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2. PARADIGMAS TEÓRICOS DE INTERPRETAÇÃO DA VIOLÊNCIA

2.2 Expansão do “Mundo do Crime”

Os fenômenos ligados à privatização do uso da violência, não são uma excepcionalidade na história da sociedade brasileira. Estes, contudo, foram assumindo novas feições, destacando-se os dispositivos criados em torno daquilo que se designa por “mundo do crime” a partir da entrada de novos atores em cena (Feltran: 2008; 2010).

Por esta expressão, compreende-se um tipo específico de “representações, códigos e sociabilidades estabelecidas em torno dos negócios do narcotráfico, dos roubos e furtos” (Feltran: 2008), inicialmente gestadas no interior dos presídios (Dias: 2009) que foram, paulatinamente, ganhando maior aderência nos bairros periféricos, passando a interferir no âmbito da gestão dos territórios e populações através de microrregulações que perpassam diferentes feixes.

Analisando estes fenômenos nos territórios pesquisados, Feltran (2010), Tellles e Hirata (2010) chamam atenção para a influência que é exercida pela facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) como uma instância deliberativa de assuntos diversos nas comunidades e que opera, ao menos, em três níveis distintos: assuntos de menor e maior gravidade (mas que podem ser reparáveis) e os que se configuram nos limiares entre vida ou morte, ou seja, “poder matar, deixar viver” (Foucault: 1999). São questões que vão desde brigas familiares, dívidas de drogas, furtos, roubos, estupro, delação ou traição às normas da facção.

Neste cenário, mesmo aqueles que nunca tiveram relação com o crime, não podem deixar de fazer referência a ele, o qual passa a coexistir e interagir com outros ordenamentos estruturadores da vida social, como a família, o trabalho e a religião.

Anteriormente visto pela população enquanto uma dinâmica alheia à comunidade, a violência ligada a este conjunto de representações e práticas imprimiu deslocamentos importantes no entendimento que se tem a respeito dela, sendo hoje lida como algo que éconstitutivo à vida comunitária (Feltran: 2010; Telles e Hirata: 2010).

É preciso ressaltar, desse modo, que tais deslocamentos não implicam em um conjunto de representações e experiências apartadas do convívio social mais amplo. Coexiste de diferentes maneiras com os dispositivos do Estado e faz parte das dinâmicas que compõem a vida cotidiana, como as histórias do bairro e as narrativas que circulam (Telles e Hirata: 2010).

Zaluar (2000) em suas pesquisas etnográficas pioneiras realizadas em uma favela carioca já atentava para a convivência e proximidade entre “trabalhadores” e “bandidos”,18 existindo entre eles pontos de identificação e colaboração, ou seja, interações que não implicavam em uma segregação relacional, concomitante à

existência de fronteiras simbólicas a partir das quais buscavam diferenciar-se.

A “porosidade” das relações, portanto, não significa que todos estejam comprometidos com atividades ilícitas. A coexistência de fronteiras, demarcadas simbolicamente, não é um fator que restringe os fluxos cada vez mais intensos entre essas e por onde circulam mercadorias, serviços e discursos (Feltran: 2008 pg. 122).

Telles e Hirata (2010) destacam, neste sentido:

18

Zaluar (2000) ao cunhar estas expressões refere-se às categorias sociais construídas que designam formas de interação e representação do meio popular que demarcam fronteiras simbólicas identitárias, sobretudo em torno do trabalho, enquanto fonte material e moral de sustentação, da família e da religião como fatores centrais na estruturação dos ordenamentos sociais. São categorizações ancoradas nas experiências e condições de vida das pessoas, ao contrário daquelas pautadas por critérios abstratos e dicotômicos referentes à justiça, crime e bandido. Este aspecto torna as representações e as relações muito mais complexas e ambíguas, pois são pautadas por regras locais de reciprocidade que se fazem e refazem de acordo com as microconjunturas.

“Os indivíduos transitam entre o dentro e o fora do Estado, maquinam artifícios nas fronteiras incertas do legal e do ilegal, negociam regras, limites, protocolos, agenciam contracondutas em função das condições concretas da vida, em seus imperativos de sobrevivência, necessidades de segurança, sentidos de ordem e justiça”. (...) sabem lidar com os códigos de ambos os lados, mas sabem sobretudo exercitar algo como uma arte do “contornamento” dos riscos alojados (...). (...) Algo como os “ardis da inteligência pratica para lidar com as circunstâncias movediças (...)” (Telles

eHirata: 2010 pg. 45).

É a partir desses referenciais que procuro situar minha dissertação. No caso da utilização da expressão “mundo do crime”, Feltran (2008; 2010) utilizou-a enquanto uma acepção nativa, identificada durante o percurso de suas pesquisas realizadas em um distrito administrativo da cidade de São Paulo.

Apesar do autor chamar a atenção sobre a ausência de qualquer pretensão em extrapolar este termo para além do território estudado, o fenômeno relacionado com essa expressão nos parece interessante para pensarmos em possíveis impactos desse no desenvolvimento do trabalho dos ACS e, mais especificamente, no âmbito da construção dos vínculos locais com usuários, familiares e a comunidade.

Neste sentido, considerando as características intrínsecas ao trabalho dos agentes comunitários, a lógica de mediação é algo essencial para a produção dos serviços de saúde. Para garantir a operacionalidade de um dos pilares de sustentação da ESF, isto é, o vínculo, é necessário, portanto, este transitar dos agentes entre diferentes códigos e esferas cotidianas locais de regulação, sejam formais ou informais, legais, ilegais e ilícitas. A prática desses profissionais é mediada, desse modo, não apenas por habilidades técnicas, mas, ainda, por competências relacionais construídas nos limiares dessas fronteiras e sob um determinado contexto social e histórico específico.

Nos parece relevante, desse modo, atentar para a importância de como são feitas as articulações e agenciamentos que estes profissionais estabelecem no transcurso do seu trabalho, a fim de tornar suas atividades viáveis, a partir da vinculação. Como

salienta Lipsky (2007), lançar luz sobre os atores que lidam diretamente com as políticas públicas e assistenciais considerando os obstáculos, valores e as interações construídas com o público para o qual se destina essas ações, é um aspecto relevante capaz de auxiliar na compreensão dos aspectos formais destas políticas públicas, do que elas se propõem e os seus resultados finais.

A hipótese com a qual trabalho é a de que parte das dificuldades que os profissionais possuem em realizar o seu trabalho pode estar atrelada às dinâmicas territoriais específicas, como a violência comunitária presente, interferindo no desenvolvimento dos trabalhos das equipes. Essa violência comunitária, além disso, parece adquirir, cada vez mais, importância na conformação atual das experiências de violência ocupacional sofridas pelos profissionais da saúde.

Sem perder de vista diferentes aspectos relativos à dimensão que o fenômeno da violência comunitária pode assumir no território a ser estudado, e, pautando-se nas discussões teóricas e estudos empíricos, a presente dissertação pretende, contudo, dar maior ênfase à presença da violência estruturada em torno do tráfico e uso de drogas com possíveis repercussões no trabalho e no estabelecimento de vínculos.