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A troca de endereços de estúdios na São Paulo de início de século

O circuito social do retrato

1.3 A troca de endereços de estúdios na São Paulo de início de século

O oficio ensinado por Pastore ao cunhado Mauro seguiu como aprendizagem e meio de sobrevivência da família por outras gerações. Em 1910 e 1911 o Almanaque Laemmert anunciou o estúdio de Mauro na Rua da Assembleia 12. Depois Mauro passou a ser anunciado na Avenida São João e depois Libero Badaró. Photographia de Mauro durou por muitos anos. O filho do casal, Francisco de Mauro trabalhou com o pai e foi, segundo a irmã, um grande fotógrafo.

Observar os almanaques do período mostra o quanto os fotógrafos mudavam de endereços, ora em busca de aluguéis mais acessíveis ora vislumbrando ocupar sobrados de áreas mais valorizadas. Ver o espaço é ver o horizonte de inter-relações permeadas por expectativas e desejos. Através do Almanaque Laemmert vê-se como a concorrência e a crescente disputa caracterizavam cada vez mais o mercado do retrato. São Paulo, em 1862, contava com a presença de apenas 4 estabelecimentos fotográficos: O fotógrafo Nuno Perestrello da Câmara, com estúdio aberto no Largo da Cadeia, rompeu a sociedade com o português Gaspar Antonio da Silva, que se tornou seu maior concorrente, passando a atuar na rua da Cruz Preta, chefiando a Carneiro & Gaspar, uma filial da oficina fotográfica carioca, a famosa Carneiro&Smith. Na Rua Direita encontrava-se o estúdio do Sr. Muller. O dono do estabelecimento fotográfico paulistano mais antigo pertencia a Inácio, na Rua das Freiras. Em 1863, chegava a cidade para viver da fotografia o Sr. Rubini. (Grangeiro, 2000, p.73). Três anos depois, com o fim da sociedade entre Carneiro e Smith, Gaspar tornou-se dono da Photographia Academica Carneiro & Gaspar, a mais luxuosa da cidade, que depois se tornaria, ao ser vendida para Militão Augusto de Azevedo, Photographia Americana.

Pastore, em 1899, tinha a frente outro mercado. A cidade, em crescente processo de urbanização, passou a apresentar, na década seguinte, um número cada vez maior de fotógrafos disputando a mesma clientela. Acompanhar a presença de Pastore na cidade ajuda a visualizar o próprio fenômeno da expansão da fotografia. Essa importante atividade comercial já passava a apresentar 34 estúdios em São Paulo. 88% destes estabelecimentos

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estavam nas mãos de fotógrafos estrangeiros. Os italianos somavam a metade desse contingente. 35

Um novo circuito fotográfico muito mais dinâmico desenhava-se na urbe paulistana. Espanta a proximidade de alguns desses estabelecimentos, dividindo algumas vezes a mesma calçada, dando vistas da acirrada disputa pela clientela:

G. Sarracino, Rua 15 de Novembro,20. Guilherme Gaensly, Rua 15 de Novembro, 28. Valério Vieira, Rua 15 de Novemvro, 19. Tobias & Irmão, Largo da Sé, 5-B. Pedro Ivancko, Largo da Liberdade, 27. Affonso Giannini, rua Immigrantes, 48. C. Scardini & Irmão, rua S. Bento, 26. M. L. Freire, rua S. Bento, 82.

E. P. Quaas, rua Barra Funda, 119.

Vicente Russo & Irmão, rua Barão Itapetininga, 55. José Minervino, rua Bom Retiro, 25.

Fratelli Maglino, Avenida Rangel Pestana 116. Patoilo & Richinte, Avenida Rangel Pestana, 117. Henrique Clareto, Avenida Intendencia, 200. Ricardo Molhenhauer, rua Aurora, 28. Bernardo Kohring, rua S. Caetano, 95. Miguel Rizzo, Rua Direita, 10-C.

