos em outras cartas, fortemente pela cobrança endereçada por familiares à sua mãe e pai. Em oposição à considerada naturalidade, o aprendizado da masculinidade e feminidade se “... dá através de inúmeras interações na família, entre outras instituições, que transferem para meninas e meninos as ‘normas’ sociais ou as expectativas de comportamento, que são ‘internalizadas por eles/as” (ÁVILA, 2014, p. 112). Entretanto, Dom sempre subverterá tais ensinamentos, por exemplo, não aprendendo nenhuma

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atividade, ou tarefa, tradicionalmente reconhecidas como femininas. Ao falar sobre a decepção de suas tias, quando tentavam lhe ensinar bordados e crochê, afirma: “Dizia que eu era de fato um moleque e queria saber só de coisas de moleque e que jamais eu aprenderia aqueles ofícios que julgava ser femininos” (ANEXO 8).

Embora não tivesse ainda conhecimento sobre a transexualidade, parecia já cogitar a questão: “Como explicar às pessoas que seu desejo é vivenciar a experiência do outro gênero se seu órgão genital atua subjetivamente como proibidor dessa possibilidade de trânsito?” (BENTO, 2014, p. 55).

A sensação de causar estranhamento e ser crucificado fará Dom se isolar cada vez mais, assim como inventar histórias de interesses afetivo e sexual por rapazes. “Cheguei até mesmo escrever cartas de namorado para mim mesmo na intenção de provar para minha família que tinha deixado um grande amor no DF e que era um rapaz” (ANEXO 8).

O medo, julgamento e isolamento são comuns entre homens transexuais. Simone Ávila, expõe o depoimento de um dos seus colaboradores de pesquisa, Pedro, de 24 anos: “Tinha medo (quase inconsciente) da reação dos outros, dos olhares” (PEDRO apud ÁVILA, 2014, p. 114).

Parafraseando a música que traz na epígrafe de sua carta, Dom volta à sua cidade natal, por acreditar ser esse é o seu lugar, volta para as coisas e pessoas que deixou naquele lugar, mas encontra a aridez do preconceito, passa a se sentir “... cada dia mais só...” (ANEXO 8). Sentimento decorrente do fato de ser um homem fora da linha hegemônica da masculinidade, pois “... aqueles homens que se afastam da forma de masculinidade hegemônica são considerados diferentes, são representados como o outro é, usualmente, experimentam práticas de discriminação ou subordinação” (LOURO, 2012, p. 52).