• Nenhum resultado encontrado

OS TRÊS "ALÍVIOS"

No documento humbertodecampos graosdemostarda (páginas 68-74)

Aquele dia, era de lição de piano. Manhã cedo, ao levantar-se, mlle. Alzirinha tomou o seu banho, penteou o seu cabelo cor de mel, que não cortara segundo a moda, e às oito horas estava já na sala, pedalando com maestria, enquanto a mão corria, ligeira, pela dentadura alvi-negra do seu "Pleyel" cor de castanha.

Com seus dezoito anos sadios, Alzirinha Batista era uma linda mulher em formação. Morena, olhos negros, seios turgidos, orelhas pequeninas e vermelhas como duas pétalas de uma

rosa desfolhada pelo vento, possuía uma linda boca miúda, e uns dentinhos de rato feitos, parece, de propósito para aquela boca.

Naquele dia amanhecera, entretanto, um pouco indisposta. O jantar da véspera, na casa dos Peixoto Rocha, não lhe fizera bem; tanto que, ao chegar em casa, a mãe lhe dera a tomar uma dose de bicarbonato, que a moça ingeriu, entre caretas. E era assim que ali estava, ao piano, sozinha na sala, à espera da professora. A mão corria-lhe, rápida, da esquerda para a direita do teclado com uma proficiência de mestre. E o piano gargarejava, multiplicando as notas, quando, a certa altura, a moça parou, levantou-se ligeiramente no banco de rodízio, fez uma cara de esforço e de sofrimento, e, soltando um gemido, exclamou:

- Arre! Que alívio!...

Reencetou a lição, tocou as escalas mais algumas vezes cm assombrosa agilidade e de novo, parou. Fez os mesmos movimentos, o mesmo esforço, a mesma cara, soltou o mesmo gemido, e, com ele, a mesma exclamação:

- Que alívio!...

De repente, porém, no meio da lição, notou, pelo reflexo no piano, um vulto, atrás do banco.

Voltou-se de súbito, e empalideceu: estava ali, à sua frente, o Abelardo, seu noivo, que, tendo entrado sorrateiramente na sala, ficara atrás, de pé, afim de não interromper o estudo.

- Meu Deus do céu! - exclamou a moça, de si, consigo; - ele terá ouvido alguma coisa?

E procurando dominar-se, um sorriso contrafeito ao canto da boca e cravo:

- Desde quando você está aí?

- Eu? - fez o rapaz, brejeiro.

E impiedoso:

- Desde o primeiro alívio...

FEMINISMO

Há muito tempo vinha o Fernando Rezende estranhando aquela amizade da sua Heloísa com a Cláudia Sobreira, viúva do Almirante Sobreira, falecido gloriosamente de gripe no combate da Ilha do Boi. Assim que amanhecia, mme. Rezende tomava do fone, pousado na mesa de cabeceira, pedia ligação para a casa da amiga, e punham-se a conversar. O marido levantava-se da cama, tomava banho, engolia o café, e saía; e as duas ficavam, ainda, atracadas ao fio, numa permuta de beijos, de carícias, de segredinhos que era, mesmo, de acordar desconfianças. Após o almoço, uma ia para a casa da outra, e, quando se separavam à tarde, era para, cada uma da sua casa, continuarem a palestra, e novo, pelo famigerado telefone.

- Mas que amizade! - matutava o jovem advogado. - Palavra de honra que nunca vi coisa assim! Enfim, são mulheres...

Uma tarde, chegou Fernando Rezende em casa um pouco mais cedo do que de costume, e perguntou pela senhora.

- Foi para a casa de Dona Claudinha, - informou a copeira. - Mas eu acho que elas se desencontraram, porque Dona Claudinha já estava em caminho para cá.

- E já chegou?

- Já, sim, senhor. Ela está lá em cima, no quarto.

Fazendo-se desentendido, Fernando Rezende subiu a escada, e simulando não saber de nada, enveredou pelo quarto de dormir, onde a viúva do almirante se achava, no momento, mudando de roupa.

- Ah! a senhora?!... fez, detendo-se no meio do aposento.

E percorrendo-lhe, com os olhos, o corpo admirável, que a moça procurava esconder, debalde, prendendo entre as duas mãos, aberta, a pequena camisa de cambraia.

- Saia, doutor! - impôs a moça, vermelha, visivelmente perturbada pela surpresa.

E em tom pilhérico, sacudindo o paletó, o colete, o colarinho para cima de uma cadeira:

- Ademais, a senhora está de tal modo ligada à minha mulher, que é como se fosse ela própria. Aos meus olhos, não há diferença nenhuma.