C. Camerino de Castro, rua S. Bento, 2-C. José Wolsack, Rua Direita, 2.

Vicente Tartore, Rua Direita, 24.

Becherini & Stamati, rua Marechal Deodoro, 34. Rodolpho Mau, rua S. Caetano, 103.36

O Almanak Lammert anunciou o estabelecimento fotográfico de Pastore na Rua Direita, em 1909, tendo, contudo, errado o sobrenome do fotógrafo. Um ano depois na publicação de 1910, mais uma vez se vê: “Vicente Tartore, Rua Direita, 24”. Outros fotógrafos concorrentes também tiveram nomes impressos equivocadamente. Affonso Licarelli, por exemplo, tratava- se, na verdade, de Affonso Picarelli:

José Minervino, rua dos Immigrantes, 53. Julino Nickelsen, rua Barão Jaguará, 20. Affonso Licarelli, rua da Glória, 188. Carlo Orsetti, rua da Consolação, 15.

35 Segundo Kossoy entre 1850 e 1859 já existiam no Brasil cerca de 90 fotógrafos em atividade, sendo 30%

nacionais. Na década de 1860 eram um pouco mais de 200, passando a somarem 40% de fotógrafos estrangeiros, agora em menor proporção. Com ressalva às regiões sul e São Paulo apresentaram sempre a presença acentuada de estrangeiros. Os 90% de fotógrafos na cidade citada vinham de fora do país. 27% deles eram de origem italiana na última década do século XIX. Na década de 1900, em São Paulo se fixaram 14% dos fotógrafos de todo o Brasil. Ver Dicionário Histórico-Fotográfico Brasileiro. Fotógrafos e Ofício da Fotografia no

Brasil (1833-1910). São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2002, p.27-28.

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O estúdio adquirido por Pastore na Rua Direita 24, provavelmente em 1909, como anunciou o Almanak Lammeert, havia sido ocupado anteriormente por Guilherme Neuhaus, em 1897. Neuhaus, todavia, já em 1901, anunciava-se na Ladeira Porto Geral. Quem teria ocupado o espaço nesse intervalo de tempo?

No lado impar da Rua Barão de Itapetininga, noticiava-se, em 1911-1912, a presença de “Alfredo Russo, photographia”. Seria o mesmo anunciado em 1909, com sociedade familiar entre “Vicente Russo & Irmão, rua Barão Itapetininga, 55”? Em 1913, Vicente Russo, aluno de Bernardo Mandelbaun, dono da Photographia Amandier e também professor de fotografia, como menciona Kossoy, (2002), foi anunciado na rua Xavier de Toledo, número 46. Em 1916, Alfredo Russo continuava a anunciar a Photographia Artistica na rua Barão de Itapetininga, 55, mostrando que ele havia ficado no endereço antigo.

A partir de 1910 não há mais referências quanto ao estúdio de Pastore no almanaque citado, que anunciou, na Rua dos Immigrantes, número 131, a localização de M. Pitorcio. Quase em frente ao seu estúdio, o fotógrafo Zeferino Rinalto, era anunciado, no mesmo período, no número 124. Na conceituada Rua Quinze de Novembro, dois estabelecimentos fotográficos se localizavam frente a frente: do estabelecimento do fotógrafo Varello, no número 19, se avistava o movimento da empresa de Sarracino & Cª, no número 20, do outro lado da rua.

Bernardo Kohring, n.103, na Rua S. Caetano, tinha Rodolpho Mau, como concorrente direito. Este chegou até mesmo a ser anunciado em 1909 nessa mesma numeração. O fotógrafo José Lacerda, ficava mais distante das disputadas ruas comerciais do Triângulo, com o seu estabelecimento localizado no número 56, da rua Victoria. Entre a sua vizinhança, encontrava-se uma parteira.37 Affonso Giannini, conterrâneo de Pastore, em 1906, passou a se

anunciar na rua dos Immigrantes, primeiro no número 48, depois no 29, ali se anunciado até 1913. Antes disso, em 1901, manteve estúdio aberto na rua Barra Funda, 90.

