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O cantador e o cuidado: tecnologias autopoiéticas

Há um músico do extremo sul da Bahia chamado Eugênio Avelino, mais conhecido como Xangai, que se intitula ‘arteiro’; arteiro no sentido do artesão. Afirma: “minha arte é uma arte típica do artesanato”. Como pode a música ser artesanato? Para um leitor apressado, pode parecer incompatível porque comumente associa-se o artesanato a uma produção necessariamente manual. Mas o que Xangai e outros sertanejos propõem é um artesanato que extrapole uma técnica, não se limitando a uma ou a outra forma de se fazer. O que interessa a eles na ideia de produzir música como ‘arteiro’, como produtor de artesanato, é a noção de algo que não é industrializado, que escapa à produção em série. O artesão não recorre a

66 máquinas nem a processos automatizados. Não existem, por isto, duas peças de artesanato exatamente iguais.

Xangai explica que ele é ‘cantador’ e não cantor: “Eu canto o que sinto... a natureza, o social, o homem, as situações do universo... e tudo isto eu canto de dentro para fora. Ao passo que muitos cantores, com todo meu respeito, cantam de fora para dentro. O sertão é uma coisa muito mais profunda, muito mais séria”.

Parafraseando Xangai, a vida do outro é uma coisa muito profunda e muito séria. Aqui se dispara o deslocamento que Xangai pode produzir em nós ao pensarmos a produção do cuidado. Cantor ou cantador? Cuidado serializado ou cuidado afetado? Cuidado de fora para dentro? Ou cuidado de dentro para fora?

A quem convém distinguir um fazer que seja do artesão/artista/arteiro do fazer do trabalhador da saúde? De fato a arte do artesão não pressupõe uma formação acadêmica. No entanto, ele artista, artesão ou arteiro pode nos emprestar uma visão do mundo do trabalho em que o saber e as tecnologias empregadas se dão na própria experimentação.

Como exemplo icônico desta afirmação, o primeiro disco de Xangai, gravado no ano de 1976, chama-se "Acontecivento". A este respeito, cabe a cada um recolher este confeto (conceito+afeto, Gauthier, 1999) de alguma forma. Em meu ponto de vista e em minha vista do ponto (Merhy, 2014), o nome do disco me leva à noção de acontecimento, e também à ideia de que seu trabalho acontece vivendo, experimentando. Ocorre-me também algo a respeito de um vento, de algo que desloca e muda as coisas de lugar, no cotidiano, no que acontece.

Saboreando um pouco mais os possíveis efeitos dos ensinamentos de Xangai para a área da saúde a respeito do que é ser ‘arteiro’, associo-o à noção da produção do cuidado como trabalho vivo em ato (Merhy, 2006). Vejam o porquê:

A comercialização das peças de artesanato costuma realizar-se de maneira direta (entre o artesão e o comprador) ou através de pequenos mercados ou de feiras. Ao desenvolver cada peça à mão, é difícil conseguir o nível de produção necessário para chegar às grandes lojas ou a cadeias de supermercados (BRASIL, 2012, s/p.).

Pensar em embutir uma produção singular em uma cadeia de larga escala retira desta produção exatamente seu sensível específico (Rancière, 2014), sua capacidade de dar lugar ao que é menor, ao que é espontâneo, e atropela sua legitimidade enquanto trabalho produzido de dentro para fora, tornando-a antiprodução.

67 É preciso prudência para que não haja a captura do artesanato por uma finalidade utilitária. A perspectiva de aumentar a produção de peças e diminuir seus custos irá levar necessariamente ao processo de industrialização ou mecanização, que vai contra a própria noção de artesanato. Neste sentido, Xangai afirma que produz música na lógica do artesanato, pois zela para que suas cantigas sejam, antes de tudo, algo singular e aquilo que dialoga com o que ele sente (pensa as canções com o afeto).

Bem como o trabalho do artesão, também o trabalho do cuidado tem sido constantemente capturado por uma lógica de produção em massa. É como se fabricar um grande container de peças artesanais fizesse com que cada comprador de uma das peças passasse a gostar ainda mais deste produto porque ele estava em um armazenamento de onde saíram várias peças idênticas para outros compradores.

A quem serve produzir uma grande e totalizante forma de cuidar? Em nome de que se enaltece a afirmação: “Vamos construir um ‘container’ onde possamos depositar todas as formas previstas de cuidar”? O termo container está sendo utilizado neste parágrafo representando uma metáfora, fazendo alusão aos catálogos e protocolos como reservatório de análises psicopatológicas e intervenções pret a porte.

A disputa política aqui não é entre prática baseada em evidências e prática baseada em palpite a esmo. A disputa é que as evidências sejam imanentes, que sejam resultadas da própria construção de vínculo, do transbordamento do encontro, da autopoiese dos corpos.

Em resumo, parece impossível definir o empirismo como uma teoria segundo a qual o conhecimento deriva da experiência. Já a palavra ‘dado’ convém. Mas, por sua vez, o dado tem dois sentidos: é dada a coleção de idéias, a experiência; mas, nessa coleção é também dado o sujeito que ultrapassa a experiência, são dadas as relações que não dependem das idéias (DELEUZE 2001, p.122).

A experimentação é um acontecimento a partir do qual se infere a existência de outra coisa que ainda não está dada, daquilo que se apresenta como dado aos sentidos. Essa inferência, ao ultrapassar o dado, permite não somente os julgamentos, mas, sobretudo, põe o experimentador como sujeito da experimentação. Para Deleuze esse é justamente o problema como pode, no dado, “constituir-se um sujeito tal que ultrapasse o dado? Sem dúvida, também o sujeito é dado, mas de outra maneira, em outro sentido. Esse sujeito que inventa e crê se constitui no dado de tal maneira que ele faz do próprio dado uma síntese, um sistema” (Deleuze, 2001, p. 94). Em suma, essa dualidade do dado suscita em Deleuze a seguinte questão: “Como pode haver o dado, como pode algo se dar a um sujeito, como pode o sujeito

68 dar a si algo?” (DELEUZE, 2001, p.94).

Assim, pensou-se em uma ética deleuziana: “um corpo que avalia e experimenta”. Esta inspiração ético-estética não veio nesta pesquisa através de uma experimentação do tipo intervenção, onde o pesquisador traria uma proposta de atividade previamente planejada por ele. Ao contrário disto, consideramos aqui a experimentação sob o ponto de vista do próprio encontro, dos acontecimentos que se produziam em ato com o campo, no campo e, principalmente, pelo próprio campo. Aprecia-se a experimentação produzida em ato, no encontro, dando passagem às multiplicidades que circunscrevem um campo de relações heterogêneas distribuídas em rizomas, marcando devires, linhas de fuga e de desterritorialização.

Nas próximas seções trago os dados produzidos a partir da experimentação do encontro direto com os usuários do CAPS. Considerando-se a perspectiva da pesquisa “in-mundo”, me transfiro para as cenas e acontecimentos no campo de estudo e me permito ser interferência para a produção de conhecimento.