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“a fórmula do acaso, o ‘cessar’ da promessa...” (parafraseando Lenine)

Após a construção mais robusta de uma proposta de etapas para a produção dos dados, venho em um esforço descomunal tentando, de uma alguma forma fazer o caminho inverso de desconstruí-la, buscando ‘enfraquecer’ ou ‘acalmar’ o que há em mim de expectativas gritantes que poderiam vir a assustar, calar o campo de pesquisa, ou me cegar diante daquilo

50 que eu não havia previsto.

Porém, as tantas expectativas serviram para revelar minha sobreimplicação na pesquisa, em que eu corro o risco de me chafurdar e não conseguir sair do lamaçal que é só meu, me impedindo de enxergar o que se produz em acontecimento, e, assim, sem dar espaço para as multiplicidades do campo de estudo.

O que Guattari (2000) nos inspira em pesquisa, tanto como tema de investigação de pesquisa, como forma de atuação ética e de militância política, é a construção de dispositivos que tenham formações mais ou menos ordenadas, mas com uma ordem elástica, com uma ordem fraca, que permita o efeito produtivo, que permita a emergência do caos criador.

Quando ele (Guattari) fala dessa ordem em um movimento de desordem – que é uma ordem que não quer dizer normativização –, o que se faz com a angústia que se sente perante a perda da certeza e da segurança que é dada pelo instituído? Na concepção de Deleuze e Guattari, a angústia é produto da antiprodução, que o mundo do instituído e do organizado exerce sobre nossas forças físicas, psíquicas e sociais. Em consequência, é um efeito indesejável e contornável. Para eles, o que está em questão não é uma receita contra a angústia. O que está em questão é o uso de dispositivos destinados a propiciar a revolução inventiva dos processos produtivos.

Isto está diretamente relacionado ao que foi descrito acima com relação a um certo “manifesto metodológico”, na proposta de se fortalecer micropolíticas imanentes no procedimento investigativo e de enfraquecer nossa sapiência no campo de pesquisa e nos processos de produção de conhecimento.

À medida que buscamos reduzir minha ansiedade durante a elaboração do presente projeto, pude enxergar algumas possibilidades que estavam escondidas por sobre a proposta de pesquisa demasiadamente organizada que eu estava construindo anteriormente.

Apostei em algo que chamei de “projeto neutro”. Quero esclarecer que isso em nada tem a ver com uma busca por neutralidade na pesquisa. Ao contrário, busquei me encontrar, achar e oferecer minha inteireza nesta proposta de estudo. O que quero dizer como “projeto neutro” se refere a uma ‘bandeira branca’ que levantei com relação às formas de produção de dados. Quero dizer que me empenhei (e isso não significa que de fato tenha conseguido) em deixar em suspenso o desenho exato do estudo, isto é “cessar a promessa”. Trabalhar com etapas de estudo bem delineadas a priori teria mais relação com o paradigma arborescente do que com o rizomático.

51 por onde falaram os fluxos que se deram nos encontros.

Desta forma, previmos os encontros com os usuários para produzirmos juntos uma experimentação na pesquisa, ao invés de uma interpretação. Interessou mais produzir o que Deleuze e Guattari chamam de “protocolo de experimentação” do que “um relatório de iniciação” (2012, p.28).

Destaca-se a importância do interesse recíproco entre mim e os participantes do estudo em nos misturarmos, em ser ‘onda que mistura os elementos da natureza areia, água e vento’, neste caso, ‘elementos do campo’ de pesquisa.

Com os usuários participantes (e co-pesquisadores), foram aprofundados temas disparadores sobre o cuidado que surgiram nas narrativas produzidas por eles mesmos.

Além disto, acreditamos na busca de estabelecer mecanismos de sensibilidade na produção de conhecimento. Considera-se que toda intuição é sensível, e que a intuição é a principal forma de conhecimento (Deleuze citando Kant, 2006), porque ela dá diretamente o objeto de conhecimento. E neste sentido, assim como a perspectiva deleuziana, e em inspiração sociopoética (Gauthier, 1999), busca-se não subordinar a sensibilidade ao entendimento, ou a intuição ao conceito. Não há aqui uma subordinação da diferença ou da multiplicidade (que é dada na sensibilidade) à unidade ou identidade do pensamento (que faz uma síntese do entendimento).

Propôs-se experimentar novos sentidos e olhares através da pesquisa em sua perspectiva estética, ressaltando-se a multiplicidade do ser que sente, pensa e age a partir das noções de diferença e acontecimentos, buscando recolher alguns efeitos dos encontros na pesquisa provocados nos participantes e em mim, a partir das interferências e dos encontros na pesquisa.