Benedito Braz Fernandes era noticiado pela primeira vez na rua Santo Antonio, 218; Carlo Orsetti, fixou ateliê na rua da Consolação, 15, em 1910, estando em 1913, no número 205 da mesma rua, enfrentado a concorrência C. Scardigno, que passava a ocupar o número 15; Fratelli Maglino, antes na Avenida Rangel Pestana, 116, estava, em 1913, no número 130; Ricardo Molhenhauer, antes na rua Aurora, 28, em 1913, tinha se transferido para o número

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34. Os estúdios, como se vê, eram freqüentemente anunciados em novos endereços, que abrigariam ainda os retratistas recém chegados na capital paulista:

F. Gargi. Rua Conselheiro Nebias, 33. Na rua Liberdade, 68-A, Carmine Palma

Fratelli Ziccardi, praça Alexandre Herculano, 37. Gino Ardenghi, rua S. Caetano, 77.

Manoel & Andrade, Avenida Celso Garcia, 213. Photographia Alema, rua dos Immigrantes, 131. Rosato Augusto, rua do Oriente, 105.38

G. Ricchiuti anunciado em 1913, na Avenida Rangel Pestana, 144, seria o mesmo anunciado com sociedade de Patoilo & Ricchinte, Avenida Rangel Pestana, 117? Kossoy apontou essa possibilidade, indiciada também no Almanak Lammert, de 1909. Segundo este autor, Ricchiuti, “foi proprietário de um dos mais tradicionais estabelecimentos fotográficos do bairro do Brás”. Tendo retratado freqüentemente os membros da colônia italiana, com “cuidado especial com a iluminação e os cenários de fundo”. (Kossoy. 2002, p.273)

Em 1913, o fotógrafo tido como “bem sucedido” que fazia imagens “de uma nitidez e de uma fidelidade incríveis”, Otto Rudolf Quaas, como afirma Kossoy (2002, p.264), passou a anunciar seu atelier na Rua das Palmeiras, 59, estando também em constante mudança de endereços, saindo de bairros mais distantes, até chegar na região de prestígio do Triangulo: saiu da Rua do Gazometro, 20, em 1895; Largo Sete de Setembro, 11, em 1896, para a conceituada Rua de São Bento, primeiro no número 30, depois no número 46, tendo ficado neste endereço entre 1896 a 1901; em 1908, transferiu-se para a Rua Barra Funda, 140, conforme anúncio do Almanak Lammert. Qual seria o vínculo com o fotógrafo anunciado, em 1909 como E. P. Quaas, Rua Barra Funda, 119, tendo, em 1917, realizado uma seqüência de capa na revista A Cigarra?

Em 1915 novos anúncios delineiam a rota que atraia tantos profissionais da fotografia: Frenzel & Schmidt na rua Aurora, 34; L. Visconti, rua da Consolação, 15; photographia Tucci, na rua da Glória, 9. Em 1916, Guilherme Gaensly, deixava a Rua 15 de Novembro, 28 e passava a ser anunciado na rua Boa Vista, 39, indiciando mais uma vez o cenário de mobilidade dos fotógrafos pela cidade em busca de espaços mais notáveis e próximos das regiões mais centrais.

O fotografo Michelle Rizzo, que anunciava seu estúdio também na Rua Direita, “Photographia Central”, inaugurada em 1892, destacava-se como a “primeira fotografia

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italiana no Brasil”; em 1907, Rizzo atuava na Rua Direita 55. Depois, em 1909, o fotógrafo já se anunciava na Rua Direita 10C, onde manteve seu estúdio até 1912 (kossoy, 2002, p.276). Rizzo com freqüência aparece nos anúncios publicados em jornais e revistas na época. Talvez por disponibilizar de mais recursos.

