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OS TRÊS COLARES

No documento humbertodecampos graosdemostarda (páginas 91-95)

A porta estreita e luminosa do Paraíso das jóias, guardado, no céu, pelas estrelas mais miúdas, encontraram-se, pedindo passagem, três colares de pérolas. Ligadas umas às outras pelo fio que as reunira no mundo, as gotas leitosas recordavam, no seu brilho doce, pequenos carreiros de Santiago, inventados pelos anjos.

- Eu - falou o primeiro, - pertenci, na terra, à esposa de um banqueiro. Era uma senhora honesta, e sofredora. Caí do seu pescoço de mármore, e, para não ser pisado pelos homens, vim esconder-me no céu.

- Eu, - suspirou o segundo, - vivi ao pescoço da mais sedutora das criaturas. Era uma formosa moça casada, que pertenceu, de corpo, unicamente ao seu marido. Tal era, porém, a sua

graça, a sua tentação, a promessa mentirosa dos seus lábios e dos seus olhos, que os amigos do esposo lhe davam dinheiro, enchendo-lhe a bolsa com as mãos.

- Pois, eu - gemeu o terceiro, - pertenci a uma cortesã. Os seus admiradores compravam-lhe as carícias, e passavam. E cada um, ao passar, deixava um óbolo no seu regaço.

- Cada uma das minhas pérolas representa uma lágrima! - disse o primeiro colar.

- Cada uma das minhas representa uma mentira! - declarou o segundo.

- Cada uma das que me formam, representa um beijo! - murmurou o terceiro.

Nesse momento, abriu-se a porta do Paraíso. E um anjo pequenino, que dela saiu, tomou nas mãos de neve o colar em que cada pérola valia um beijo, e penetrou, com ele, no recinto sagrado, onde as pérolas e os diamantes, os rubis, os topázios, as pedras todas, tocadas pelas mãos de Deus, se mudam em estrelas...

LXXXV

CONFISSÕES

Não obstante a sua aparência de boêmio, Luiz Gonzaga Fernandes era um homem de coração. Casado com uma criaturinha de boca pequena e olhos grandes, adorava-a sinceramente e, por isso mesmo, doía-lhe a prática das suas próprias infidelidades.

- É uma infâmia da minha parte - monologava ele, às vezes, no automóvel, a caminho de casa. - Não seria mais humano, mais lógico, mais digno, que eu lhe revelasse as minhas aventuras, pondo-a ao corrente de minha vida?

E conluia, de si, consigo:

- Sim; porque, o que é indigno em um homem não é ser infiel à companheira, mas ser infiel e querer passar por um santo. O pecado está não na infidelidade, na quebra do pacto matrimonial, mas na mentira, que é o mais degradante dos vícios.

Certo dia, após uma série de conjecturas profundas, resolveu, decidido:

- Não; é preciso acabar, de uma vez, com esta miserável hipocrisia. Minha mulher é pura, honesta, virtuosa, e não merece que eu lhe minta. Vou confessar-lhe, pois, francamente, lealmente, sinceramente, as minhas relações com Liloca, mulher do Gaudêncio. Se ela me quiser perdoar, muito bem; se não, fico em paz com a minha consciência, com a minha alma, com o meu coração, satisfeito com ser um marido infiel, mas nunca um mentiroso!

Chegado à casa, chamou à parte a esposa. E, contou-lhe, sem omitir uma só particularidade da sua vida, a afeição que o prendia à esposa do seu melhor amigo, e a necessidade, que havia, de que ela, a sua Cotinha, sua mulher, o perdoasse. Era uma fatalidade; mas, que havia de fazer, se era aquele o seu destino?

Fisionomia serena, com a mão no queixo e o cotovelo no espelho da cama, Dona Cotinha escutava o marido. E quando ele acabou a exposição do seu caso, indagou, sem raiva:

- Dize-me uma coisa, Luiz: há quanto tempo tu me enganas com a Liloca?

- Eu? Há quatro anos.

- E achas que eu te devo perdoar?