A “experimentação-vida” (Deleuze e Parnet 1998, p.61) lança as bases para a superação da produção de conhecimento pela representação e do cortejo de racionalidade que a acompanha. Traz uma nova compreensão a propósito da via pela qual homem tem acesso à vida.

Atualmente o conhecimento se converte em ciência positiva, que define que tipos de conhecimentos são válidos e como esses conhecimentos devem ser validados. Em uma linha crítica a esta lógica, nas palavras de Adorno e Horkheimer (1985, p. 21) “o esclarecimento comporta-se com as coisas como o ditador se comporta com os homens. Este conhece-os na medida em que pode manipulá-los. O homem de ciência conhece as coisas na medida em que pode fazê-las”. A essência das coisas revela-se como sempre a mesma, “como substrato da

52 dominação”. Ao apontar o esclarecimento como “ditador”, os autores revelam uma forte característica do positivismo, como uma “linha de testes de controle de qualidade” do conhecimento. Neste sentido, o saber precisa passar por “testes” para ser aprovado. Assim se configura o método para a ciência positiva, que trata o saber como algo a ser testado e comprovado.

Desta forma, não pretendo justificar ou legitimar um conhecimento a respeito do cuidado, mas sim (re)inventar, junto aos co-pesquisadores, uma noção de cuidado sob o prisma da diferença, da multiplicidade, e não da unificação.

Evita-se enrijecer o processo da pesquisa; ao contrário, procurou-se caminhar junto com as mobilizações e potências, dificuldades, elaborações e propostas que, em sua dinâmica, foram peculiares a cada grupo, a cada momento.

E foi utilizada ainda a ferramenta do diário de campo da pesquisadora, para o registro na produção dos dados (anotação de insights), para o registro das interferências da pesquisa em mim, e para a apresentação ética da minha implicação/sobreimplicação, sem a cisão sujeito-objeto no estudo.

E o que junta em mim as coisas que leio e vejo?

Não há análise sem interpretação. No entanto, a interpretação passa a ser produtora de anti-produção quando é capturada pela sobreimplicação e pelo fetiche teórico.

O presente estudo não visa explorar os elementos de análise extraídos da pesquisa objetivando a descrição pormenorizada dos dados coletados através de marcadores ortopédicos que viriam a enrijecer a pesquisa e trariam um empobrecimento da vida mesma. Ao invés de uma análise moral que aponte o certo e o errado ou o bom e o ruim, busca-se a utilização de intercessores que permitam uma produção de dados simétrica em relação aos participantes do estudo.

Neste sentido, é necessário que se tenha uma atitude aberta ante à experiência, com a experiência de si para consigo mesmo e de si com o mundo (ROGERS, 1977).

Ao invés de priorizar o que Espinosa chamou de primeiro e segundo gênero do conhecimento, busca-se exercitar um caminho para o terceiro gênero do conhecimento (sem pretensão alguma de alcançar isto de fato, mas sim, de tê-lo como norte). Esta forma de conhecimento se expressa na busca de experimentar a essência da potência em nós e se expressa através de tudo. Deixa-se o campo das superstições e tolices para experienciar algo sem modelos. Citando Espinosa, Deleuze afirma que “o terceiro gênero de conhecimento é um mundo de intensidades puras” (2002, p.23). Certa de que esta tarefa absolutamente não

53 está ao meu alcance, trago ao menos a atrevimento de mencionar algo deste gênero para o presente estudo, à medida que ele propõe que tomemos parte da potência criadora em nós e no mundo.

Aposta-se em “multiplicar os ângulos de visão, de escuta-fala sensível, pesquisando sem cessar o que estava invisível por falta de proliferação do olhar-ouvir-tocar-cheirar- degustar, do intuir, do se emocionar, do raciocinar” (GAUTHIER, 1999, p. 20-21).

Destaca-se, desta forma, que não houve a intenção de realizar a avaliação do cuidado através da lógica do certo-errado, do bom-ruim, do ideal-indesejável, pois isto favoreceria uma análise que traria apenas valores transcendentes e que iria olvidar a diferença. Pretendeu- se mesmo olhar para as nuances do cuidado sob o enfoque do que está nos fluxos, nos afetos, nas singularidades dos encontros, nos acontecimentos, na produção de alteridades e na perspectiva da diferença, a partir das inspirações e relações ético-estéticas que se estabeleceram.

Há que se estar à espreita, à espera de encontros, a espera de acontecimentos, atentos à geografia não só física, mas também virtual: atento aos fluxos e possíveis agenciamentos; atentos aos processos moleculares e a todo o fulgor das singularidades. Para isso, coube ‘radarizar’ os sentidos para perceber as interferências, os fluxos na pesquisa e as produções instituintes no campo do cuidado.