A instabilidade dos endereços, das associações, rastreia as chances de mobilidade e lucro entre os fotógrafos, em constantes deslocamentos em busca de maior clientela. Muitos tiveram os seus primeiros ateliês montados nos caminhos que levavam aos bairros mais distantes, como Oreste Cilento, com estúdio na Rangel Pestana, 116, em caminhos que levavam ao Brás. O acesso à imagem entre as diferentes camadas da população revela um processo efetivo de democratização da fotografia. Fabris (2007, p.57) chama atenção para as “marcas da diferenciação social evidenciadas por uma concepção de qualidade que não era apenas técnica ou artística”. O prestígio do fotógrafo amalgamava-se com a melhor localização.

Tornar a fotografia cada vez mais acessível, prática de todos os fotógrafos em seus anúncios, oferecendo preços melhores e promoções, não encobre, contudo, os esforços de diferenciação social pela localização dos estúdios, aspecto que podia legitimar o trabalho de um fotógrafo.

A localização do estúdio de Pastore era sem dúvida bastante privilegiada. A Rua Direita “principia no Largo da Sé, atravessa as de José Bonifácio, Quintino Bocayuva e S. Bento, e finaliza na Libero Badaró, em frente ao Viaduto do Chá, (centro da cidade)”.39 Considerada

como “rua de la Paix”,40 a rua Direita ficava próxima das principais vias comerciais centrais,

sendo um dos principais lugares de compras e passeio, um “ponto de reunião chic da cidade”,41 “onde se agitava a vida comercial e onde se acotovella uma numerosa população

entre cosmopolita e laboriosa”.42

Na Rua Direita e a XV de Novembro, as de maior destaque no Triângulo Central, G. Sarracino, com estúdio no número 20, tinha a frente Valério Vieira, instalado no número 19; adiante, na calçada ímpar, localizava-se a famosa casa de produtos fotográficos Stolze & Stuck, ocupando a numeração 29, de onde se observava o número 28, onde atuava Guilherme Gaensly.

39 Almanak Lammert. 1913, p. 4542.

40 Revista A Cigarra. 25 de fevereiro de 1915.

41 Revista A Cigarra. 1915. Editorial intitulado Ponto de reunião chic. 42 Almanak Melillo. 1904, pp. 70-71.

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Figura 34: Rua Direita. 1908 ©Vincenzo Pastore / Instituto Moreira Salles.

Pastore não deixou de retratar a Rua Direita (fig. 34) destacando os mesmos aspectos ressaltados na descrição feita no Almanaque Melillo.

As ruas, principalmente nos arrebaldes novos, são em geral bem alinhadas e largas. O calçamento das ruas centraes, de parallelepipedos bem talhados e assentes, sobre um leito de cascalho e cimento é o que se pode desejar de melhor, não só pela belleza como pela solidez.43

A rua que abrigaria o estúdio de Pastore endereçava casas comissárias, comércio de novidades, indo da quinquilharia à moda, que se concentravam nas principais ruas do Triângulo, espaço de uma suposta animação.44 O cosmopolitismo e os outros ideais exaltados

nestes endereços estavam respaldados pelas constantes transformações urbanas, pelo rápido crescimento demográfico e pelos novos hábitos sociais. Aos fotógrafos, nacionais e estrangeiros, um campo de possibilidades emergia na urbe cada vez mais populosa, elegante e barulhenta. Cafés, confeitarias, hotéis, lojas de artigos femininos, farmácias, padarias, choperias e restaurantes, estes incomuns no século XIX, eram os novos pontos de atração do

43 Almanak Melillo. 1904, p. 70-71.

44 Ver o estudo de Deaecto, Marisa Midori. Comércio e vida urbana na cidade de São Paulo (1889-1930). São

Paulo: editora Senac. 2002, p.65. Ver também Pinto, Alfredo Moreira. A Cidade de São Paulo em 1900. Coleção Paulística. V. 14, 2ª edição. 1979.

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centro (Monteleone, 2008, p.87-96), onde muitos seguiam em busca de um espaço para montarem seus estúdios fotográficos, onde tantos outros encenariam uma nova condição social exaltada no retrato.