• Nenhum resultado encontrado

5. VÍNCULOS, DIMENSÃO NORMATIVA E A VIOLÊNCIA

5.1 Obstáculos nas Relações Vinculares

Considerando os aspectos que podem dificultar a criação e manutenção dos vínculos com os usuários, na fala dos entrevistados um dos pontos mais sensíveis foi a insuficiência de recursos dentro da rede de serviços, incluindo a demora na

marcação de consultas médicas, exames e encaminhamentos para serviços especializados.

A ACS Paula evidencia que, apesar de conseguir estabelecer uma vinculação pessoal, de orientar e encaminhar as demandas, os vínculos – na dimensão programática – acabam sendo comprometidos, pois não há uma continuidade na assistência ofertada dentro da rede:

“Ao mesmo tempo em que você consegue trazer o paciente para você, consegue promover a saúde, às vezes vem o problema, você consegue assim, na teoria você consegue ajudar, mas na prática não muito. Eu consigo orientar super bem o meu paciente tal com medicação, mas às vezes ele precisa... já passa da minha alçada, né, precisa passar com o médico e não consegue, aí tipo, todo o trabalho que você fez às vezes acaba ficando por isso mesmo (...). Precisa melhorar e muito porque assim a gente tem prevenção é, mas o que tem que ser cuidado logo não é cuidado logo depois não adianta mais e a gente já perdeu um paciente que ...de câncer porque passou aqui, teve meio que um pré-diagnóstico, só que ficou esperando tanto na fila, que o paciente morreu e a vaga não saiu.” (ACS Paula, atua há 2 anos)

O ACS Fábio afirma que as metas que devem ser cumpridas com relação à cobertura das visitas domiciliares realizadas mensalmente, bem como número de usuários, diminuem o tempo que o trabalhador possui nos atendimentos, influenciando na qualidade da atenção que está sendo oferecida:

“A questão do tempo porque como a gente tem muita família a gente não consegue, principalmente os idosos a gente não tem tempo para ouvir, porque a gente tem que chegar na visita e tem 20 visitas por dia então, a gente chega “Oi, tudo bem?, e aí gente”?, “A receita, deixa eu ver” rapidinho, tem que ser algo muito rápido, não tem como você sentar e ouvir aquela pessoa, então ela acaba sentindo essa carência e a gente também porque a gente tem que apresentar metas, metas e metas e isso acaba atrapalhando bastante o nosso trabalho.” (ACS Fábio, atua há 2 anos)

Além desses fatores, a gestora da UBS ressalta dificuldades de trazer resolutividade às demandas que chegam, devido a uma crescente complexificação das condições de saúde e adoecimento dos usuários que não estão respaldados por

outras redes de apoio social para além do campo da saúde. Segundo ela, faltam investimentos e recursos nesta direção, impactando diretamente o serviço de atenção básica que acaba muitas vezes “enxugando gelo”:

“Eu posso ter 50 médicos aqui, todas as medicações, as pessoas vão continuar adoecendo porque a diferença de um PSF que eu faço hoje com que eu fazia em 1996 [quando ingressou] hipertensos é hipertensos, diabéticos é diabético, acabou. Hoje eu tenho hipertenso com o filho usuário de droga, a diabética que apanha do marido, a filha adolescente que foi abusada pelo pai, tudo na mesma família, então assim, não é uma coisa simples de resolver tem mais questões sociais que faz com que as pessoas adoeçam que as questões biológicas, entendeu? Hoje eu tenho pressão alta porque eu fico ouvindo funk o final de semana inteira todinho e a polícia chega atirando em todo mundo, então assim, não tem problemas de saúde resolvendo desse jeito se não tiver investimentos em outras coisas, a gente vai sempre acabar enxugando gelo. Então, a gente faz o básico, do básico, que eu acho a essa altura, 20 anos de PSF em São Paulo se poderia ter indicadores melhores do que tem. Não é que a Estratégia falhou, é que as outras coisas não caminharam junto, se eu não tenho outros recursos eu vou ficar doente e vou ficar doente e vou no serviço vou querer que o serviço resolva outras coisas que é da minha estrutura social e pessoal.” (Gestora da UBS)

Ademais, as demandas dos usuários que acabam não sendo atendidas de acordo com o que ele precisa e deseja acabam repercutindo na relação que esse estabelece com o ACS, fragilizando, desse modo, a credibilidade pessoal e profissional do trabalhador, podendo aumentar as chances de conflitos e agressões verbais:

“Aquele posto não presta, para quê você vem aqui”? Então, é mais isso, mais as palavras mesmo. Não é a questão do posto, é a questão do sistema em geral, então acredito que isso é uma violência porque a gente tá ali para fazer da melhor forma possível (...). E aí a gente tenta explicar para os pacientes que não é a questão do funcionário que não quer marcar. Eles acham que a gente pega o papel e esconde e não quer marcar, mas não é, é o sistema, da disponibilização das vagas aí esse é um problema que a gente enfrenta quase todos os dias.” (ACS Fábio, atua há 2 anos)

A discussão na pág. 142 relacionada às situações de insultos e agressões contra os ACS mostrou que o profissional acaba tendo que lidar com essas questões sozinho, não se apresentando nas entrevistas menção a qualquer tipo de respaldo ou

intermediação dos responsáveis pelas equipes. Disso resulta que os contatos posteriores vão depender totalmente da abertura do usuário e da capacidade do ACS de superar o constrangimento vivido. Neste sentido, em algumas entrevistas subentende-se que é criado um outro problema, isto é, uma relação distanciada entre o usuário e o trabalhador, o qual, via de regra, segue fazendo as visitas mensais de praxe evitando o contato o quanto possível com o agressor:

“(...) A paciente perdeu uma consulta aqui no posto e ela queria que a Joana [ACS] remarcasse, a Joana falou que não era assim que funcionava e ela ofendeu a Joana, xingou a mãe da Joana, umas coisas assim e falou para ela “Ah, eu não quero você mais aqui, se você vir na minha porta vou quebrar a sua cara toda” e aí depois ela veio aqui, falou para a enfermeira que a Joana que tinha ameaçado ela, só que assim, eu tava presente e aí até a dona da casa que ela morava veio aqui a favor da Joana e falou que não, que a história era ao contrário e até hoje a Joana não faz a visita dela mais. Quando é as filhas dela que tá lá, ai ela chama, né, as filhas dela saem e ela faz a visita dela normal, agora quando sabe que é a mãe que tá em casa que ela sempre pergunta para a vizinha: “quem tá em casa hoje”? “Ah, é a fulana”, “Ai, então eu vou não.” (ACS Mirian, atua há 3 anos)

Na discussão teórica sobre a construção dos vínculos na primeira parte da dissertação – pág. 16 – foram apresentados obstáculos que podem dificultar o estabelecimento dessas relações no campo da saúde atrelados às condições de oferta da assistência, o modo de produção do trabalho e o preparo e formação do profissional. Nas entrevistas realizadas com os ACS, as falas apresentam, ainda, uma outra faceta, o desejo que alguns usuários expressam de não se vincularem afetiva e normativamente à UBS por motivações particulares. Essa questão precisa ser enfatizada aqui, pois desloca o ponto de vista dos debates que costumam estar muito mais centrado nos trabalhadores, nas suas responsabilidades de vincular-se e não nos usuários. Esses, no entanto, possuem diferentes concepções e estratégias na busca por saúde que não se resume apenas à proposta de vinculação a partir da ESF. Isso ajudaria, talvez, a explicar os motivos de algumas agressões e insultos que ocorrem

nas situações de visita domiciliar, nas quais os usuários afirmam que não querem receber o ACS em sua casa.