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A VALORIZAÇÃO DA FAMÍLIA

No documento humbertodecampos graosdemostarda (páginas 75-83)

Mãos para trás, nervoso, colete desabotoado, a camisa aberta no pescoço taurino, o velho Jacinto, o sapateiro, andava de um lado para outro, com o inferno no coração. Nunca pensara que lhe acontecesse semelhante desastre. Aquela filha, que era seu encanto, o consolo da

sua vida, deixar-se cair no infortúnio, entregando a sua honra a um indivíduo que ela não sabia, sequer, quem era!...

E vinham-lhe à imaginação os vinte anos passados, a infância da pequena, tão miúda, tão risonha, tão rechonchuda, com aqueles braços muito alvos, muito roliços, e aquelas duas covinhas no rosto.

Sentada na velha cama de gente pobre, Dona Januária fazia o seu "crochet" manejando a agulha com lentidão. A indignação do marido não lhe chegava à alma, que parecia tranqüila, serena, alheia à tempestade que abalava o companheiro. O que sucedera, parecia-lhe natural, esperado, inevitável. A Carminha era bonita e nova. Foi tentada e sucumbiu. Que havia de novo, nisso? E foi pensando assim, que pediu ao esposo:

- Sossega, Jacinto! Depois, o rapaz não foi ingrato: deu-lhe um anel de brilhantes que vale quase quinhentos mil réis!

- Quinhentos mil réis?... - fez o velho, com ironia. - Quinhentos mil réis pela honra de uma donzela!...

A essas vozes, Dona Januária atirou o "crochet" para um lado:

- Você acha pouco? Hein?... Você acha pouco?

E, de pé, as mãos nas cadeiras:

- Você não se lembra que só me deu, por muito favor, um par de sapatos, que não valia nem dez?

LXXII

INOCÊNCIA

Chapeuzinho de seda azul, vestido de crepe-da-China branco, desses que escorregam pelo corpo à semelhança de uma camisola de dormir, aquela figurinha passava pela Avenida, com uns ares tão sérios, tão graves, fisionomia tão fechada, que infundia respeito. Que ela era bonita, toda a gente o via. Ninguém, porém, se atrevia a uma palavra, a uma exclamação, e, mesmo, a um olhar mais atrevido, com medo de represália.

Tic-tic, tic-tic... E lá se ia, passo miúdo, pescocinho teso, busto empinado, aquele vultozinho encantador. E em torno dele, ou sob seus passos, o que ficava, ou o que se sentia, não era o coro da lisonja, mas um perfume de inocência, de pureza, de castidade.

À esquina da rua da Assembléia, apareceu, porém, o primeiro insolente.

- Meu Deus, que beleza! - exclamou o atrevido.

A menina parou, os olhos fuzilantes.

- Malcriado! - rugiu, entre dentes.

E num longo dengue, antes que ele fugisse:

- Quem foi que lhe disse que eu me chamo Luíza e moro na rua José dos Reis, 41?

LXXIII

O PERIGO

Tomás Gonçalves da Gama , o famoso mundano de roupas tão cuidadas e maneiras tão distintas, polia as unhas tranqüilamente, recostado na cadeira de embalo da sua "garçoniere", quando a campainha retiniu.

A "garçoniere" de Tomás da Gama era composta, apenas, de dois compartimento: o gabinete, onde havia o divã, a cadeira de mola, uma estante de livros, e uma pequena mesa de centro com flores sempre frescas; e o "templo", como ele denominava o adito em que se achava a cama, com os móveis complementares.

Ao repinicar da campainha, o rapaz, que estava ainda com o pijama da noite, abriu a porta.

- Ah! és tu?... Entra, Maneco!

O recém-chegado, um rapagão moreno, alto, de cara escanhoada, estava visivelmente preocupado. E foi isso mesmo que o dono da casa verificou, ao vê-lo atirar para o divã o chapéu, a bengala, e um jornal que trazia na mão.

- Que há de novo? - foi perguntando Tomás da Gama, na previsão de qualquer coisa desagradável.

- Para mim nada; para ti, tudo!

- Assim? - fez o mundano, parando o movimento do polidor.

E interessado:

- Que há?... Vamos... explica-te...

Manoel Bentes, o Maneco da saudação amiga, inclinou-se para a frente, no divã, encaixou os dedos das mãos uns nos outros, e começou:

- Sabes? Estás perdido!

- Eu?...

- Tu, sim.

- Mas, dize o que há; pelo amor de Deus!

- O que há, é que o Broxado Ramos sabe, já, que tu és amante da mulher dele!

- Sabe?

- Sabe de tudo!

A testa franzida, mordendo o lábio inferior nervosamente, Tomás da Gama fechou os olhos, como para meditar melhor. Estava mergulhado em silêncio como um peixe no oceano. De repente, porém, voltou-se para o amigo.

E como o outro o olhasse:

- Tu achas que o Broxado Ramos possa me comprometer, contando isso a alguém?

E agitou o polidor com fúria, brunindo as unhas.

LXXIV

MADALENA

Sentado à mão direita de Deus Padre, o Nazareno olhava, das alturas, a sucessão infinita de nuvens. O panorama que se desenrolava aos seus olhos tristes fazia-lhe lembrar aquele que vira, uma tarde, do alto do Gólgota, nas proximidades de Jerusalém. Apenas, aqui, são as nuvens que se amontoam, enquanto que, lá, eram o monte Garizim, o monte Efraim, e o Tabor, perdidos na bruma da distância. Aquele espetáculo transportou-o a dias longínquos da sua vida na terra. E foi com saudade, numa tristeza dolorida, que chamou:

- Padre!

