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O BOM BEBERRÃO

No documento humbertodecampos graosdemostarda (páginas 102-105)

(Catulle Mendes)

Eu - começou John Kinkerbocker, burguês de Londres, ventripotente como um hoteleiro de "vaudeville", e nariz vermelho como uma pasta de sangue; - eu posso dizer que não há um "gentleman" na velha Inglaterra, nem no continente, que se possa orgulhar de me haver visto tombar para baixo da mesa. O gim, o brandy, o porter, o ale, nuca triunfaram sobre mim. Quando eu lhes tenha preparado uma boa cama de "beef" com queijo, um rio de "hand-and- half" pode rolar por dentro de mim sem o menor inconveniente deste mundo. Minha capacidade é incomparável. Eu absorvo e resisto como ninguém. Se me furassem a barriga, sairiam dela bebidas para embebedar, durante um domingo, todos os alcoólatras de Dublin. Aos meus olhos, só há duas pessoas dignas de elogio, em matéria de resistência ao álcool. É meu compadre Anaximandro Ponbocker, excelente bebedor de "ale", e "mistress" Flore Kinckerbocker, minha mulher, verdadeiramente notável no que diz respeito ao brandy.

Acendeu o cachimbo, e contou:

- Eu os estimo! Lamento, porém, o que sucedeu um dia em que tiveram a audácia de querer rivalizar comigo. Apenas tinham esvaziado, ele, trinta duplos de cerveja, e ela, quatro garrafas de aguardente, caíram os dois para debaixo da mesa, juntos, um nos braços do outro. Toda a noite, bebendo sempre, fresco, disposto, imperturbável, eu tive o desgosto de os ouvir soltar os suspiros mais melancólicos e gemidos de cortar a alma, de bêbados, que estavam. Chegaram mesmo a trocar beijos e carícias, como pessoas que não têm a cabeça no lugar. E no dia seguinte de manhã - verdadeiramente, eu começava a ter sede, - eles estavam ainda tão embriagados, que lutei com dificuldades enormes para convencê-los de que eu não os devia deixar, absolutamente, dormir juntos na mesma cama!

E para o "garçon":

- Mais um, duplo!

A RONQUEIRA

As festas mais solenes que se realizam no interior do Brasil são os casamentos. Uma semana antes do ato religioso ou do ato civil, já a família da noiva trabalha, esbaforida, nos preparativos da mesa. Porcos rechonchudos guincham no quintal, ao contato da lâmina assassina, que lhes entra pela papada. Depois, são as galinhas estrebuchando, os perus embriagados, a as cabras, e os pombos, e as vitelas, sacrificados barbaramente à felicidade do novo lar.

Na sala de jantar, grande como a dos conventos, as amigas e parentas da noiva cortam papel de seda, de cores variadas, para os frascos de doce. Inquieta, desmanchando em ordens, multiplicando-se em cuidados, a dona da casa conta os pratos, os garfos, as facas, as xícaras, as colheres, fazendo recomendações às comadres, encarregadas da cozinha e da copa. E quando alvorece o dia do desastre, isto é, do casamento, é a azafama, a balbúrdia, a confusão, até que, por volta das onze horas, a ronqueira do adro da matriz troveja, ao longo, anunciando a aproximação dos noivos, unidos para sempre.

Criado na cidade, entre o fonfonar dos automóveis e o ruído tumultuoso dos bondes, o Zézinho estranhava aquele excesso de festas no casamento da sua prima Joaninha, que ele fora assistir em São Cosme de Cima, em companhia do pai. Tudo aquilo lhe parecia pitoresco, e, ao mesmo tempo, excessivo.

- Mas, papai, tudo isso é para o casamento da prima? - indagava, espantado, com a curiosidade dos seus oito anos.

- É, meu filho. Aqui, no interior, é assim.

- Mas, dois bois, oito carneiros, três cabras, nove patos, vinte e sete galinhas, e essa porção de doces e bolos, que enche a metade da casa?

- É assim mesmo. A fartura, aqui, é um costume.

- E aquele arco enfeitado, erguido perto da porteira, que é que significa?

- É uma tradição do lugar, parece. Aquilo quer dizer que a vida dos noivos deve decorrer debaixo de flores, como a entrada na fazenda.

Nesse momento, a ronqueira do adro da igreja, anunciando a terminação do ato religioso, berrou ao longe, fazendo rolar o tiro pelas quebradas da serra.

- E aquele tiro, papai, que é que quer dizer? - indagou o pirralho.

O velho explicou:

- Aquele tiro, meu filho, é um sinal.

E sorrindo, com ironia:

- Quer dizer... que vão começar as hostilidades.

XCVI

A LAGARTA

O sol estava novo, em folha, nesse tempo. Feito há poucos meses, a luz era dourada, e era um encanto vê-la refletida na juba dos leões, no dorso dos aurochs, nos chifres dos alces, ou na cabeleira fulva, e revolta, da primeira mulher.

Madrugada alta, na furna que haviam escolhido para domicílio, Adão erguia-se do leito de ervas secas, libertava-se dos detritos que lhe haviam aderido à pele tostada, e, sacudindo a esposa com o pé, fazia-a erguer-se, estremunhada.

- Veste-te! - ordenava-lhe.

Eva chegava à boca da caverna, estendia o braço para uma videira que aí se enredava, tirava uma folha, prendia-a com dois filamentos de planta, e, amarrando-a em torno dos rins, voltava à presença do seu senhor e marido.

Ao contrário do que se têm dito, não havia ainda, nesse tempo, a vaidade feminina. A mulher não se incomodava com afolha que lhe servia de vestimenta, pouco lhe importando que fosse verde ou amarela. Estendia a mão, e a folha que os seus dedos colhiam, era essa a sua "toilette" do dia.

Certa manhã, porém, andava o suposto primeiro homem à procura de mel, ou em perseguição dos alces nas planícies de Ghobbar, quando chegou à porta da caverna, amparado a um varapau, outro homem, que, pela estatura e pelo trato da pele, parecia vir de longe.

Ao vê-lo, Eva deu um pulo, desconfiada. E mirava-o, atenta, agachando-se, ou erguendo-se, quando o recém-chegado a envolveu com seus braços longos, apertando-a, entre grunidos, de encontro ao coração.

À noite, ao voltar à caverna, com o peito rasgado pelos espinhos e a barba, revolta, cheia de folhas emaranhadas, Adão vinha tão cansado que não viu, sequer, que as ervas do seu leito estavam mais machucadas do que de costume. Ao olhar, porém, a esposa, indagou:

- Onde está o vestido que puseste de manhã?

- Ah!... - fez Eva, com espanto.

E a cabeça baixa, como quem, procurando uma desculpa, mente pela primeira vez:

- Deu a lagarta...

XCVII

No documento humbertodecampos graosdemostarda (páginas 102-105)