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A usuária Nada Oculta em um encontro barulhento

“A vida é tão simples Mas dá medo de tocar As mãos se procuram sós Como a gente mesmo quis” (Wilson Sideral) A usuária Nada Oculta apresenta surdez congênita (diferente do usuário “Pintor Tagarela” que desenvolveu redução da acuidade auditiva após adulto e sem chegar a ser totalmente surdo).

Ao entrar na sala de oficina de artesanato, após algum tempo sentada sozinha olhando os trabalhos artesanais, fui abordada pela Nada Oculta. Neste momento, já havia notado que ela possuía “surdez”, no regime de verdade biomédico.

Surpreendi-me com a (re)ação que tive quando ela se aproximou de mim, pois me vi sem ação, sem saber como me colocar diante da abertura que ela me dara. Notei o quanto estava insegura em tentar estabelecer com ela um encontro genuíno, uma vez que, na saúde mental, uma das principais tecnologias do cuidado é a escuta.

Eis aí um primeiro deslocamento que ela me provocou. Escuta por quem? Escuta a quem? Não possuo diagnóstico de surdez, então não estou impedida de escutar. Por que tamanha dificuldade na construção de uma relação interpessoal inicial com uma usuária surda?

Isto apontou o quanto, não apenas os usuários precisam ser ouvidos, mas o quanto o próprio profissional depende de uma relação interpessoal eficaz para iniciar e executar o cuidado. Estamos paralisados enquanto não recebemos do usuário sua posição diante de seu problema, ou quando não podemos avaliar o juízo de morbidade do paciente se ele não disser algo, seja de forma verbal ou não-verbal.

Se isto, por um lado, marca o lugar de importância da escuta para a produção de cuidado, por outro, demonstra também que pode ser necessário reinventar esta “escuta” sob diversas dimensões para que a escuta e demais elementos da relação interpessoal sejam garantidos.

118 produzir ansiedade e frustração naquele que cuida, já que ela é, teoricamente, surda-muda e emite apenas sons ininteligíveis sob o ponto de vista da linguagem tradicional. Além da diferença que ela apresenta na forma de se expressar, ela também traz um importante desvio quanto ao seu lugar de receptora de uma mensagem, uma vez que seu aparelho auditivo não é hábil.

Na verdade, seu codinome “Nada Oculta” foi escolhido devido à proximidade semântica entre as palavras: “surdo” e “oculto”. Mas esta também é uma provocação porque o termo “oculta” permite maior aprofundamento nesta reflexão do que a palavra “surda”. Apesar de oculta inicialmente enquanto estávamos distantes fisicamente (distância de apenas 3 metros), ela se levantou da cadeira onde estava e veio até a mim se apresentar e sua aproximação física foi o que permitiu o nosso encontro e não palavras inteligíveis que ela teria dito, e ela mostrou que não escolheu se ocultar.

Quando a pequena distância de onde estava sentada inviabilizava que ela falasse comigo, não exitou em levantar-se e vir até a mim. E para escutar a Nada Oculta foi necessário fazê-lo seguindo os rumos apontados por suas pulsões, seus passos que abriram passagem para minha entrada neste encontro nada vazio, nada silencioso.

Com isto, precisamos transformar as formas de ouvir, transescutar, transouvir, transver.

A expressão reta não sonha. Não use o traço acostumado.

A força de um artista vem das suas derrotas.

Só a alma atormentada pode trazer para a voz um formato de pássaro.

Arte não tem pensa:

O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê. É preciso transver o mundo (BARROS, 2008, p.75).

Em sua entrega, a Nada Oculta nos ajuda a refletir criticamente sobre os muros que não vencemos ainda na perspectiva da desinstitucionalização da loucura. Estar com ela definitivamente não foi uma experimentação silenciosa, porque ela não se oculta, apesar da surdez.

O encontro com ela nos obriga a pensar no hábito ou “vício” que muitos profissionais de saúde mental temos de ir rapidamente classificando o usuário dentro de certos “parâmetros” enquanto o escuta. Ao fazer isto, repetimos aquilo que a Reforma Psiquiátrica e que estes mesmos profissionais criticam, que é a classificação, o enquadramento de um

119 problema em determinada posição de algo a receber sua intervenção.

Outro hábito em que se contradiz, é quando, ao ouvir o usuário, o profissional é apressado em “tirar conclusões diagósticas”, não “experimenta”, espera ou “saboreia” o tempo do paciente no processo de cuidado – já vai imediatamente “devorando” aquilo que escuta ou vê em um dado momento e pronto “já conheço o funcionamento deste usuário”.

No livro "A Gaia Ciência" de 1887, Nietzsche trouxe o seguinte texto:

Mais Vale Ser Surdo que Ensurdecido

Antigamente as pessoas queriam criar-se uma reputação: isso já não basta, a feira tornou-se demasiado vasta; agora é necessário vender aos berros. A consequência é que mesmo as melhores gargantas forçam a voz e as melhores mercadorias não são oferecidas por órgãos enrouquecidos; já não há gênio, nos nossos dias, sem clamor e sem rouquidão. Época vil para o pensador: devemos aprender a encontrar entre duas barulheiras o silêncio de que se tem necessidade e a fingir de surdo até chegar a sê-lo. Enquanto não se tiver chegado a isso, corre-se o risco de perecer de impaciência e de dores de cabeça (NIETZSCHE, 1887, p.34).

Sem “gastar rouquidão”, o encontro barulhento traz à tona uma escuta na intensidade dos olhares, dos modos como movimenta seu tronco, cabeça e membros, de suas expressões faciais: genuinamente, compra seu “produto” (em alusão à citação acima), isto é, compõe um bom encontro com ela quem não se deixar ensurdecer pelos produtos e modos de cuidar escancarados e sedutores por seu status de suposto expertise.

A perspectiva estética do cuidado junto a esta usuária não vai se dar em nome de “destacamentos avançados da novidade”, mas sim das invenções de formas sensíveis (de um sensível específico, isto é, do espaço à singularidade, ao fortalecimento da noção de “qualquer um”), transformando-o em programa total de vida (RANCIÈRE, 2014).

Tallemberg nos propõe “talvez tornar-se estrangeiro na própria língua, entendendo como língua, o aparato das tecnologias duras e leve-duras que carregamos conosco. Estranhar, desconfiar, inquirer, escutar” (2015 p.131).

Refletindo nesta nuance, Nada Oculta traz para o ato do cuidado um intercessor intempestivo: a inocência do devir que há nela e que é também disparada em mim.

Se esta pesquisa utiliza como noção metodológica a perspectiva da onda no mar, pode- se, então, pensar em clinamens, ápices da pesquisa em mim/para mim, como uma espécie de Tsunami.

Baremblitt nomeia clinamen como “o menor declive possível abrindo os caminhos para a existência” (2003, p. 55) e é algo que produz o desvio de “quaisquer concepções

120 ortodoxas” (Azevedo e Amaral, 2010, p. 115).

Nada Oculta enche a amplitude em mim enquanto onda. A potência de sua “oralidade” transfigurada nos impõe a intensividade no encontro a sua maneira, no seu tempo, à medida que não temos detalhes do conteúdo do que ela está dizendo para que façamos intervenções enquanto ela “fala”.

Transvendo o “ouvido” biológico de Nada Oculta, aprimoramos os demais sentidos e sensações, meus e dela: o olhar, tocar, o assustar-se, surpreender-se, misturar-se.

“O ser biológico é sujeito à variação do tempo, o poeta não” (Barros, 2008). A criação, a perspectiva ético-estética abre portas para encontros que compõem que crescem.