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4. EXPOSIÇÃO À VIOLÊNCIA NA COMUNIDADE E REPERCURSSÕES

4.2 A UBS, as Proximidades e as Relações Negociadas?

Já foi mencionada a importância de considerar as interconexões que são estabelecidas entre a unidade de saúde, os trabalhadores, a população e o território. Neste sentido, uma das perguntas dirigidas aos ACS buscou explorar se o fluxo dos atendimentos dentro da UBS é alterado por conta de circunstâncias que envolvam imposições e ameaças de usuários. Todos consideram que dentro da unidade não existem repercussões dessa natureza, muito menos atendimento privilegiado. As

hipertenso, uma criança vítima de abuso ou um traficante. Dentro, as únicas exceções que podem influenciar o fluxo dos atendimentos são usuários cujo acesso é muito difícil, que raramente buscam apoio do serviço e apresentam uma questão de saúde que precisa ser monitorada regularmente. É necessário, ainda, algumas vezes, passar na frente na fila dos atendimentos da UBS aqueles que costumam brigar e arranjar confusões e usuários drogados que apresentam um estado físico e emocional alterado, podendo, em ambos os casos, causar transtornos, mas não propriamente medo. Segundo a ACS Diva:

“E tem hora que sim, se atende ele primeiro para que ele vá embora... drogado, bem bravo, até melhor tirar ele do meio do fluxo do que deixar... se vem um paciente meu e ele tá drogado, alterado aí um olha e fala assim “É da Diva”, então eu já desço para amenizar a situação, porque eu não posso deixar que aquilo tome conta da UBS, então ele tem mais que respeitar ela, porque funciona assim: tá todo mundo quieto, um começa a levantar a voz, todo mundo levanta junto, então você procura tirar esse paciente, põe dentro de uma sala, conversa, ameniza a situação porque senão gera um conflito muito grande.” (ACS Diva, atua há 11 anos)

Com relação às ameaças dirigidas aos trabalhadores no interior da UBS, essas situações foram pouco mencionadas, embora já tenham ocorrido casos envolvendo não apenas os ACS, mas ainda atendentes e enfermeiros. Em um dos episódios recentes, a ACS Cida falou sobre uma usuária que, durante a abertura da sua ficha de acompanhamento do pré-natal, não gostou de saber que não poderia ser atendida naquele mesmo dia. O marido dela, traficante, que estava a acompanhando, por sua vez, chegou a ameaçar a enfermeira dizendo: “ó, fala para aquela mulher que ela não sabe com quem tá mexendo”, fazendo ainda referência com o dedo de estar apertando um gatilho de uma arma. Essa situação não alterou, contudo, o fluxo do atendimento e a usuária voltou ainda duas vezes a UBS até ser acompanhada por um plano de saúde no período da gestação.

Outro ponto a ser destacado, é que não são apenas os ACS que possuem no território um papel importante na mediação construída entre a UBS com a população. No interior dessa, o gestor também estabelece articulações de dentro para fora e vice- versa. No caso da atual gestora, esta menciona uma situação extremamente embaraçosa que foi obrigada a intervir depois da existência de um furto que ocorreu dentro da UBS, no mesmo período que estavam sendo realizadas as entrevistas para esse estudo. Segundo ela, traficantes locais descobriram os responsáveis pelo furto e telefonaram para a UBS para perguntar a ela, se poderiam fazer alguma coisa contra os acusados. Preocupada, Cora disse:

“Não pelo amor de Deus, não faz isso”, não, você fica morrendo de medo porque qualquer coisa que você fala você acaba assumindo a responsabilidade do outro. Já queriam fazer, só pediram a autorização. Pedi pelo amor de Deus, pelo amor de Deus, rezei muito e falei para ele umas 3 vezes que eu não queria que fizesse nada porque não tinha acontecido nada, para deixar quieto, que nada, mas ele ia ter uma conversa, “Pelo amor de Deus, não faça, se você fizer eu vou ficar muito chateada com você.” (Gestora da UBS)

Uma parte dos ACS considera que os traficantes possuem respeito pela UBS e pelos profissionais, uma vez que eles e seus familiares também utilizam o serviço que está situado em uma área que carece de muitos recursos, sendo um lugar de referência. Esse respeito ainda justificaria a interferência deles neste e em outros casos dentro da UBS, como o furto de uma carteira de um médico na sala de atendimento praticado por um usuário que, dias depois, retornou para devolvê-la e pediu desculpas pelo ocorrido.