E enquanto falava, ia arrastando para o divã, docemente, a encantadora criatura, que se deixava levar, envergonhada, mas sem opor a mais ligeira resistência.

Ao fim de dois minutos, estavam, os dois, no mais apaixonado dos idílios, quando a porta do quarto se abriu, a apareceu, muito branca, o chapéu ainda a cabeça, o boá na mão, o vulto de Dona Heloísa.

- Que é isto?... - fez, no arranque da surpresa.

E avançando para a amiga:

- tu me traíste! Hein?... Tu!...

E os punhos cerrados, o rosto vermelho de cólera, como quem sente, de súbito, desmoronar o seu castelo:

- Adúltera!... Adúltera!... Traiu-me!... Enganou-me! Logo com quê?...

E com desprezo, indicando o marido:

- Com um homem!...

LXVIII

O CAMPEÃO

À mesa do "restaurant" de luxo em que se haviam encontrado, os dois boêmios trocavam impressões e confidências quando o Fernando Mota, vibrando um murro na mesa, protestou:

- E por que não? - estranhou o outro.

- É que eu duvido!

- Duvidar, duvido eu!

- Então vamos fazer uma coisa, - propôs o mais novo dos dois, o Souza Júnior; vamos por esta avenida afora, e, cada vez que um veja uma criatura com que já tenha tido amores, mas amores reais, de abraços, de beijos, de carícias, irá contado, alto, combinado?

- Está combinado, concordou o primeiro.

Momentos depois, lado a lado, braço no braço, desciam os dois estroinas a grande artéria elegante, quando o Fernando Mota, ao passar por uma francezinha de bico de lacre, contou, iniciando a série:

- Uma!

- Uma! - fez, também o Souza.

Mais um momento e, à passagem de uma dama ricamente vestida, o Mota bisou:

- Duas!

- Duas! - fez, por seu turno, o companheiro, demonstrando terem andado, até aqui, pelos mesmos caminhos.

À esquina, quase, da rua Sete, vinham em sentido contrário, completamente distraídas, uma senhora ainda nova, deliciosamente pintada, e uma rapariga fresca, risonha, de uns vinte anos no máximo. Eram a mulher e a filha do Mota, que o Souza não conhecia como tais, e que iam para o cinema. À aproximação de ambas, o esposo contou, com justiça:

- Três!

- Três... quatro...

LXIX

O TEMPORAL

À medida que se passavam os dias, ia Dona Lourencinha ficando mais nervosa, mais aflita, mais inquieta. Há um ano que o sr. Balduino caíra naquela apatia, naquele desinteresse pelos seus encantos, e como não se julgasse de todo inapetecível, ficava a pobre senhora a torturar-se com aquela triste situação do marido.

O fenômeno era, entretanto, um fato natural. Com quarenta anos de idade, casara-se Dona Laurencinha com um homem mais velho do que ela quase vinte. Era de esperar, pois, que o marido já estivesse quase gelado, quando a esposa não havia começado, sequer, a esfriar.

Desolada, assim, com a sua condição, amaldiçoava a virtuosa senhora o seu destino, que lhe dera um esposo sem energia, sem força, sem vontade, quando, uma tarde, o céu começou a cobrir-se de nuvens escuras, anunciando um temporal. A atmosfera abafava, como um forno. E Dona Laurencinha pensava na vida e no mundo, quando a tempestade caiu, precedida de uma ventania formidável. Sacudidas pelo sopro do vento, as portas e as janelas batiam, com violência. As cortinas panejavam como velas, ao mesmo tempo que os papéis voavam de cima dos móveis, arrastados no turbilhão.

Fora, no quintal, o vento fazia estragos maiores. Folhas de zinco foram atiradas longe, enquanto a poeira, revolvida no solo, se erguia, rodopiando. Peças de roupa que estavam no coradouro, subiram como papagaios de papel, enquanto a lavadeira corria para dentro de casa, segurando com as mãos a saia de chita azul, que a ventania procurava suspender.

- Nossa Senhora! - gritou a rapariga, enveredando pela cozinha.

E agarrando as saias, com mais força:

- Esta ventania levanta tudo!...

A essas vozes, Dona Lourencinha, que estava no quarto de costuras, chegou à copa, indagando:

- Nada, Dona Rencinha. É a ventania que está levantando tudo, no quintal!

Um raio de esperança cortou o cérebro da pobre senhora abandonada. E foi animada por ele, que gritou, para cima:

- Bene?

- Que é? - respondeu o marido.

E ela:

- Vem ficar na ventania um pouquinho, filho! Talvez te faça bem!

LXX

No documento humbertodecampos graosdemostarda (páginas 68-74)