- Acho!

- Então, filho, - fez a moça com ironia, - és tu que deves perdoar a mim.

- ?...

- Há seis anos que eu sou amante do Gaudêncio, marido dela!

LXXXVI

O BORDADO

Não obstante o sortimento do seu armarinho, o Borges Pedreira não tinha a freguesia a que o seu negócio fazia juz. E a razão era simples: casado com uma senhora ciumentíssima, que montava guarda ao balcão, as damas de Pedra Branca evitavam, quanto possível, a sua

casa, só indo comprar lá alguma coisa quando, mesmo, não havia remédio. Alta, magra, olhar inquisitorial, Dona Marocas constituía um espantalho do belo sexo, olhando cada freguesa como uma rival, que alí ia, não para fazer compras, mas para conquistar-lhe atrevidamente o marido.

Vigiado assim de perto, passando a vida de sentinela à vista, o Borges Pedreira devia ser um dos maridos mais honestos, mais castos, mais fiéis, de Pedra Branca. E Dona Marocas estava quase certa dessa verdade, quando entrou, um dia, na loja, uma pequena de uns nove anos, muito espevitada, filha de uma das raparigas mais bonitas da cidade, e que pediu, logo, entre um cumprimento e um sorriso:

- Sr. Pedreira, eu queria três metros de bordado.

Com Dona Marocas a seu lado, o negociante pôs sobre o balcão algumas caixas do artigo, para que a menina o escolhesse.

- Despache-me, que mamãe está com pressa! - reclama, com energia, a pequena.

- Escolha o bordado; pois eu hei de saber?

- O senhor sabe, sim! - insiste a menina.

- Eu? - exclama o Pedreira, avermelhando-se de repente, a olhar, de esguelha, a esposa, que o devora com os olhos. - Posso eu lá adivinhar?!...

- Ora, não sabe!... - retruca a menina, zombeteira.

E com um risinho de mofa:

- É aquele, "seu" Pedreira, aquele da camisa da mamãe!...

LXXXVII

O "MAGNIFICAT"

Escritor italiano do século XVI

Havia na antiga Lombardia um sujeito de meia idade, que tomou para esposa uma jovem e linda rapariga. Após a cerimônia, conduziu-a ele, com todas as unções e electuários, à alcova nupcial.

O noivo não era, porém, mais, o esgrimista que havia sido. Por mais esforços que fizesse, não conseguia abater o adversário. As duas espadas valiam mais que o bastão. Joga daqui, joga dali, e nada de encontrar a carta de triunfo.

Sentindo a má posição em que se encontrava naquele momento, com a bolsa comprida, estirada, vazia de toda moeda, teve uma idéia: levantou-se no traje em que se achava, e abrindo a janela, começou a entoar, em altas vozes, e de um fôlego só, as santas palavras do "Magnificat".

Ao ouvir o canto religioso, a mulher ficou toda agitada, e as pessoas da casa, despertadas àquela hora, correram, aflitas, para o quarto dos noivos. Supunham que ele tivesse enlouquecido, e perguntaram-lhe:

- Que é isso, homem? Que quer dizer essa maluquice? Por que está cantando a esta hora?

- Isto vai mal, - respondeu "messer" Mazza (era esse o nome do sujeito) fazendo-se desentendido; - é que já é de madrugada e eu, até esta hora, nada consegui.

- E que quer dizer, no meio de tudo isso, o "Magnificat"?

- Eu fiz todo o possível - respondeu o velho, - para cumprir o meu dever. Pedi a quem devia que se pusesse de pé, tirando o seu chapéu em homenagem à noiva. Foi tudo debalde; então, lembrando-me que, nas novenas, sempre se canta o "Magnificat" e se toca o órgão, todo o mundo se levanta, me veio a idéia de recorrer a esse remédio, afim de obter o que ainda não consegui!

Toda a gente se pôs a rir e "messer" Mazza continuou a cantar, até de manhã...

LXXXVIII

No documento humbertodecampos graosdemostarda (páginas 91-95)