As ambuiguidades que emergem a partir das representações construídas a respeito dos traficantes – capazes de exercer coerção, mas, ao mesmo tempo, possuir estima e respeito pelos trabalhadores – é algo interessante a ser ressaltado. Essa visão positiva parece ser reforçada ainda, conforme discutido no capítulo anterior, devido à

avaliação negativa a respeito da polícia, condição que permite, na perspectiva dos ACS, o reconhecimento de uma certa influência dos grupos ligados ao tráfico na garantia ou na sensação de segurança oferecida aos moradores.

Neste sentido, nem sempre os ACS vão interpretar situações cujo acesso ao território é controlado – pág. 125 – como ações impositivas do tráfico, mas como um aviso para garantir a segurança deles no trabalho, na maioria das vezes, por conta de rumores de que a polícia vai entrar no território:

“Eles têm muito respeito pelos ACS, eles olham assim “Poxa, elas vêm

aqui para cuidar da nossa saúde, para cuidar dos nossos filhos, para cuidar das nossas esposas”, entendeu? Eles são pessoas que respeitam demais o ACS, tanto que na minha área não acontece, mas tem áreas de colegas minhas que quando a polícia vai entrar eles avisam “Olha, não vem porque a gente já sabe que a polícia vai entrar” ou “Não vem porque vai chegar droga, por favor, não venham”, eles respeitam muito a gente. Eu acho que é questão de segurança, eles já avisam como te falei, eles têm muito respeito pelo ACS.” (ACS Lia, atua há 7 anos)

“No dia que não pode entrar na favela, não é para entrar. Pessoas que é traficantes, né, “Ó, não é pra entrar hoje”, mas tem horas que eu até vejo isso como uma questão de segurança para a gente, você entendeu, para a gente mesma.” (ACS Diva, atua há 11 anos)

“Não, mais como uma proteção porque eu, no começo, me sentia ameaçada por não conhecer o lugar, as pessoas. Eu já morava nessa área antes de ser agente comunitária, mas eu não conhecia ninguém porque eu não saia na rua, né, mas eu vejo mais como uma medida de respeito e proteção, né, nunca vi uma intimação falar “Ó, você não vai fazer e pronto”, não, sempre vi como uma proteção e respeito até pelo meu trabalho.” (ACS Elis, atua há 9 anos)

“Eles avisam a gente, eles não impedem da gente passar, tem respeito com o trabalhador da área da saúde, eles deixam o acesso livre para nós porque sabe que a comunidade precisa e também fazem parte da comunidade e são atendidos na UBS. Então a gente já sabe que não é para entrar, a gente não se sente ameaçada, a gente se sente avisado mesmo. Por nós mesmos quando passa pela a gente mesmo “Olha, não é para entrar” eles já sabem de nós qual é de cada território tal e já pede para avisar.” (ACS Marta, atua há 9 anos)

Considerando os impactos das representações em torno da performance policial, a maioria das narrativas sobre o cotidiano de trabalho dos ACS

apresentaram-se permeadas pelo receio dessa presença, evitando os trabalhadores de passarem no mesmo local onde existe, por exemplo, concentração de viaturas e motos em patrulhamento. Riscos de confrontos, tiroteios ou acertos de contas entre a polícia e traficantes foram apontados como situações possíveis em ruas e vielas onde concentram-se pontos de venda, uso de drogas e descargas de produtos roubados.

Os trabalhadores ainda revelam preocupação de serem confundidos com bandidos disfarçados e levados presos, fato já ocorrido com um agente de saúde em uma região próxima, mesmo estando com uniforme e material de trabalho. A ACS Mirian aponta, além disso, a atuação de policiais à paisana na comunidade, a exemplo de uma abordagem feita por um enquanto atendia uma usuária na calçada, próxima a uma “biqueira”. A ACS sentiu-se constrangida com a pergunta feita pelo policial – que ela já sabia que estava à paisana – se conhecia todas as pessoas que circulavam por ali, respondendo apenas que conhecia os moradores e não todos que subiam e desciam a viela. Horas depois, o policial juntamente com outros estouraram a “biqueira” e ainda perseguiram dois jovens que acabaram assassinados ilegalmente em um carro roubado.

