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O pesquisador diante do campo de estudo: uma convergência

Figura 3: Fotografia do cardume em convergência no Oceanário de Lisboa Fonte: acervo da pesquisadora, 2015.

Nesta foto acima trago o registro do momento em que fiquei estupefata com este cardume que “grudou” no vidro para olhar de perto aquele que o observava, a despeito dos demais peixes que circulavam pelo grande aquário parecendo ignorar nossa presença, isto é, a presença dos observadores.

Se fosse possível, eu perguntaria o que eles estavam buscando e o porquê de estarem demonstrando tamanho interesse. Como não pude lhes perguntar isto, guardando-se as devidas diferenças (pois esta é uma perspectiva metafórica), restou-me a associação com a ideia de implicação recíproca entre o “observador” (pesquisador) e o “cardume” (participantes

62 do estudo). Reconhece-se aí que ambos estão produzindo conhecimento a respeito do outro e a respeito de si, em detrimento da ideia de que um estaria observando o outro sem “interferências”, sem aproximação, sem que o observador modificasse ou despertasse algo naquele que está sendo observado.

Ademais, este encontro ictíaco me trouxe a seguinte questão: quem está pesquisando quem? Isto reforça a noção adotada neste estudo de ter seus participantes como co- pesquisadores, empoderados por seus saberes e experiências, autorizados na produção do conhecimento, na tentativa do dessujeitamento na pesquisa.

Figura 4: Oceanário de Lisboa. Fonte: acervo da pesquisadora, 2015.

Nesta fotografia estamos eu e um peixe enorme que me capturou com seu olhar. Vislumbrei a possibilidade da produção de alteridades na pesquisa como importante intercessor no encontro. Eu estou no ambiente dele, no território geográfico dele, mas há algo dele que pede passagem em mim e vice-versa.

Uma grande e importante diferença é que, na pesquisa estamos buscando atravessar o vidro para que se permita esta real aproximação que parece ser desejada por ambos os lados. Assim como o restante da fotografia, a noção de vidro é aqui simbólica com relação às hierarquias entre o pesquisador e o “participante”, e burocracias nos modos de se produzir conhecimento que distanciam pesquisador e objeto de estudo. Acredito que a própria produção de encontros potentes funcionaram como uma força molecular que atravessou e sobreviveu ao que há de duro, de hierarquia, de molar na proposta científica.

63 7.2 O pintor, a modelo e o oco: intercessores

E se fosse possível um revezamento nos papéis de quem pesquisa, de quem executa o cuidado e de quem o recebe? Se, ao invés do profissional “examinar” o paciente, este avaliasse o profissional de saúde? E se o pesquisador pudesse ser o próprio usuário e o pesquisador propriamente dito pudesse se encontrar com o cuidado em sua plena execução?

Figura 5: Obra de Picasso “O pintor e a modelo”, 1926

O óleo sobre tela "O Pintor e a Modelo" (1963), do pintor espanhol Pablo Ruiz Picasso (1881-1973) pertence à coleção do Museu Nacional Centro de Arte Rainha Sofia, em Madri. Nesta obra, vemos o pintor separado da sua modelo pela tela. A mulher domina a tela pela mancha branca que representa o seu corpo nu e algo disforme. Uma das partes mais interessantes é o seu rosto que irradia contentamento. Remete-me a um possível revezamento, em que o artista está em sua própria obra de arte, assim como a modelo, e reforça seu olhar enquanto obra e enquanto pintor. Neste sentido, ele mostra, em seu percurso, a necessidade de criar arte sobre a arte.

Ao visitar a exposição “Picasso e a Modernidade Espanhola” que esteve no Centro Cultural do Banco do Brasil durante o mês de Setembro de 2015, me dei conta de que esta tela foi em mim um intercessor. Disparou uma desterritorialização do sentido da pesquisa com relação ao cuidado e aos papéis dos envolvidos. Demorei-me diante da tela, e sorria com ar

64 leve, me remetendo à pesquisa, e disse: “é isso!”.

Não pude ainda recolher todos os detalhes desse agenciamento, mas um deles de que me dei conta foi com relação ao fundo da tela, que é composto por borrões mostrando que, talvez, o que interessa a Picasso é a sua modelo. Isto me trouxe uma forte noção de imanência, de produção do sensível autônomo, de encontros ético-estéticos vivos na produção do cuidado e na pesquisa. Me fez pensar sobre o sensível específico a partir da modelo, da emergência do “qualquer um” na tela (Rancière, 2014), de um compromisso puro da obra com seu próprio objeto.

Isto falou em mim com relação à produção da pesquisa como algo que aposte na experiência do encontro, do próprio objeto de estudo não estar separado do pesquisador, da aposta na experiência em detrimento da interpretação, do revezamento como mencionei no início deste capítulo.

“Eu pinto tantas telas somente porque busco a espontaneidade e, depois de expressar algo com alguma felicidade, não tenho mais coragem de acrescentar o que quer que seja” (PICASSO, 1964).

Ainda na ocasião da visita a este acervo, fui ainda atravessada por afetos potentes diante da obra “Homenagem a Mallarmé”, produzida em 1958 por Jorge Oteiza. O trabalho é uma homenagem ao espírito da arte e é dedicado a Stéphane Mallarmé, escritor cuja poesia, como a de Oteiza, significou uma pesquisa, um paradigma da união entre a poesia e a arte. A tentativa de Oteiza era substituir o conceito de “oco” pelo de “vazio”. Ele buscava isto ao fazer com que o observador percebesse o espaço vazio enquanto entidade escultural, a “forma” do vazio feita pelo material que o envolve passa a ser a escultura propriamente dita. A proposta foi atingir o esvaziamento do espaço na escultura, a partir da justaposição de luz e de unidades formais dinâmicas e abertas em uma chapa de ferro.

65 Como nosso olhar se reduz e se restringe quando optamos por olhar apenas a chapa de ferro (inteiriça). Há uma infinidade de possibilidades e descobertas quando olhamos os pontos da obra onde “não há”.

Os vazios é que permitem que, com o efeito da luz, que uma outra obra seja projetada sobre a superfície (branca) em que se encontra a chapa de ferro. As quinas que racham o que há entre o espaço preenchido e o espaço vazio apontam outro sentido. E ao olhar para a chapa de ferro da esquerda para a direita proporciona-se uma paisagem absolutamente diferente daquela vista da esquerda para a direita, ou de cima para baixo, ou de baixo para cima. E a depender do local de onde a luz esta sendo projetada, todos os desenhos de vazio sobre a superfície branca serão completamente diferentes.

Tais perspectivas a partir da produção artística permitiram que afetos e percepções ganhassem consistência em mim. Senti uma surpreendente relação entre esta provocação plástica e o tema da produção de cuidado, pois remeteu a uma necessidade de esvaziamento do projeto fixo do cuidado para que se dê espaço para o novo; remeteu a pensar sobre aquilo que é forte e inteiro apenas porque contém rachaduras por onde a vida pode passar, onde o “não” e o “sim” co-existem.

Os artistas espanhóis quiseram unir a arte moderna à intuição, a vontade de fazer com que a pintura e a escultura provocassem sensações equivalentes àquelas suscitadas pela poesia, mas promovendo a alegria de viver e o fluir, em contraposição ao sentimentalismo. Assim como eles, acreditamos também em unir estes elementos da arte, como intuição, produção de afetos e agenciamentos, com elementos do cuidado.