Chegou, pressuroso, o velho apóstolo, as chaves do Paraíso tilintando nas mãos.

- Pedro, - pediu, - Maria de Madalena está aí?

- Está, meu senhor; está no terceiro Jardim das Bem-aventuradas.

- Dize-lhe que venha comigo.

Momentos depois surgia, os olhos amortecidos, um sorriso de Gioconda no canto da boca mimosa, a antiga amante de Jesus.

- Maria, - pediu Jesus, com doçura, - aproxima-te.

- Uma profunda tristeza enche-me, neste momento, o coração. Parece que minh'alma, pregada numa cruz, entra em agonia... Não sei que seja, nem compreendo. Sei, apenas, que tenho um desejo irresistível de reviver, por um instante, certos momentos passados na terra: o episódio do poço de Jacó, as bodas de Caná, a ressurreição da filha de Jairo, e, sobretudo, aquela noite em que, na casa de Simão, o Fariseu, ungiste os meus pés com o teu bálsamo enxugando-o, depois, na toalha de ouro dos teus cabelos...

E após um instante:

- Maria, queres tu repetir aquele instante sublime da minha missão, e da tua vida?

Um choro miúdo, triste, dolorido, foi aresposta a esse pedido tão doce.

- Ah, Senhor, não posso! - gemeu a mísera.

E sacudida pelos soluços:

- Eu cortei os meus cabelos, Senhor!

E numa voz ainda mais triste:

- É moda...

LXXV

AS MAÇÃS

(Conto popular do sul da França)

Naquela manhã, minha mãe encheu o meu cesto azul com duas vezes doze maçãs, e disse- me:

Pus meu vestido gomado, meu xale cor-de-rosa, calcei minhas sandálias de ir à missa, tomei o cesto debaixo do braço, e parti.

Ao atravessar o bosque, como fizesse calor, tirei o meu xale e continuei a andar. A erva era tão fresca, e tão espessa, que eu descansei o cesto, e sentei-me no chão. Minhas maçãs brilhavam tanto, e cheiravam de tal maneira, que eu própria lhes sentia o perfume. Tentada por elas, palpei a primeira e mordi. Palpei a segunda, e fiz o mesmo.

- Minha mãe não saberá de nada! - dizia comigo mesma.

De súbito, os ramos estalam, e aparece, entre a folhagem cintilante de orvalho, a figura de um caçador. Os olhos dele eram negros, e brilhantes. Quando a sua boca sorria, tornava-se, branca e rosadas, como as maçãs que eu acabava de morder.

- Bom dia, pequena! Que fazes tu por aqui num dia tão quente?

- Meu senhor, - respondi, - eu vou à cidade vender para minha mãe estas duas dúzias de maçãs.

- Não é preciso ir tão longe, minha menina, - tornou o caçador; - eu as comprarei todas, e tu terás, assim, bastante tempo para descansar, antes de levar à tua mãe o escudo que tenho aqui.

- Um escudo, caçador? Tudo isso por tão pouco?

Sem dar uma palavra, ele estendeu-me o seu chapéu, no qual eu pus as frutas, que se pôs a contar.

- Olá, pequena! Faltam duas.

- Não faltam, não, meu senhor; - gemi, assustada.

- Não mintas, menina; faltam duas, sim. Ou me entregas as duas dúzias, ou eu tomo o meu escudo. Procura-as, e dá-me o par de maçãs, que eu não vejo!

...

Ah, minha mãe, minha mãe! Como me custou ganhar aquele escudo!...

LXXVI

A "DIVORCIADA"

Desde que tomou, aos quatro anos, conhecimento do mundo e da vida, A Madaleninha indagara de Dona Judith:

- Mamãe, onde é que está o papai?

As primeiras respostas da moça foram uma série de sorrisos, de desculpas ingênuas, para enganar a pequenita. Por essas informações, o pai estava de viagem, andando de cidade em cidade, das quais volveria, um dia, carregado de presentes e brinquedos, para as duas. E quando a menina reclamava, pelo menos, um retrato do viajante misterioso, Dona Judith fechava os olhos, numa evocação, como quem pretende reconstituir, um por um, os traços de uma fisionomia esquecida.

Com dez anos, já, a Madaleninha pedia explicações mais claras, à pobre mãe abandonada. E esta avançou um ponto:

- Minha filha, teu pai não voltará mais!

- Nunca mais, mamãe?

- Nunca mais!

- Ele morreu, então?

- Não; não morreu, não.

- Tua mãe, filhinha, é divorciada, isto é, uma senhora separada do marido.

A pequena arregalou muito os olhos, e não falou mais no assunto. Aos quatorze anos, voltou a pedir esclarecimentos:

- Mamãezinha, a senhora é separada do papai... Não é?

- Sou, minha filha.

- Diga-me, então uma coisa: quanto tempo a senhora viveu com ele?

Dona Judith baixou os olhos, para poder esconder duas lágrimas. E foi sem poder escondê- las, que desvendou o seu horrível segredo, rebentando em soluços:

- Pouco tempo, minha filha...

E caindo no ombro da menina boquiaberta:

- Uma noite, num trem...

LXXVII

No documento humbertodecampos graosdemostarda (páginas 75-83)