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O fortalecimento da atenção primária à saúde no Brasil, por meio operacionalização da ESF, tem sido uma estratégia adotada que tem contribuído na ampliação e democratização do acesso à saúde. Apesar das dificuldades e das críticas que a permeiam, essa estratégia apresenta importantes avanços e rupturas com relação ao paradigma clínico tradicional focado em práticas curativistas e hospitalocêntricas.

Como princípio norteador, a ESF estabelece uma maior aproximação das equipes de saúde com as diferentes realidades das populações nos territórios através da vinculação, com potencial de intermediar as relações de corresponsabilização das ações em saúde e garantir melhor qualidade na assistência ofertada. Enquanto técnica de trabalho, a produção dos vínculos compreende duas dimensões: a afetiva e a normativa, intermediadas pela prática terapêutica.

Na dissertação, foram exploradas as representações e repercussões da violência comunitária no desenvolvimento do trabalho e na vinculação que é criada com o público. Um primeiro aspecto a ser ressaltado, neste sentido, refere-se ao fato de que o vínculo (ou a tentativa de vincular-se) do ACS com os usuários é permanentemente tensionado, ambíguo e contraditório. Está sujeito a reconfigurações e a apropriações distintas de modo concreto nas relações.

O tensionamento em parte é justificado pela ambiguidade dos papéis assumidos pelos ACS na comunidade. Os usuários encontram dificuldades em dissociar a imagem do ACS trabalhador do ACS vizinho, situação que obstaculiza o

acesso a algumas casas, alimenta desconfianças da credibilidade do profissional, por conta das informações que dispõem, e ainda a demanda por atendimentos fora do expediente de trabalho. Isso gera constrangimentos aos ACS quando estão circulando na comunidade – a trabalho ou não – sendo apontados como responsáveis por espalhar boatos e de estar usando seu horário de trabalho como lazer. Os ACS disseram que as agressões verbais e as ameaças à integridade física acontecem porque alguns usuários possuem problemas pessoais que, não sendo resolvidos, acabam descontados no trabalhador e ainda devido à insatisfação com a qualidade dos serviços oferecidos pela UBS.

Esses constrangimentos são interpretados como uma violência que acontece de modo frequente, repercutindo nas suas disposições pessoais para o trabalho, sendo mencionados problemas de saúde, sofrimento, desvalorização social da profissão e vontade de desistir da função. Os trabalhadores não deixam de fazer a visitas e procuram utilizar estratégias como ir acompanhados por um colega de trabalho, suspenção por um período de tempo das visitas ou tentam ainda conversar com outro membro da família que não tenha envolvimento com as agressões. Nas falas dos ACS não emergiram às figuras dos enfermeiros chefes e da gestão como agentes intermediadores desses conflitos a fim de respaldar melhor os ACS diante das situações apresentadas.

Um segundo aspecto referente às agressões verbais e ao assédio sexual é que estes são temas que se entrelaçam transversalmente à discussão de gênero e trabalho e, por isso, mereceriam ser discutidos dentro da UBS com os profissionais e também com os usuários com intuito de criar estratégias coletivas mais organizadas para prevenir as agressões.

As repercussões da violência comunitária sob a ótica aqui apresentada, mesmo não afetando diretamente o cronograma mensal das visitas, coloca como questão a qualidade dos contatos mantidos após essas situações, ou seja, se de fato ocorrerá a vinculação afetiva e normativa ou se os contatos estabelecidos com os usuários serão mantidos de uma forma burocratizada, através da realização de procedimentos meramente de praxe. Esse é outro tema que poderia ser problematizado entre as equipes de trabalho da UBS, isto é, como tentar conseguir se adequar às metas estabelecidas externamente pela Prefeitura sem comprometer a qualidade da assistência e a integridade física e moral dos trabalhadores envolvidos.

As discussões realizadas em torno das representações sociais do território evidenciam que a organização das relações sociais é pautada por códigos de sociabilidades informais/locais que também influenciam o modo como a assistência à saúde está sendo produzida.

Do ponto de vista das ações normativas/programáticas, a concentração de pessoas traficando, consumindo drogas, brigas e o modo como se faz presente a instituição policial no território prejudicam a circulação dos trabalhadores. Estes procuram evitar passar por ruas ou entrar em determinadas casas quando percebem que a movimentação na comunidade parece diferente do habitual. Já o policiamento ostensivo dificulta o trabalho dos profissionais na comunidade, que começam a ser acompanhados de perto, situação que gera constrangimento e que repercute na confiança dos usuários com relação às equipes de saúde. A presença da polícia, não necessariamente aumenta a sensação de segurança dos trabalhadores, sendo vista como uma instituição que contribui em reforçar a violência comunitária existente. Toques de recolher e restrições do acesso à comunidade impostos pelos traficantes

interrompem a continuidade dos trabalhos desenvolvidos em meio aberto, principalmente as visitações.

Ademais, os trabalhadores expressaram medo em lidar com temas e estratégias de promoção, prevenção e recuperação da saúde no âmbito comunitário principalmente o consumo de drogas, interferindo na integralidade do cuidado em saúde. As falas ainda apontaram o receio de notificar e aprofundar-se em casos de violência doméstica, abuso e negligências e de expor a UBS e os ACS, procurando, desse modo, apenas acionar a rede intersetorial de apoio como o conselho tutelar e o conselho do idoso em casos extremos. Esse é um dos pontos que mais chamaram a atenção em todo estudo, ou seja, a regulação das ações no campo da saúde, a possibilidade de essas efetivarem-se em ações de promoção, prevenção e recuperação nos moldes do que é preconizado normativamente, condicionadas às restrições abertas ou implicitamente colocadas pelas dinâmicas sociais presentes no território.

Cabe ressaltar que as restrições de não entrar em uma determinada microárea, nem sempre vão ser interpretadas pelos ACS como imposições do tráfico ou que as suas ações no campo da saúde estejam sujeitas a tal interferência, embora ambiguamente nas falas tenham emergido os limites dessa atuação. A sensação de segurança e o medo que os trabalhadores possuem dos traficantes locais apareceram, também, ambiguamente associados.

Os vínculos tecidos entre os trabalhadores com o “mundo do crime” não estavam previstos nem implicitamente e nem explicitamente nos documentos oficiais. São construídos com maior ou menor aproximações – a depender das estratégias relacionais mobilizadas por cada trabalhador – com pontos de aproximação, mas também com limites e constrangimentos. Neste sentido, buscou-

se, a partir das contribuições teóricas das ciências sociais, dar destaque a essa dimensão relacional e à mediação que é exercida pelos ACS nas fronteiras legais/formais das práticas e ações em saúde com as instâncias informais e ilegais, que funcionam igualmente com os seus dispositivos microrreguladores na vida cotidiana.

A violência comunitária não é o único fenômeno que interfere no desenvolvimento do trabalho e na produção dos vínculos, mas para os objetivos deste estudo, buscou-se dar visibilidade a essa contribuindo com o debate na interface da saúde coletiva com os problemas sociais mais amplos. Informalmente, a presença da violência comunitária na atenção primária apresenta-se como uma realidade com a qual os trabalhadores já convivem há muitos anos. Formalmente, essa questão no espaço público, nas esferas da gestão federal, estadual e municipal da ESF precisa ser também reconhecida e discutida para auxiliar na preparação e atuação dos trabalhadores que estão na ponta desses serviços nas comunidades.