A gestora da UBS reforça que existe, de fato, medo por parte dos trabalhadores de retaliações e de ações arbitrárias da polícia em casos de grande repercussão no território. Menciona um caso com morte de policiais na região e que durante as investigações foram mobilizados muitos policiais, causando grande apreensão nos trabalhadores da UBS, que trabalhavam sob esses olhares desconfiados, até ser descoberto o autor do crime:

“Mas quando teve [aquele caso] ... quando eu cheguei aqui tava todo mundo de cabelo em pé. Por medo de ter retaliação da polícia porque assim... até que foi uma das coisas que mais me chamou a atenção: quando apareceu [um suspeito ]deu um alívio para todo mundo, todo

mundo ficou aliviado e eu fiquei escandalizada “Por que? Como?” “ai, graças a Deus que foi o [ele] senão isso daqui ia virar um inferno”, porque no mesmo dia até apareceu polícia florestal aqui no território, um monte de PM, os agentes e o médico iam fazer visitas “escoltados” pela polícia porque eles tavam querendo achar quem foi que fez o crime. Os funcionários para fazer visita, entrar em certas áreas consideradas mais visadas, de risco foi a pessoa da área vermelha para o córrego com a polícia andando e conferindo quem que era, então isso interfere no trabalho. As pessoas ficaram com medo de sair, isso até se esclarecer que foi [ele]. A médica com o agente de saúde na hora que ela passou tinha viatura da PM... não foi escoltada, não foi escoltada, mas eles ficaram literalmente em algumas áreas seguindo, verificando quem que era, a polícia. Então, assim, para a gente que já trabalha com este tipo de usuário acaba atrapalhando porque pode alguém relacionar a nossa ida com a presença da polícia. Sentiram-se desconfortáveis porque a gente atende todo dia todo mundo que a gente sabe quem é, então assim, até para você estabelecer esse vínculo com o usuário(...).” (Gestora da UBS)

A partir da análise das entrevistas, verifica-se que a presença da polícia no território traz aos ACS uma sensação de imprevisibilidade no desfecho dessas incursões que são realizadas, sendo potencializados os riscos de ações arbitrárias que produzem uma indiferenciação dos alvos, isto é, das imagens e representações construídas em torno daqueles considerados “trabalhadores” e “bandidos” 35.

Nas interações entre os traficantes com os ACS – marcadas por receios, desconfianças, ameaças e coerções – a diferença é que as relações parecem ser mais claras e estáveis, estabelecendo-se por meio desses contatos e mediações, um conhecimento sobre o que acontece na comunidade, a sua rotina e do que está previsto para acontecer, conforme expresso na frase: “quando a polícia vai entrar eles avisam “olha, não vem porque a gente já sabe que a polícia vai entrar” ou “não vem porque vai chegar droga, por favor, não venham.” Isso permite que os ACS

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Estudo realizado em um município do sul do Brasil em duas UBS revelou que os profissionais da saúde possuem uma visão diferente dessa apresentada na dissertação pelos ACS sobre a atuação policial no território. Segundo eles, em determinadas microáreas, a falta de policiamento ostensivo e de um posto policial não só contribui com a intensificação de insegurança, crescimento de vandalismo, uso e tráfico de drogas, como também da violência, incluindo roubos na comunidade (Budó et al: 2012).

desenvolvam as suas atividades compreendendo os limites desse contexto comunitário. Além disso, nessas interações estão presentes regras e previsibilidade com relação ao que se espera de cada um dos atores:

“(...) A minha microárea é tranquila, né, eu tenho pontos de tráfico como muitas das colegas têm no território, mas a gente mantém um bom relacionamento com relação à questão de horários, tem um momento que a gente não pode entrar na viela, coisas assim. Porque a gente sabe como funciona o ritmo e sabe o que deve fazer e a maneira de se comportar naquele momento, então quando você tem conhecimento, você tá mais segura. Pediu para a gente não entrar, a gente não entra. É uma parceria condicionada ao trabalho, ou você mantém esse tipo de relacionamento de uma forma clara de que é assim e passa a confiança de ambas as partes ou quem sai no prejuízo? É a população em geral, é o povo que tá lá porque a região é uma área de risco com relação a tráfico, violência, a vulnerabilidade é muito grande.” (ACS Marta, atua há 9 anos)

“Então eu respeito, eu sei até onde eu posso ir, entendeu, e eles me respeitam também, né, eu sei o limite, eu sei até onde eu posso chegar, dali pra lá eu sei que eu não posso então eu não vou, entendeu? E quando tem alguma coisa que você vai correr risco eles avisam para gente não ir.” (ACS Dena, atua há 14 anos)

As regras e a previsibilidade das condutas regulam essas aproximações e tornam as situações potenciais de ameaças na comunidade para os trabalhadores mais calculadas e, por conseguinte, evitadas. Previsibilidade e “respeito” ainda se expressam nos rituais assumidos pelos ACS de tentar deixar claro o modo como compreendem suas atribuições, ou seja, demostrando que evitam entrar e aprofundar- se em determinados temas e ações comunitárias – como o consumo de drogas – em suma, em uma tentativa, conforme já salientado, de negociar para produzir o serviço de saúde, condicionado a certos limites.